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Coluna
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Angústias e crença

Somos mais de 210 milhões de pessoas no Brasil, nossa força e também nossas dificuldades se ligam ao tamanho dessa população: somos muitos, diferentes e desiguais. Como envolver num destino comum, de prosperidade e bem estar, tanta gente social, cultural e economicamente desigual?

Como envolver num destino comum, de prosperidade e bem estar, tanta gente social, cultural e economicamente desigual?
Como envolver num destino comum, de prosperidade e bem estar, tanta gente social, cultural e economicamente desigual?Felipe Dana (AP)
Fernando Henrique Cardoso

Fim e começo de ano são épocas de balanço pessoal, familiar, das empresas e mesmo do país. Sem maiores pretensões, direi umas poucas palavras sobre o mais geral: o que me preocupa ao ver o Brasil como nação.

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Primeiro, a maior angústia coletiva: levantar o gigante de seu berço. Tarefa que vem sendo feita ao longo de gerações. É inegável que houve avanços, alguns consideráveis. Da perspectiva histórica não há muita razão para queixas. Bem ou mal, de uma sociedade agrário-exportadora, que usava escravos como mão de obra, o país passou a dispor de uma economia urbano-industrial, baseada no trabalho livre. Para isso, não só as migrações internas como a imigração foram fundamentais. Com elas se acentuou nossa diversidade cultural.

Hoje somos uma nação plural, na qual a contribuição inicial dos portugueses se robusteceu muito, não apenas por havermos conseguido passar da escravidão para o trabalho livre, mas também por termos incorporado étnico-culturalmente os negros a nossa sociedade (embora ainda de forma parcial) e em nossa cultura. Incorporamos também um significativo conjunto de pessoas vindas da Europa Latina e de outros segmentos populacionais do continente europeu. Sem nos esquecermos da imigração de origem árabe, tanto de sírios como de libaneses, nem da asiática, sobretudo a japonesa. E desde o início da colonização houve miscigenação com as populações autóctones.

Dado o mosaico, será que conseguimos de verdade criar uma nação consciente de seu destino comum e acreditar que ele seja bom? Este é o desafio que explica parte de nossas incertezas. Hoje somos muitos, mais de 210 milhões de pessoas habitam o Brasil. Nossa força como também nossas dificuldades se ligam ao tamanho dessa população: somos muitos, diferentes e desiguais. Não me refiro à desigualdade provinda da diversidade, que nos enriquece, mas da que mantém na pobreza boa parte dos nossos conterrâneos. Esta é outra fonte de nossas angústias: como envolver num destino comum, de prosperidade e bem estar, tanta gente social, cultural e economicamente desigual? Se há algo a admirar nos Estados Unidos é que, como nação, e apesar de existirem as mesmas, e até maiores, diversidades e confrontos entre seus habitantes, eles conseguiram criar e transmitir o sentimento de que “estão juntos”. A crença nos valores da pessoa humana, da democracia e da liberdade, que a Constituição americana expressa, serve de cimento para que a nação avance.

Precisamos de algo semelhante. Em nosso caso, talvez o caminho seja o da educação. Enquanto tive poder de decisão pendi para ampliar a inclusão dos jovens na pré-escola e no ensino fundamental. Não porque descreia da importância do ensino secundário e do superior (nem poderia dada minha vivência como professor), mas porque nos dias de hoje quem é bom de verdade avança, mesmo que sozinho, e se torna “global”. Porém o que conta para a formação nacional é a média e não a ponta de excelência. E a média não avança se a base da pirâmide não for ampla e sólida.

Até que ponto se conseguiu avançar?

Em certos setores, bastante: nos segmentos produtivos nos quais fomos capazes de introduzir ciência e tecnologia. Assim aconteceu especialmente na agricultura, que desde o passado se apoiou na tecnologia. O Instituto Agronômico de Campinas exemplifica bem o que ocorreu com a produção cafeeira. Por trás de cada produto em que a agricultura avançou sempre houve o apoio de alguma instituição de fomento e pesquisa. Também nos setores financeiros a própria inflação elevada às alturas forçou a introdução de tecnologias contemporâneas. Quando ensinei em Paris, no começo dos anos 1960, era chocante ver os procedimentos quase manuais dos bancos locais e comparar com o que era feito no Brasil para dar conta da inflação diária na movimentação dos correntistas.

Mesmo na indústria não só as grandes guerras mundiais isolaram os mercados e, sem o querer, tiveram como consequência transformar muitas oficinas mecânicas em fábricas, como houve esforços consistentes para produzir no Brasil aço e materiais de consumo doméstico, inclusive automóvel. E nos orgulhamos de produzir aviões e navios. E a indústria extrativista, que era pouco eficiente, se agigantou (basta ver o que ocorreu com o petróleo). E tudo isto requereu melhorias na infraestrutura.

É uma pena ver o atual governo mergulhado em crenças atrasadas que podem prejudicar no largo prazo nosso destino como Nação.

No mundo contemporâneo há setores nos quais a ciência e a tecnologia deram saltos importantes. Para começar, houve uma revolução na informática. Com ela foram criadas novas formas de sociabilidade que abalam as estruturas tradicionais de poder e põem em risco as formas vigentes de representação e ação política, especialmente nos países que têm a liberdade como um valor. Mas há outros setores que avançaram graças à ciência e a tecnologia: a área espacial, por exemplo. E, para tocar em setores que dizem mais diretamente ao interesse das pessoas, nas áreas microbiológicas o que se tem conseguido não é pouco.

É esta a grande preocupação quanto a nosso futuro. Pouco se fez em algumas das áreas que mais avançam na era contemporânea. É uma pena ver o atual governo mergulhado em crenças atrasadas que podem prejudicar no largo prazo nosso destino como Nação. Se em vez de namorar o criacionismo e o “terra-planismo” ―uma quase caricatura— os que nos governam acreditassem mais na ciência, na diversidade e na liberdade; se em vez de guerrear contra fantasmas (como o “globalismo” ou a penetração “gigantesca” do “marxismo cultural”) os que se ocupam da educação, da ciência e da tecnologia no Brasil voltassem suas vistas para ver como se dá a competição entre as grandes potências e dedicassem mais atenção à base científico-tecnológica requerida para desenvolvimento de um país moderno, democrático e que preza a liberdade, estaríamos mais seguros de que nossas inquietações com o tempo encontrarão solução.

Espero que encontrem, pois os governos passam e as nações permanecem.

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