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Presidente da Tunísia passa a governar por decreto e opositores denunciam golpe

Diversas formações convocam mobilização contra as medidas aprovadas por Kais Saied no único país onde triunfou a Primavera Árabe. Desde 25 de junho, ele controla também o poder Legislativo

Manifestação contra o presidente da Tunísia, Kaïs Saied, realizada no sábado, 18 de setembro, na capital do país.
Manifestação contra o presidente da Tunísia, Kaïs Saied, realizada no sábado, 18 de setembro, na capital do país.MOHAMED MESSARA (EFE)
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O presidente tunisiano, Kais Saied, deixou claro na quarta-feira por meio de um comunicado de seu gabinete que assumirá novos poderes. Horas depois, o diário oficial do país anunciava que o presidente governará por decreto a partir de agora. O Parlamento do único país onde triunfou a Primavera Árabe não pode dizer nada porque foi suspenso por um mês pelo próprio Said. Mais tarde, ele estendeu a suspensão indefinidamente. Dia a dia, este jurista de 63 anos, que chegou ao poder em 2019 sem experiência política anterior, desmonta o andaime constitucional do país do Magrebe.

Após o anúncio, os principais partidos da oposição na Tunísia rotularam o presidente como um líder golpista e lançaram vários apelos à mobilização. Quatro formações emitiram um comunicado conjunto nesta quinta-feira em que indicaram que Saied perdeu sua legitimidade. A mensagem dessas formações (Attayar, Al Jouhmouri, Akef e Ettakatol) vai no mesmo sentido que já havia declarado na véspera Rached Ganuchi, líder do partido islâmico moderado Ennahda, maioria no Parlamento, onde tem 53 de os 217 deputados. Ganuchi acusou Saied de ter de fato abolido a Constituição pela qual o país é governado desde 2014, por meio da regra promulgada na quarta-feira. Por meio dessa lei, Saied se autoriza a legislar por decreto-lei sobre cerca de trinta questões, que vão desde a liberdade de imprensa até a política de segurança.

Os quatro partidos que denunciam um golpe de Estado não têm grande peso na sociedade tunisiana, exceto o Attayar, que apoiou Saied até 25 de julho, quando ele depôs o primeiro-ministro Hichem Mechichi e suspendeu as atividades do Parlamento por um mês. No entanto, as críticas a Saied aumentam a cada dia. Qalb Tunis, que foi o segundo partido nas eleições legislativas de 2019, também classificou Saied como golpista. E o esquerdista Partido dos Trabalhadores Tunisianos (PTT) se declarou nesta quinta-feira a favor da mobilização contra as medidas do presidente, que qualificou como “o ápice da operação golpista” de 25 de julho.

No entanto, a principal força política na Tunísia continua sendo a União Geral dos Trabalhadores Tunisianos (UGTT), o sindicato mais poderoso do mundo árabe, com mais de um milhão de membros em um país de 11,6 milhões de habitantes. E essa formação ainda não se pronunciou oficialmente, embora um de seus líderes, Anour Ben Kadour, tenha declarado na manhã desta quinta-feira que a Tunísia caminha para um “governo individual absoluto”. Resta saber se o sindicato decidirá convocar um protesto massivo ou vai preferir optar pela inação.

Um homem sem carisma

O jurista Kais Saied, de 63 anos, é o sétimo presidente da Tunísia, o segundo desde o estabelecimento da democracia. Esse homem, que participou das eleições presidenciais de 2019 sem experiência política, sem carisma e sem dinheiro desatou a euforia no país. Ele prometeu uma mudança em direção a uma verdadeira democracia com uma mensagem que causou profunda impressão entre milhões de jovens desempregados. Tinha fama de ser austero e denunciava a corrupção. Ele venceu com 72,7% dos votos, ante 27,29% de seu rival, o magnata Nabil Karui.

Jogou a seu favor o descrédito de uma classe política que, em 10 anos, não sobe nem como concordar para formar um Tribunal Constitucional, instituição que agora teria velado contra qualquer abuso de poder. A corrupção dos políticos, o transfuguismo e a incompetência para frear o desemprego aliaram-se à pandemia e abriram caminho para que Saied assumisse os poderes Legislativo e Executivo em 25 de julho.

Não há pesquisas altamente confiáveis na Tunísia. Mas a rua, por enquanto, aceita as medidas de Saied. No sábado, 18 de setembro, uma manifestação de centenas de pessoas denunciando “o golpe de Estado” de Saied foi registrada pela primeira vez em Túnis. Mas a grande maioria silenciosa seguiu em silêncio.

Selim Kharrat, membro da ONG tunisiana Al Bawsala, disse a este jornal que a popularidade de Saied vai sofrer uma grande mudança em breve, devido aos grandes desafios econômicos do país. “Os tunisianos podem continuar apoiando as ações de Saied, mesmo depois do decreto-lei que ele aprovou nesta quarta-feira; porque de qualquer maneira a situação que existia antes de 25 de julho [quando ele assumiu plenos poderes] não era muito melhor. Mas quando as pessoas perceberem que a situação econômica não melhora, as coisas vão mudar.”

Kharrat, cuja ONG acompanha de perto os movimentos políticos do país, acredita que as manifestações se multiplicarão a partir de agora, porque Saied “rejeita o diálogo e não deixou outra opção para seus adversários políticos”. “Desde quarta-feira eles não têm permissão para apelar à justiça de seus decretos-lei”, conclui Kharrat.

A professora Monika Marks, da New York University Abu Dhabi, indica que depois de 25 de julho, quando Saied assumiu o poder total, havia grande esperança dentro e fora do país, colocada nas quatro organizações tunisianas que ganharam o prêmio Nobel da Paz em 2015. Eles foram fundamentais para promover a transição democrática no país: o sindicato UGTT, a associação patronal do país (UTICA), a Liga Tunisiana dos Direitos Humanos e a Ordem dos Advogados.

Essas quatro organizações, segundo Marks, agora não têm um inimigo comum, como em 2013, quando lutaram contra a formação islâmica Ennahda e agiram juntas por acreditarem que o inimigo do meu inimigo é meu amigo.

“A UGTT”, explica Marks, “que é o único ator com real capacidade de mobilização, tem tentado negociar bilateralmente com Saied, na esperança de que possam convencê-lo a aprovar medidas econômicas de sua própria agenda política”. A UTICA, segundo a professora, está muito desacreditada nas ruas por causa dos problemas de corrupção. E as outras duas organizações não têm capacidade real de mobilização. “A UGTT é a única com capacidade, mas não sabemos se tem vontade de se opor a Saied”, finaliza Marks.

Por sua vez, o ativista Ali Mhenni acredita que o país acaba de entrar em uma fase “saiediana”, onde “ninguém sabe os detalhes do que pode acontecer, exceto o próprio Saied e alguns de seus amigos próximos”.

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