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Argentina amplia sua política de identidade a crianças roubadas fora do contexto da ditadura

Nova política, ainda incipiente, é uma esperança para 12.500 pessoas cujo DNA não coincide com o das famílias de desaparecidos. Em novembro já houve dois reencontros

Lourdes, de 43 anos, e sua mãe biológica, Nélida Soria, de 82, se beijam após seu reencontro, na província de Entre Ríos. Elas passaram quatro décadas separadas e se reencontraram graças a uma abertura parcial do Banco Nacional de Dados Genéticos.
Lourdes, de 43 anos, e sua mãe biológica, Nélida Soria, de 82, se beijam após seu reencontro, na província de Entre Ríos. Elas passaram quatro décadas separadas e se reencontraram graças a uma abertura parcial do Banco Nacional de Dados Genéticos.Cortesía

A prática de “conseguir uma criança” sempre existiu na sociedade argentina, com cumplicidade de parteiras e cartórios e o silêncio do resto da sociedade. Os agentes da última ditadura argentina (1976-83) aproveitaram essa velha engrenagem para montar seu sistema de roubo de bebês paridos por militantes políticas torturadas e assassinadas em centros clandestinos de detenção. Mas o tráfico, as apropriações e adoções ilegais continuaram a ocorrer paralelamente, fora dos quartéis. É o que prova a esmagadora cifra de pessoas que nasceram durante o período do terrorismo de Estado, têm documentação irregular e procuram sua origem, mas foram descartados como filhos de desaparecidos nos exames de DNA feitos pelo Banco Nacional de Dados Genéticos [BNDG] desde o retorno da democracia.

O BNDG surgiu em 1987. Nestes 35 anos, o cotejo das amostras biológicas das famílias de desaparecidos pela ditadura e de pessoas que duvidavam da sua identidade permitiu apontar sem margem de erro 130 dos 500 netos procurados pela organização Avós da Praça de Maio. Mas o processo acumulou no caminho mais de 12.500 resultados negativos: pessoas que cresceram com identidade trocada, mas não são os netos procurados. O problema para eles é que, depois do exame de DNA negativo, não há outras opções para rastrear sua origem. E o problema para o Estado é que estes casos crescem na ordem de 100 por mês, enquanto os netos —razão de ser do BNDG— deixaram de aparecer. O último anúncio foi há dois anos e meio.

Mas algo está mudando, pouco a pouco. Recentemente, 12 casos negativos do BNDG receberam uma boa notícia: suas mães estão vivas. Não são nem nunca foram desaparecidas políticas. Essa identificação foi possível porque o organismo, paralelamente ao seu arquivo de famílias que procuram netos roubados pelos militares, criou outro cadastro, de mães que procuram filhos roubados em outro contexto que não o do terrorismo de Estado. As cifras foram confirmadas ao EL PAÍS por Mariana Herrera Piñero, diretora do BNDG desde 2015, que no entanto advertiu que elas “são dinâmicas”. A soma de reencontros evidencia o potencial desta abertura parcial do arquivo de DNA do BNDG.

Os primeiros casos chegaram via judicial e permitiram resolver desde 2009 histórias nas províncias de Rosario, Tucumán, Buenos Aires e Neuquén. Ou seja: mulheres que encontram filhos, e filhos que recuperam sua identidade —fatos sem relação com a ditadura. Em um caso de 2018, a Justiça solicitou que os casos negativos em poder do BNDG fossem comparados com a amostra de DNA de uma empregada doméstica que procurava uma bebê nascida em 1976 em Vicente López (periferia de Buenos Aires), que foi tomada por seus patrões e entregue a outro casal. Ameaçada por eles de perder também seu filho mais velho, calou-se durante décadas. O cruzamento de informações deu certo: sua filha biológica duvidava de sua origem e tinha pedido que seu DNA fosse comparado às amostras do BNDG.

Outras mães recorreram então à Comissão Nacional pelo Direito à Identidade [Conadi], e houve mais encontros, dois deles em novembro passado. Nélida Soria é a mãe que protagonizou um deles e comoveu a localidade de Colón, na província de Entre Ríos (nordeste). Em 1978, essa uruguaia sem atividade política vivia em Buenos Aires com seu marido, uma filha pequena e um bebê do sexo feminino, que não chegou a registrar. Uma operação de fiscalização imigratória os obrigou a sair do país e a deixar temporariamente o bebê com um vizinho: não a viram mais. Lourdes, como se chama, cresceu em Córdoba com outro sobrenome e há alguns anos quis saber se era filha de desaparecidos. Seu DNA ficou no cadastro BNDG, e sua história permanecia em aberto. Nélida acaba de encontrá-la porque um conhecido lhe disse que agora a instituição recebia o DNA de mães. E experimentou.

Manuel Gonçalves, funcionário do Conadi (e ele próprio um dos 130 netos recuperados), disse a uma rádio de Entre Ríos que a organização lida com “muitas amostras de jovens de entre 40 e 45 anos que deram negativo, e muitas mães que estão nesta busca”. “Conseguimos colocá-las no BNDG; a partir deste trabalho resolvemos vários casos e esperamos resolver mais”, acrescenta. Podem se cadastrar no banco de DNA mulheres que deram à luz entre julho de 1974 e dezembro de 1983, exclusivamente. Não importa se seus bebês foram roubados, ou se elas próprias os entregaram por não poderem criá-los.

“Precisamos que as mães nos busquem. Estamos esperando por elas”, diz Mariano Landeira, um dos 12.500 casos que não tiveram sucesso no banco genético. Landeira nasceu em fevereiro de 1975 numa clínica de Wilde (Buenos Aires) que o vendeu à sua família de criação. Sonha agora em preencher “uma parte vazia” de sua vida.

No BNDG já há 250 mães não vinculadas a casos de terrorismo de Estado. Uma delas é María Alicia Pedrazzi. Pariu na clínica Pedro Honain, em San Martín (Buenos Aires), em 30 de novembro de 1983, mas foi informada de que seu bebê havia morrido. Com os anos, comprovou que o haviam trocado. Herrera Piñero explica que “a incorporação de mães serve para possíveis reencontros, que sempre são algo bom e queremos que aconteçam. Também é uma solução científica ideal, porque os casos negativos, se não recuperarem sua identidade, ficam para o resto da vida na base de dados, sendo permanentemente comparados”.

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Bandeira colocada por ativistas em novembro passado numa das chamadas “praças pela identidade”, em Buenos Aires. Cortesía

Uma lei de identidade ampla

O famoso BNDG é a caixa de ressonância de um grande conflito. Em 2009, durante o Governo de Cristina Fernández de Kirchner, a lei que o rege foi endurecida para otimizar sua meta: encontrar aos netos das Avós da Praça de Maio. Para os ativistas do direito à identidade (um conglomerado de ONGs e comunidades virtuais heterogêneas), aquela lei foi uma decisão arbitrária. Eles consideram que este laboratório, subordinado ao Ministério de Ciência, deveria tomar todos os casos, com ou sem relação com crimes contra a humanidade.

“A reivindicação e a demanda são genuínas. Mas como devem ser veiculadas? É mais complexo que uma análise genética. É uma discussão maior”, diz Herrera Piñero. “Deve haver um compromisso do Estado para que não haja mais organismos administrativos cúmplices da apropriação, e uma lei federal de identidade de origem. O BNDG poderia ser o centro, mas que participem os laboratórios forenses das províncias e alimentem uma base de dados comum”, propõe.

É possível, então, abrir o BNDG a toda a comunidade? “A busca no BNDG é efetiva porque se limita a 500 grupos familiares, mais estas mães que procuram”, adverte Herrera Piñero, atual diretora do banco genético. “Mas se fosse aberto a outros períodos, o universo seria enorme, e a busca, mais complexa. Processar essas amostras seria impossível com os recursos humanos e a tecnologia disponíveis, e levaria ao fracasso. Mas uma lei onde o BNDG, com sua experiência e idoneidade, administrasse a base não prejudicaria sua atividade e permitiria buscas eficientes”, conclui.

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