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António Guterres: “Chega de tratar a natureza como uma privada. Estamos cavando nossas sepulturas”

A principal autoridade da ONU pede aos países que revejam seus planos de corte de emissões até que o aquecimento seja de apenas 1,5 grau

O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, e o secretário-geral da ONU, António Guterres, nesta segunda-feira de manhã em Glasgow.
O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, e o secretário-geral da ONU, António Guterres, nesta segunda-feira de manhã em Glasgow.POOL (Reuters)

O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, alertou os dirigentes mundiais presentes na cerimônia de abertura da cúpula de Glasgow que a humanidade está “cavando” a própria sepultura por causa do ritmo crescente de emissões de gases do efeito de estufa em que os seres humanos estão imersos desde a Revolução Industrial. “Chega de tratar a natureza como uma privada”, disse. “Chega de queimar, perfurar e minar nosso caminho”, acrescentou, referindo-se aos combustíveis fósseis, principais responsáveis por essas emissões e pela alimentação da economia mundial desde a Revolução Industrial.

A cúpula de Glasgow teve seu dia mais político nesta segunda-feira, com discursos dos principais líderes mundiais. Foi precedida por uma sombra de pessimismo e decepção, depois que os países que compõem o G-20 (responsáveis por 80% das emissões planetárias) se limitaram em Roma a reafirmar o compromisso global contra as mudanças climáticas pactuado há seis anos em Paris, sem dar mais detalhes ou demonstrar maior ambição. Os vários discursos ouvidos ao longo do dia confirmaram que ainda faltam longos dias de negociação e diplomacia para que esta cúpula tenha êxito. Além do anúncio específico da Índia de situar sua meta de neutralidade de carbono em 2070 (vinte anos atrás dos EUA, do Reino Unido e da UE e dez anos atrás da China), a maioria das intervenções foi uma retórica de urgência, sem novos compromissos concretos.

Guterres pediu aos cerca de 120 líderes mundiais presentes na cúpula de Glasgow que revisem seus planos de corte de emissões de forma contínua. “Não a cada cinco anos. A cada ano.” Isto porque os esforços que estão sobre a mesa agora, embora tenham sido revisados em muitos casos, são insuficientes. O objetivo do Acordo de Paris é garantir que o aumento da temperatura permaneça entre 1,5 e 2 graus em relação aos níveis pré-industriais. Esse é o colchão de segurança que a ciência estabelece para evitar o aquecimento mais desastroso. Mas o planeta já está 1,1 grau mais quente do que antes da Revolução Industrial e os planos de corte que as quase 200 nações assinantes do Acordo de Paris apresentaram levam a um aumento de cerca de 2,7 graus.

“Os países precisam revisar seus planos e políticas climáticas nacionais”, insistiu Guterres. “Até que fique garantido que permanecerá em 1,5 grau, até que os subsídios aos combustíveis fósseis acabem, até que haja um preço para o dióxido de carbono e até que o carvão seja eliminado gradualmente.”

“Falta um minuto para a meia-noite”, alertou o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, aos participantes da cúpula. O Reino Unido preside a COP26, a maior aposta diplomática da era pós-Brexit. Nos últimos dias, o Governo britânico vem tentando acelerar as pressões para que a cúpula de Glasgow não acabe sendo um fracasso. “Temos que avançar da fase de declarações e debate para a de ação real e coordenada em todo o mundo sobre o carvão, os carros, as finanças e as árvores”, disse Johnson. Um Governo como o seu, tão dado a slogans, encontrou a combinação perfeita para esta cúpula: Coal, Cars, Cash and Trees (Carvão, Carros, Dinheiro e Árvores). Ou seja, uma aceleração do fim definitivo do consumo de carvão; avanços consistentes para os veículos elétricos; mais financiamento para o esforço de transição energética das nações emergentes; e mais reflorestamento para capturar dióxido de carbono da atmosfera. “As promessas que o mundo fez seis anos atrás em Paris estão começando a soar muito vazias”, advertiu Johnson em Roma no domingo.

Esses são alguns dos compromissos concretos que há anos a ONU vem pedindo aos países para que se possa enfrentar o aquecimento. E da Cúpula de Glasgow se espera que possam emergir precisamente promessas de abandono do carvão ou que se estabeleça uma data de validade para os carros de combustão. Além disso, como lembrou Guterres, é necessário concluir o estipulado no Acordo de Paris. Especificamente, que seja finalizada a aplicação do Artigo 6, que se refere aos mercados de carbono como ferramenta de combate ao aquecimento.

Metas de longo prazo

Durante esta cúpula também se espera o aumento do número de países comprometidos a alcançar emissões líquidas zero até meados do século. Isso significa que só poderiam emitir gases que possam ser absorvidos pela natureza (florestas e oceanos) ou por tecnologias que hoje são experimentais. Alcançar emissões zero em meados do século é precisamente o caminho que o Acordo de Paris delineia para que o aquecimento permaneça entre 1,5 e 2 graus. Pouco antes do início da cúpula, os Estados Unidos apresentaram seu plano para cumprir essa meta em 2050. “Neste momento já estamos ficando aquém. Não há mais tempo a perder discutindo entre nós”, disse o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que enfatizou para os demais países que Washington é mais uma vez um ator fundamental no combate às mudanças climáticas, depois do retrocesso que a Administração de Donald Trump representou.

Mas Biden não anunciou novos compromissos, além dos cortes para 2030 que seu Governo já colocou sobre a mesa em uma cúpula internacional organizada em abril para simbolizar o retorno dos Estados Unidos à luta contra as mudanças climáticas. Como fez na época, Biden apresentou nesta segunda-feira em Glasgow o combate às mudanças climáticas como uma oportunidade de criar milhares de empregos. “Não só nos EUA, mas em todos os países”, acrescentou.

China e Rússia, cujos presidentes decidiram não participar desta cúpula, também se comprometeram a alcançar a neutralidade das emissões, ainda que em 2060. E o Brasil, um dos países mais criticados no momento na questão climática, também apresentou neste domingo um texto em que afirma que chegará à neutralidade das emissões em 2050. Guterres lembrou nesta segunda-feira que “há um déficit de credibilidade e um excesso de confusão sobre redução de emissões e objetivos de emissão zero, com diferentes significados e diferentes métricas”. Porque muitos prometem a neutralidade das emissões até 2050 ou 2060 sem um caminho claro para reduzir seus gases de efeito estufa nesta década.

Embora o Acordo de Paris se preocupe principalmente com as ações a serem adotadas pelos Estados comprometidos, muitas empresas e órgãos públicos também prometem emissões líquidas zero. Tal como acontece com os países, em muitos casos esses anúncios são pouco claros e teme-se que sejam meras estratégias de publicidade. Guterres explicou em seu discurso nesta segunda-feira que vai formar “um grupo de especialistas para propor padrões claros para medir e analisar os compromissos de emissões zero líquidas dos participantes não estatais”.

A mitigação das emissões é o foco central dessas cúpulas. Mas a outra grande faceta da discussão é o financiamento no combate às mudanças climáticas, pelo qual os países desenvolvidos, os principais causadores do aquecimento do planeta devido às suas emissões históricas, devem ajudar economicamente os Estados mais pobres. O compromisso era chegar a 100 bilhões de dólares (567 bilhões de reais) de financiamento climático em 2020. Mas em 2019, segundo cálculos da OCDE, foram mobilizados 79,6 bilhões. E um relatório recente liderado pela Alemanha e pelo Canadá reconhece que a meta de 100 bilhões não será alcançada antes de 2023. Além disso, muitas organizações não governamentais questionam a incidência destes fundos e criticam que a grande maioria do montante corresponde a empréstimos e não a ajudas a fundo perdido.

Essa promessa não cumprida faz com que alguns países em desenvolvimento que emitem cada vez mais relutem em pôr na mesa metas ambiciosas de redução de seus gases, como é o caso da Índia. Guterres garantiu que “é essencial para restaurar a confiança e a credibilidade” que a meta de 100 bilhões seja atingida.

Índia promete emissões líquidas zero até 2070

Em 2019, quatro grandes blocos acumularam mais de 50% das emissões mundiais de gases do efeito estufa, de acordo com estimativas de analistas do Grupo Rhodium. A China foi o principal emissor, com 27% do total, seguida pelos Estados Unidos (11%), Índia (6,6%) e União Europeia (6,4%). Desses quatro blocos, faltava apenas a Índia atualizar seus planos de redução de emissões. E seu primeiro-ministro, Narendra Modi, fez o anúncio durante seu discurso na cúpula do clima. Modi prometeu que até 2030 a Índia aumentará sua capacidade de geração de eletricidade com energia limpa para 50% (a meta anterior era de 40%). Ele também disse que o país reduzirá sua intensidade de carbono em 45% até 2030 (a meta anterior era de 35%).

Modi afirmou que a Índia decidiu aumentar seus compromissos apesar de os países desenvolvidos não terem cumprido suas promessas de ajuda financeira. Em relação às metas de longo prazo, Modi anunciou que seu país alcançará a neutralidade de emissões em 2070. Os Estados Unidos e a União Europeia garantem que o farão em 2050 e a China estabeleceu como meta 2060. A meta da Índia é menos ambiciosa, mas também parte de uma situação complicada em que uma parte significativa de sua população nem mesmo tem acesso a eletricidade. “Somos 17% da população, mas emitimos apenas 5% de todos os gases do efeito estufa”, lembrou Modi.

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