_
_
_
_
_

Anistia Internacional acusa seis farmacêuticas de “alimentar uma crise de direitos humanos sem precedentes”

Organização pede que sejam entregues 2 bilhões de doses da vacina contra a covid-19 aos países de média e baixa renda antes do fim do ano. Denúncia vem diante da cúpula global sobre a pandemia organizada pelo presidente dos EUA, Joe Biden

Vacunas Africa
Funcionário da saúde administra uma dose da vacina Janssen, contra a covid-19, da Johnson & Johnson no bairro de Medina em Dakar, Senegal, dia 28 de julho.Leo Correa (AP)
Mais informações
Pili Ramos, encargada de desinfectar y de proveer guantes y gel a todos los clientes.
O que os epidemiologistas aprenderam com o coronavírus após um ano e meio de pandemia
Rita toma um café em área ao ar livre na Vila Madalena, em São Paulo
O Brasil busca o ‘novo normal’ pós-covid, sob alerta de especialistas para não queimar a largada
Indígenas protestando contra o marco temporal, em Brasília.
Cercado pelo agronegócio, território Xavante tem alta taxa de letalidade pela covid-19

Aviso aos leitores: o EL PAÍS mantém abertas as informações essenciais sobre o coronavírus durante a crise. Se você quer apoiar nosso jornalismo, clique aqui para assinar.

Seis empresas têm o controle majoritário do fornecimento de vacinas contra a covid-19 e alimentam uma “crise de direitos humanos sem precedentes”, uma vez que não aceitam compartilhar direitos de propriedade intelectual e sua tecnologia para elaboração das mesmas, além de priorizar a venda de doses aos países ricos. É a denúncia da Anistia Internacional no relatório Uma Dose Dupla de Desigualdade: Os laboratórios farmacêuticos e a crise das vacinas contra a covid, publicado na quarta-feira (22), coincidindo com a realização da cúpula global sobre a pandemia organizada pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden.

Graças ao aumento da vacinação, o número de mortes e as medidas de confinamento se reduziram consideravelmente na Europa, Estados Unidos e outros poucos países do mundo desde o início do verão setentrional. Ao passo que os habitantes destes países aproveitavam suas férias de verão, na África, Ásia e algumas regiões da América Latina a pandemia continuou desgastando sistemas de saúde já debilitados, tirando a vida de dezenas de milhares de pessoas que poderiam ter se salvado com uma campanha de vacinação mais equitativa mundialmente, alerta Agnès Callamard, Secretária Geral da Anistia Internacional. “Enquanto na Europa já estamos vacinando as crianças, em muitos dos países pobres nem mesmo os trabalhadores da área da saúde e as pessoas dos grupos de risco estão vacinadas”, diz Callamard.

De acordo com as estatísticas do portal Our World in Data, da Universidade Oxford, somente 2% da população dos países pobres recebeu as duas doses da vacina contra a covid, enquanto a média global chega a 43,7%. Concretamente, os países mais avançados na vacinação são os Emirados Árabes, Portugal, Espanha, Singapura e Uruguai que já superam 80% da população com esquema vacinal completo. No lado mais desfavorecido da balança da imunização, por outro lado, estão a República Democrática do Congo (com 0,04% dos habitantes vacinados), Iêmen (0,05%), Haiti (0,16%), Benin (0,17%), Chade (0,15%), República Centro-Africana (0,20%) e Papua Nova Guiné (0,44%), segundo os dados até 22 de setembro.

“É difícil encontrar uma solução viável contra uma violação maciça dos direitos humanos; existem guerras, conflitos etc., mas no caso atual da pandemia temos uma solução muito clara e factível capaz de evitar milhões de mortes: a vacinação mundial”, diz Callamard. E acrescenta: “A solução está nas mãos das farmacêuticas, dos governos, e não está sendo feita: é a maior injustiça de nossa década”.

A Anistia denuncia em seu relatório a distribuição desigual das doses no mundo a partir da análise da atividade de fabricação das vacinas de seis laboratórios: AstraZeneca, Johnson & Johnson, Pfizer, Moderna, BioNTech e Novavax (que ainda não recebeu a autorização regulamentar para que suas doses possam ser utilizadas). O estudo exclui os fabricantes russos e chineses por considerar que exista falta de transparência nos respectivos processos.

A crise provocada pela distribuição desigual de vacinas

Os analistas da Airfinity alertam que os países do G7 têm 1 bilhão a mais de vacinas do que as que necessitarão até o final do ano, e 10% delas irá vencer nesse tempo, de modo que precisam ser redistribuídas urgentemente para evitar o descarte. Diante da previsível distribuição desigual das doses, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou em abril deste ano o plano global Covax, que prometia a distribuição de mais de 2 bilhões de doses antes do fim de 2021, principalmente entre países de média e baixa renda. Mas, até o início de setembro, quatro meses antes do fim do prazo estipulado, só haviam sido entregues 243 milhões, 12,15% do prometido, segundo a Anistia. Por isso, pede aos fabricantes denunciados que entreguem 2 bilhões de vacinas às nações sem recursos.

Grande parte da produção dessas seis empresas e laboratórios farmacêuticos está sendo vendida aos países ricos. Somente 8% da produção da Pfizer/BioNTech e 3,4% da Moderna são destinadas ao plano Covax, enquanto a maioria das doses prometidas só será entregue em 2022, “muito depois de a maioria das regiões pobres já ter sofrido os estragos das novas ondas mortais da covid-19″, denuncia a ONG no relatório. A Johnson & Johnson pretende distribuir a metade de sua produção entre o Covax e a União Africana, mas, até agora, suas vendas também continuam concentradas nos países mais ricos. Somente a AstraZeneca distribuiu um terço de suas doses em países de rendas médias e baixas.

Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$

Clique aqui

A Secretaria Geral da Anistia afirma que a única forma de parar a atual pandemia é assegurar que toda a população tenha acesso aos remédios contra a covid; e atualmente a única prevenção é a vacina. É por isso que a organização recomenda que pelo menos a metade das doses produzidas pelos laboratórios farmacêuticos seja vendida aos países mais empobrecidos a preço de custo. “A política dos países ricos não faz sentido uma vez que a luta contra a pandemia deve ser feita internacionalmente, caso contrário podem surgir novas mutações”, declara Callamard, que também acrescenta a dificuldade da retomada da economia global assim como a ameaça à vida e à dignidade humana resultante da desigualdade na distribuição de vacinas.

As fabricantes de vacinas se recusam a compartilhar os meios de produção

“É um escândalo, essas empresas estão condenando milhões de pessoas à morte ao impedirem a multiplicação dos centros de produção e provocam a escassez de vacinas”, diz Callamard. De acordo com a Anistia, os laboratórios responsáveis pelas atuais doses de imunização contra a covid-19 atentam contra os direitos fundamentais quando decidem não compartilhar sua propriedade intelectual e tecnologia.

Ainda que a AstraZeneca, Johnson & Johnson, Pfizer e BioNTech tenham publicado políticas sobre os direitos humanos nos moldes das normas gerais de conduta às empresas estabelecidas pelas Nações Unidas e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), “existe um abismo imenso entre seus discursos e a realidade”, dizem os autores do relatório. No caso da atual pandemia, os laboratórios que estão produzindo as vacinas têm a responsabilidade de que estas doses cumpram os padrões de qualidade, que estejam disponíveis e acessíveis e sem obstaculizar de nenhuma maneira a capacidade dos Estados para conseguir vacinar a população, afirma a Anistia.

“As farmacêuticas são enormemente responsáveis pelos desastres atuais resultantes da covid, não estão fazendo nenhum esforço para ajudar os países com menos recursos”, declara Callamard, que considera que ainda que fosse somente por consciência as farmacêuticas deveriam liberar as patentes. Nenhuma das seis empresas analisadas pela Anistia aceitou, até hoje, participar das iniciativas internacionais para compartilhar seus conhecimentos e multiplicar a velocidade da produção de vacinas, como o C-TAP da OMS.

A AstraZeneca é a única que deu um passo à frente na divisão dos meios de produção da vacina, ainda que unilateralmente e contornando as propostas de cooperação científica global da OMS. O grupo farmacêutico sueco-britânico afirma que compartilhou sua tecnologia e seus conhecimentos com mais de 20 laboratórios associados em 15 países diferentes, dos quais já há acordos de sub-licenciamento de produção de vacinas no Brasil, China, Índia e Rússia.

O lucro econômico de poucos durante a pandemia

Em relação aos valores da venda das doses produzidas, a AstraZeneca e a Johnson & Johnson são as duas empresas com os preços mais baixos. Os preços mais altos são os das doses da Pfizer/BioNTech e Moderna, que receberão 110 milhões de euros (684 milhões de reais) pelas vendas da vacina contra a covid-19 para o período 2021/2022, de acordo com as projeções da Airfinity, empresa de estudos científicos.

A Airfinity também anunciou no começo de setembro que os países europeus, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e Japão têm um excedente para este mês de 500 milhões de doses da vacina que podem redistribuir. Dessa forma, os governos dos países mais ricos que ficaram desde o começo com boa parte das doses produzidas também têm parte da responsabilidade. Alguns governantes chegaram a tentar obter crédito econômico da pandemia com supostas negociações corruptas, como é o caso do Brasil e as negociações escandalosas na tentativa de compra de vacinas da Covaxin.

A Anistia divide as culpas e também aponta aos investidores que financiaram boa parte da produção das vacinas, a maioria bancos e gestores de ativos com base nos Estados Unidos. A Anistia identificou o movimento de 213 bilhões de euros (1,3 trilhão de reais) destinados a financiar os laboratórios que desenvolveram uma vacina contra a covid. Entre eles, se destacam o Vanguard Group e o BlackRock Inc., que investiram 56 e 52 bilhões de euros respectivamente (348 e 323 bilhões de reais). Os dez investidores mais influentes identificados pela Anistia detêm aproximadamente um terço das empresas produtoras de vacinas analisadas.

“O lucro jamais deveria ser prioritário em relação às vidas humanas”, declara Callamard, que frisa a importância da mobilização da sociedade civil que não deseja ser cúmplice do nacionalismo das vacinas. “As farmacêuticas não se importam que a pandemia e a multiplicação de variantes da covid continuem, isso significa mais vacinas e mais dinheiro, mas nós, a população, não podemos permitir que nossos governos violem maciçamente os direitos humanos das pessoas mais pobres: a redistribuição é urgente”, conclui.

Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_