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Ataques à imprensa na América Latina geram “buracos negros” de informação, diz CPJ

Deterioração constante da liberdade de imprensa terá um grande custo, adverte o diretor de programas do Comitê para a Proteção de Jornalistas: “Chegará um momento em que saberemos muito pouco do que acontece”

Lorena Arroyo
toma de la redacción del diario La Prensa en Nicaragua
Agentes da polícia nicaraguense nas instalações do jornal ‘La Prensa’, em 13 de agosto deste ano.STRINGER (Reuters)

Jornalistas nicaraguenses encarcerados, perseguidos e obrigados a viver escondidos ou no exílio, repórteres acossados e perseguidos na Guatemala, crimes contra a imprensa que ficam impunes em Honduras e ataques sistemáticos por parte do presidente Nayib Bukele aos meios independentes em El Salvador. A América Central é o máximo expoente da “deterioração constante” da liberdade de imprensa na América Latina, e nenhum Governo da região parece disposto a tentar combatê-la, adverte o espanhol Carlos Martínez de la Serna, diretor de programas do Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ).

Falando por telefone de Nova York ao EL PAÍS, Martínez de la Serna observa que a situação é “gravíssima” para as populações locais e que é preciso gerar consciência internacional sobre o que ocorre nesses países. “Por causa da chantagem sistemática à imprensa na região, haverá cada vez menos informação disponível independente sobre o que ocorre, e autênticos buracos negros estão sendo gerados. Chegará um momento em que saberemos muito pouco sobre o que está ocorrendo”, afirma. Para entender as consequências do desaparecimento do jornalismo, o diretor de programas do CPJ insiste em olhar para outras regiões do mundo onde isto já aconteceu, como o Afeganistão, onde a chegada do Talibã ao poder desmantelou a imprensa livre em questão de meses, ou algumas regiões do México, onde reina uma enorme impunidade por atos violentos que impedem os jornalistas de fazerem seu trabalho. Também é o caso de países com regimes autoritários na região, como Cuba e Venezuela, onde não se pode exercer o jornalismo livremente.

As ameaças à imprensa na região serão um dos temas discutidos a partir desta quinta-feira no Fórum Centro-Americano de Jornalismo, um evento organizado pelo veículo digital salvadorenho El Faro, e que neste ano se distribui entre Guatemala, Honduras e El Salvador, e de maneira virtual. “Não estamos tão distantes de que comecemos a ver estas situações em países da América Central. Em alguns casos já é algo muito dramático, como vemos na deterioração impressionante em El Salvador ou na Nicarágua nos últimos anos”, adverte Martínez de la Serna.

Neste domingo, a Nicarágua realiza eleições presidenciais amplamente tachadas como fraudulentas, depois que o presidente Daniel Ortega mandou prender dezenas de opositores do seu Governo, incluindo potenciais candidatos presidenciais. Além disso, a imprensa independente viu nos últimos meses um aumento dos ataques contra si, com redações invadidas e assédio a jornalistas através de leis que procuram calar as vozes críticas. Neste momento há mais de 150 presos políticos no país, entre eles Miguel Mora, ex-diretor do canal 100% Notícias alçado a pré-candidato da oposição, Juan Lorenzo Holmann Chamorro, gerente-geral do jornal La Prensa, e o jornalista esportivo Miguel Mendoza. “Há um ataque sistemático nestas frentes que de certa medida culmina nas eleições de 7 de novembro para desmantelar e acabar com a imprensa. Há dezenas de jornalistas no exílio por causa disto, e muitos deles no país estão sob vigilância ou com sua atividade muito restringida por diferentes motivos”, adverte Martínez de la Serna.

A força dos jornalistas no exílio

Uma delas é Jennifer Ortiz, diretora do site independente Nicaragua Investiga, quemem junho deste ano decidiu se exilar na Costa Rica pela segunda vez. A primeira foi depois da repressão aos protestos de 2018, quando sofreu ameaças, foi alvo de vigilância paramilitar e a casa da sua família recebeu ataques com coquetéis molotov. Em junho deste ano, começou seu segundo exílio para garantir a continuidade de seu veículo. “Vários porta-vozes do Governo me acusaram de lavar dinheiro, de apoiar o que eles chamam de golpe de Estado, e acusaram o veículo que fundei e dirijo de transgredir a lei de delitos cibernéticos, que é uma lei aprovada para a conveniência deles para criminalizar o trabalho da imprensa independente”, afirma.

A jornalista Jennifer Ortiz, diretora do site Nicaragua Investiga, em 29 de outubro na Costa Rica.
A jornalista Jennifer Ortiz, diretora do site Nicaragua Investiga, em 29 de outubro na Costa Rica. Jeffrey Arguedas (EFE)

Ortiz compara o trabalho de campo na Nicarágua a fazer jornalismo numa zona de guerra. “Você sai consciente de que podem bater em você e que esse pode ser o último dia que você sai para a cobertura, porque podem te assassinar, sequestrar ou prender”, diz ela por telefone da Costa Rica. Os repórteres, acrescenta, estão sujeitos a terem seus equipamentos roubados, seus celulares revisados, os veículos de trabalho apreendidos, ou que a qualquer momento tenha início uma campanha de perseguição contra eles. “Sabem que você será um inimigo público do Governo, e é um Governo que está preparado para fazer algo para defender o poder.” Antes de ir embora da Nicarágua, ela se refugiou em várias casas de segurança, onde vivia de maneira clandestina. Exercer a profissão nestas condições também levou suas filhas a perderem dois anos de escola devido às constantes mudanças, e sua família teve que deixar de falar com alguns amigos para que não sofram represálias.

A estratégia de calar as vozes dissidentes por parte de Daniel Ortega também resultou na existência de cada vez menos fontes de informação: muitos que se atreviam a questionar o Governo estão presos, enquanto outros decidiram parar de falar para não acabar na prisão também. “É um desafio enorme para o jornalismo independente poder continuar exercendo jornalismo nesse contexto”, diz a diretora do Nicaragua Investiga. Do seu exílio, ela continua dirigindo a cobertura do seu veículo e coordenando a equipe que permanece no país, para que possam exercer seu trabalho com as maiores garantias possíveis. “Estão tentando documentar a história do país, com risco para sua própria vida e da sua normalidade”, destaca.

Na Costa Rica, que acolheu boa parte do exílio nicaraguense, inclusive jornalistas, muitos deles enfrentam dificuldades econômicas e migratórias. Conforme explica Ortiz, conseguir o status de refugiado pode levar vários anos. “Vivemos em uma espécie de bolha. Apesar de estarmos na Costa Rica, nossa casa é como uma pequena Nicarágua onde estamos mergulhados no que acontece em nosso país. Estamos trabalhando on-line para nossas próprias plataformas, então isso de alguma forma nos poupa as dificuldades desses trâmites migratórios tão lentos, porque não precisamos trabalhar aqui na Costa Rica. Mas para as pessoas refugiadas que precisam trabalhar aqui isso é extremamente desafiador”, diz.

Carlos Martínez de la Serna, da CPJ, destaca que em casos como o da Nicarágua, mas também em Cuba e Venezuela, há jornalismo graças a um esforço “realmente memorável” dos jornalistas: os que estão dentro e os que estão no exílio, como Ortiz, “que fazem todo o possível para continuar informando”. “Vão embora porque é a única maneira de continuar exercendo sua profissão com uma mínima segurança, mas estão exercendo um trabalho fundamental”, afirma. Nesse sentido, insiste aos governos para que apoiem com vistos para que possam continuar trabalhando.

México, Brasil e a esperança dos veículos independentes

Fora da América Central, o diretor da CPJ vê em toda a região “problemas graves” relacionados a líderes que não protegem e inclusive atacam a liberdade de imprensa, como são os casos do México, que costuma encabeçar todos os anos a lista mundial de jornalistas assassinados, e o Brasil. “A situação no México é suficientemente dramática para que o país liderasse uma resposta que implique a valorização do jornalismo, a proteção dos jornalistas e a importância de seu papel. Por outro lado, temos um presidente [Andrés Manuel López Obrador] que dedica seu tempo a uma retórica que meio criminaliza, meio banaliza, em vez de se dedicar aos problemas muito concretos.”

López Obrador com Ana Elizabeth García Vilchis, encarregada de um espaço nas suas entrevistas coletivas matinais nas quais critica o noticiário publicado na imprensa.
López Obrador com Ana Elizabeth García Vilchis, encarregada de um espaço nas suas entrevistas coletivas matinais nas quais critica o noticiário publicado na imprensa. Galo Cañas (Galo Cañas)

No caso de Jair Bolsonaro, Martínez de la Serna compara o que ocorre no Brasil com o que se viu nos Estados Unidos de Donald Trump. “É um político que utiliza ou incorpora como parte de sua estratégia política o ataque sistemático à imprensa, sem uma intenção de melhorar e de contribuir para um diálogo construtivo sobre a democracia, e sim com a única intenção de criminalizá-la e desativá-la”, afirma. “A diferença é que, assim como ocorreu nos Estados Unidos, no Brasil há um panorama de organizações civis, direitos digitais e de imprensa muito ativo, e estes são capazes de suportar estes embates”, acrescenta.

Frente à falta de liderança nos governos da região para defender a liberdade de imprensa, estão surgindo diversas iniciativas independentes para fomentar o jornalismo e a cidadania crítica. É o caso do veículo digital Contracorriente, de Honduras, que foi fundado em 2017 e neste ano publicou parte da investigação dos Pandora Papers, sendo reconhecido com o prestigioso prêmio Maria Moors Cabot nos Estados Unidos. “Em Honduras o jornalismo é uma carreira arriscada. Também enfrentamos o bloqueio institucional, a falta de transparência e a falta de acesso à informação pública”, afirma Jennifer Ávila, uma de suas fundadoras, que se viu na necessidade de abrir espaço apesar do bloqueio ou hostilidade dos atores que tradicionalmente ostentam o poder, em um país “não tão receptivo” ao jornalismo.

“Entendemos que criar um veículo independente exigiria um processo de educação do público e de formação de uma nova geração de jornalistas”, acrescenta Ávila. “Não queremos ser um veículo de massa, e ter uma audiência formada e que entenda que os cidadãos devem se envolver nos processos de auditoria, e que o jornalismo serve para isso e para gerar uma cultura democrática”.

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