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Coluna
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A rocambolesca história de como a Igreja Católica escolheu os quatro evangelhos cristãos

O mundo religioso de hoje carece de crítica e de análise, e lhe sobra credulidade e desejo de ler os textos sagrados à luz dos nossos dias

Juan Arias
Fiéis participam da Marcha para Jesus em Brasília, em agosto deste ano.
Fiéis participam da Marcha para Jesus em Brasília, em agosto deste ano.Marcello Casal Jr (Agência Brasil)

O Brasil é o lugar do mundo com o maior número de católicos. Se acrescentarmos a eles mais de 40 milhões de evangélicos, pode-se dizer que é um país maciçamente cristão e, contra a tendência mundial, com um número cada vez menor de agnósticos. Para esses milhões que abraçam a fé cristã, a Bíblia e os evangelhos são textos fundamentais. Principalmente os quatro evangelhos, que só aparecem nas Bíblias católicas e protestantes, se tornaram uma matéria fundamental. Daí que o nome de Jesus, o judeu fundador do cristianismo, seja usado e abusado no Brasil pelo mundo político e pelos fiéis menos cultos.

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Aqueles que se dedicaram muitos anos aos estudos bíblicos às vezes perguntam se esses milhões de seguidores dos evangelhos, que acreditam terem sido inspirados por Deus e que fizeram do nome do judeu Jesus de Nazaré sua bandeira espiritual, conhecem de verdade esse grande monumento literário e religioso que é a Bíblia. Perguntei às vezes aos evangélicos se sabiam, por exemplo, quantas Bíblias existem. Eles me olhavam com surpresa. Para eles, existe apenas uma Bíblia. E, no entanto, existem cinco diferentes: a judaica, a hebraica, a católica, a ortodoxa e a protestante. A católica, por exemplo, tem vários livros do Antigo Testamento que não figuram na judaica, que não os consideram autênticos, entre eles o Cântico dos Cânticos, considerado um livro erótico e até possivelmente escrito por uma mulher. Os católicos também o tiraram da Bíblia e depois acabaram aceitando-no como inspirado.

Nos primórdios do cristianismo existiam, por exemplo, mais de 80 evangelhos que narravam a vida e a doutrina de Jesus de Nazaré, de sua família e de seus discípulos. Deles, mais tarde, apenas quatro foram considerados pela Igreja como inspirados, ou canônicos. Os outros foram considerados apócrifos, ou não autênticos. O que poucos conhecem é a maneira rocambolesca pela qual a Igreja decidiu que apenas quatro deles tinham sido inspirados por Deus e gozavam de credibilidade. Foi algo cinematográfico.

Deve-se lembrar de que quando a hierarquia da Igreja esclareceu quais evangelhos os fiéis deveriam considerar seguros por terem sido inspirados por Deus, todos os outros considerados depois deles carentes de autoria divina já haviam sido usados e citados durante muito tempo pelos próprios bispos e pais da Igreja em seus escritos e sermões. Os que davam mais medo na Igreja oficial eram os chamados evangelhos gnósticos, porque se tratavam de uma nova teologia que contrastava com a ortodoxa de Paulo de Tarso.

Se para os primeiros cristãos a salvação vinha do sacrifício da cruz, para os gnósticos derivava da sabedoria. A corrente gnóstica à qual pertencia Maria Madalena e sua liderança estava se impondo entre as primeiras comunidades cristãs a ponto de ser reconhecida como uma nova teologia. A Igreja temeu aquela corrente filosófico-teológica e mandou queimar todos os evangelhos gnósticos. Apenas 18 deles foram escondidos por monges em ânforas e descobertos no Alto Egito em 1945, o que provocou um sobressalto de medo na Igreja.

Quando, no século III do cristianismo, decidiu-se que apenas quatro evangelhos dos cerca de 100 que então existiam eram autênticos, as razões apontadas foram que muitos deles davam excessivos pormenores sobre a infância de Jesus, que neles aparecia mais como um menino travesso. Em seguida, porém, acolheram-se motivos mais rocambolescos, como o apresentado por Santo Irineu no ano 205: “O Evangelho é a coluna da Igreja. A Igreja está espalhada por todo o mundo e o mundo tem quatro regiões e, portanto, convém que existam apenas quatro evangelhos, como existem quatro pontos cardeais”.

Houve mais. A decisão oficial da Igreja sobre os quatro evangelhos foi tomada no Concílio de Nicéia no ano 325, graças a um milagre, como se conta na obra Lybelus Syndicus. O milagre foi que, de todos os evangelhos presentes na Igreja, apenas quatro levantaram voo e se colocaram sobre o altar. O resto ficou imóvel em seu lugar. Outra versão é que todos os evangelhos tinham sido colocados no altar e todos foram caindo no chão até ficarem apenas os quatro considerados canônicos. E houve mais. Outro sinal divino foi que o Espírito Santo entrou, sem quebrá-lo, pelo vidro de uma janela da sala onde os bispos estavam reunidos e foi pousando no ombro de cada um deles sussurrando-lhes no ouvido o nome dos quatro que seriam escolhidos, os hoje chamados evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João.

É curioso, porém, que muitas tradições dos evangelhos chamados apócrifos e considerados não inspirados tenham ficado presentes em parte da literatura da Igreja. Algumas passagens inclusive deram motivos à criação de festas oficiais da Igreja. Graças a eles, sabemos, por exemplo, os nomes dos pais de Maria, a mãe de Jesus: Joaquim e Ana. E é pelos apócrifos que conhecemos detalhes especiais do nascimento de Jesus, como os nomes dos três reis magos, Melchior, Gaspar e Baltazar.

E se é verdade que os autores dos evangelhos considerados apócrifos pela Igreja são desconhecidos, tampouco existe certeza de que Mateus, Marcos, Lucas e João foram os verdadeiros autores dos quatro evangelhos católicos. Não conhecemos os autores nem sabemos se antes de terem sido escritos foram transmitidos oralmente, de pais para filhos. Também não sabemos quanto do que os evangelhos oficiais contam corresponde à realidade dos fatos ou ao fruto da catequese dos primeiros cristãos.

Por exemplo, nas narrações dos dias cruciais da paixão e da morte de Jesus e dos motivos que o levaram a morrer como um malfeitor pregado em uma cruz, existem nos evangelhos oficiais mais de nove versões diferentes desses fatos tão importantes, já que os próprios narradores dos quatro evangelhos canônicos contaram os fatos contaminados pelas lutas dos primeiros cristãos, especialmente entre os judeus e os gentios. Existem evangelhos que colocam a ênfase em culpar os líderes da Igreja de então e outros no poder político e civil. No final, nem sabemos de verdade por que o mataram. Nem Pilatos sabia, ele que lavou as mãos alegando que não via nenhuma culpa naquele homem.

Tudo isso para lembrar àqueles que tomam os evangelhos, mesmo os canônicos, como certeza absoluta, que eles são uma narração que passou por muitos filtros e interesses religiosos e políticos antes de terem ido escritos e entregues à posteridade. O maior respeito que devemos ter, sejamos crentes ou não, com esses textos que deram vida a uma Igreja tão poderosa quanto a cristã é saber aceitar que não estamos diante de verdades eternas e irrefutáveis e que, no final, entre os evangelhos reconhecidos pela Igreja e aqueles considerados apócrifos talvez não existam tantas diferenças quanto imaginamos.

É melhor conhecer a verdade das coisas do que fechar os olhos com medo de ser crítico, inclusive diante do que possa parecer evidência. O mundo religioso de hoje carece de crítica e de análise, e lhe sobra credulidade e desejo de ler os textos sagrados à luz dos nossos dias, daquilo que nos atormenta e nos desorienta, inclusive do mundo que se proclama crente em Deus, enquanto pisoteia os direitos dos homens.


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