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11/9, o ataque que ainda ressoa 20 anos depois

É impossível falar no passado sobre os atentados que mataram 2.997 pessoas. Da guerra no Afeganistão à obsessão pela segurança, de Guantánamo ao surgimento do Estado Islâmico, seus efeitos ainda são sentidos

Um homem chora sobre o memorial das vítimas do 11-S, esta sexta-feira em Nova York. Em vídeo, uma cronologia do que aconteceu em 11 de setembro de 2001.
Um homem chora sobre o memorial das vítimas do 11-S, esta sexta-feira em Nova York. Em vídeo, uma cronologia do que aconteceu em 11 de setembro de 2001.WILL OLIVER (EFE)
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“A espetacularidade da ação sempre foi uma característica do terrorismo, e esses terroristas tinham uma ambição dramática sem precedentes.” A frase pertence a O Vulto das Torres, livro de Lawrence Wright sobre a Al Qaeda e a gênese do 11/9. Porque o cenário dos atentados daquela terça-feira de setembro de 2001 que abalaram o mundo teve tanta importância quanto suas incontáveis consequências políticas e humanas. Que melhor maneira de desferir um ataque contra a globalização e a modernidade do que derrubar as Torres Gêmeas do World Trade Center, símbolo de um poderio planetário, ou investir contra o Pentágono, o emblema da força.

“Essas imponentes torres simbólicas que falavam de liberdade, direitos humanos e humanidade”, dizia Osama Bin Laden um mês depois em uma entrevista à Al Jazeera, tentando justificar seu ódio. Cegado, em vez de iluminado, por um totalitarismo niilista − ou a sharia ou nada −, o milionário saudita que liderou a Al Qaeda não se importou por tirar a vida de 2.997 pessoas, mais a de dezenas de milhares depois, em muitos outros atentados e guerras no resto do mundo, para impor sua visão do islã: a rigorosa doutrina salafista.

Dezenove asseclas de Bin Laden, 15 deles sauditas, viraram mártires de sua causa sinistra ao sequestrar quatro aviões comerciais transformados em armas de destruição em massa. Nas Torres Gêmeas, onde cravaram os dois primeiros às 8h46 e às 9h03, morreram 2.753 pessoas, das 16.400 a 18.000 que estavam lá dentro naquela dia. As outras perderam a vida com o avião lançado contra o Pentágono (184) − embora o primeiro objetivo dos jihadistas fosse o Capitólio − e no campo da Pensilvânia (40) para onde os passageiros reféns conseguiram desviar o quarto voo. Repetidas sem parar, as imagens das torres sendo atingidas pelos aviões e de seu desabamento apocalíptico ganharam aspecto de videogame no imaginário coletivo. Enquanto o mundo entrava em pânico, Bin Laden clamava vitória na Toca do Leão, a rede de cavernas de Tora Bora (Afeganistão). Ainda sobreviveu uma década, até um comando dos Navy Seals encontrá-lo em Abbotabad (Paquistão) em maio de 2011.

“A Guerra Fria havia acabado, a União Soviética e o comunismo já não representavam uma ameaça e os EUA eram a única potência capaz de impedir a restauração do antigo califado islâmico. Tinham de ser derrotados”, lembra Wright em seu livro. A sensação de desamparo e derrota daquele dia ressoa hoje no final inconcluso e sangrento da guerra afegã, embora as consequências da ação da Al Qaeda nunca tenham parado de ser sentidas, tanto nos Estados Unidos como no mundo. Do 11/9 a Cabul há uma linha reta, às vezes descontínua, que sempre volta ao ponto de partida.

Trabalhadores corriam pelas ruas cobrindo o rosto para tentar se protegerem da imensa nuvem de poeira./ John Street.
Trabalhadores corriam pelas ruas cobrindo o rosto para tentar se protegerem da imensa nuvem de poeira./ John Street.Jason Florio ( Redux / ContactoPhoto)

O 11/9 teve um impacto global não só pelas 93 nacionalidades dos mortos, embora em sua maioria fossem americanos, mas principalmente pela sucessão de conflitos que desencadeou: a declaração de guerra contra o terrorismo de George W. Bush e a intervenção no Afeganistão, um mês depois; a guerra do Iraque (2003), por culpa da extrapolação do republicano e de seus aliados Tony Blair e José María Aznar ante um inexistente arsenal de destruição em massa, um conflito que desviou a atenção do que era travado no Afeganistão, além de minar a região; o surgimento do Estado Islâmico (EI) como sucessor reforçado da Al Qaeda... O corolário não poderia ser mais conclusivo: a volta do Talibã ao poder no país centro-asiático, duas décadas depois de ter sido deposto por abrigar potenciais terroristas do 11/9.

Vingança colossal

Conceitualmente, o 11/9 foi uma vingança colossal contra as supostas humilhações do Ocidente, mas também contra os regimes árabes ímpios − todos os que não aplicam a sharia, segundo Bin Laden − e os correligionários mornos. Antes de se voltar contra os Estados Unidos, Ayman al Zawahiri, lugar-tenente de Bin Laden, tentou várias vezes depor o Governo egípcio; o próprio Bin Laden tentou derrubar o regime saudita. Portanto, apesar dos números terríveis dos atentados de 11 de setembro de 2001, a maior quantidade de vítimas continua sendo registrada diariamente em países muçulmanos. No entanto, a espetacularidade dos massacres na esteira do 11/9 (Bali, 2002; Madri, 2004; Londres, 2005; Mumbai, 2008) ofuscava, uma e outra vez, as vítimas não ocidentais.

Já em 12 de setembro de 2001, os talheres de metal desapareceram das bandejas de comida nos aviões. A obtenção de vistos ficou mais difícil ou impossível para cidadãos de nações árabes ou muçulmanas, até chegar ao veto migratório de Donald Trump a vários países árabes, em 2017. Os direitos fundamentais se tornaram relativos − a prova é a justificativa das torturas em Guantánamo e Abu Ghraib (Iraque) − e os serviços de inteligência e segurança, todo-poderosos. O medo de um novo ataque terrorista colonizou a política.

O voo 175 da United Airlines antes de colidir contra a Torre Sul do World Trade Center de Nova York, em 11 de setembro de 2001.
O voo 175 da United Airlines antes de colidir contra a Torre Sul do World Trade Center de Nova York, em 11 de setembro de 2001.REUTERS (REUTERS)

“O antiterrorismo se instalou na agenda política. Foi criado o Departamento de Segurança Nacional, com objetivos explicitamente antiterroristas e uma burocracia descomunal”, lembra Rajan Menon, professor de Ciência Política da Universidade de Nova York. “O 11/9 também nos legou guerras eternas, como Afeganistão e Iraque, que tiveram custos extremos, não só militares, mas também pelo grande número de civis mortos. Uma psicose de vigilância invadiu a população, quando os EUA não eram como Israel, onde todos verificavam continuamente se havia objetos suspeitos... Também aumentou o poder dos Estados, que por conta da luta antiterrorista controlam hoje as comunicações, os correios, as redes sociais”, acrescenta Menon. Segundo uma pesquisa publicada nesta semana, 46% dos americanos resistem ao escrutínio das comunicações em nome da segurança nacional.

O mundo pós-11/9 conheceu um estado exacerbado de agitação emocional, política e administrativa diante de um inimigo invisível: a rede de franquias da Jihad. “São muitos grupos, que formam uma espécie de multinacional corporativa do terror cuja própria existência e estratégia impossibilitam o objetivo de ter 100% de segurança. Por isso, a luta antiterrorista não acabará nunca”, conclui o professor.

Michael O’Hanlon, diretor do programa de Política Externa da Brookings Institution, descreve um panorama menos ameaçador. “Acho que a vida não mudou muito. É mais complicado subir em um avião, mas não é uma violação da privacidade, só um incômodo. Podemos ver um cão farejador de explosivos em um trem de vez em quando. Mas, no dia-a-dia, a ameaça do crime comum é uma preocupação muito mais séria do que os perigosos salafistas. A situação é diferente em outros países. O Oriente Médio experimentou uma violência extrema antes e depois do 11/9; a Europa, incluindo a Espanha, também sofreu o flagelo do terrorismo”, assinala O’Hanlon, a quem as pesquisa dão razão: hoje a maioria dos americanos se preocupa mais com a ameaça do terrorismo nacional do que com a do terrorismo fundamentalista islâmico.

Para muitos muçulmanos americanos, sair de casa começou a ser uma atividade de risco devido à islamofobia desencadeada; 20 anos depois, 53% da população dos EUA tem uma visão desfavorável do islã, segundo uma pesquisa encomendada pela Associated Press. “A islamofobia existia antes do 11/9, mas foi exacerbada pelos atentados. Manifesta-se de forma violenta, com agressões e ataques, e de modo mais sutil, mas evidente, como na hora de não contratar muçulmanos para postos de trabalho ou de desacreditar seu trabalho para promoções ou honras acadêmicas”, explica a ativista Debbie Almontaser, de origem iemenita, cujo filho ainda sofre com a síndrome de estresse pós-traumático após sua experiência como guarda nacional no Marco Zero do atentado às Torres Gêmeas. “Vinte anos depois, ele não voltou a ser o mesmo”, lamenta.

Atentados 11S
Bombeiros apagam incêndio no Pentágono depois do impacto de um dos aviões do 11/9. AP

Em 2007, a islamofobia quase custou a essa pedagoga e ativista comunitária seu projeto profissional mais importante: uma escola pública intercomunitária em Nova York, para crianças de todas as religiões, com aulas de árabe. “Sofri durante três anos, até que deixei o cargo [de diretora]. Foi uma campanha brutal de vários veículos de comunicação, que me acusavam de ter uma agenda oculta”, lembra. Não era apenas ela que sofria perseguição. “Até nas campanhas eleitorais o islã era usado como arma. Em 2008, [o candidato republicano John] McCain saiu em defesa de [Barack] Obama, que tinha sido chamado depreciativamente de árabe. Nos últimos quatro anos, essa culpabilização se generalizou com Trump”, acrescenta.

A cerimônia solene deste sábado em memória das vítimas não fecha um capítulo lamentável da história. A guerra contra o terrorismo se eterniza em Guantánamo, onde nesta semana foram realizadas audiências preliminares contra Khalid Sheikh Mohamed, o cérebro do 11/9, detido em 2003, e outros quatro acusados. Desde a apresentação das acusações, em 2008, os cinco estão em uma prisão que chegou a ter quase 780 jihadistas, e onde ainda permanecem 40.

Guantánamo é uma lembrança cruel do alto pedágio imposto pelo 11/9: enquanto uma segurança orwelliana era erguida em nome do bem comum, a violação de direitos humanos era vista como um mal menor, por motivo, também, de segurança: o círculo perfeito. O processo que na teoria política é chamado de securitização (a transformação de assuntos políticos comuns em questões de segurança por parte de atores estatais) é outra das grandes consequências do 11/9. A vergonha de Guantánamo e as torturas dos prisioneiros de Abu Ghraib salpicaram os quatro presidentes americanos desde 2001, enquanto a intenção de Joe Biden de fechar Guantánamo avança com pés de chumbo devido à sua exígua maioria no Congresso.

Uma pessoa cai da Torre Norte do World Trade Center.
Uma pessoa cai da Torre Norte do World Trade Center.

O impacto dos atentados também permeia a forma de fazer política no Capitólio. Depois dos ataques, os legisladores cederam ao presidente dos Estados Unidos a gestão da guerra e sobredimensionaram o capítulo da segurança, argumentam Sarah Binder e Molly Reynolds em um relatório da Brookings para o 20º aniversário dos atentados: “O crescente partidarismo no Congresso nestas duas décadas exacerba essas tendências, o que reduz ainda mais os incentivos dos legisladores para proteger e projetar seu papel institucional em relação à guerra e às relações exteriores”.

O 11/9 também reforçou o Poder Executivo. O exemplo mais evidente é a promulgação, com esmagador apoio bipartidário, de duas resoluções para o uso da força militar, em 2001 (Afeganistão) e 2002 (Iraque). Graças a elas, sem medo de restrições nem amarras, Obama ordenou o bombardeio da Líbia em 2016 e Trump, o assassinato do general iraniano Qasem el Suleimani em 2020, lembra o relatório. Biden se mostrou disposto a revogar essas disposições.

Há mais motivos pelos quais é impossível falar do 11/9 no passado. Nesta mesma semana foram identificados, graças à nova tecnologia, outros dois mortos entre os mais de 22.000 restos humanos encontrados nos escombros das Torres Gêmeas. Como se esses milhares de restos mortais falassem, o clamor das famílias das vítimas, suas exigências de justiça e transparência, também não se calam. Quase 2.000 pessoas assinaram em agosto uma carta pedindo que Biden não fosse a Nova York neste sábado se não ordenasse, antes, a liberação de documentos secretos sobre o papel da Arábia Saudita na organização dos atentados. Os Governos anteriores alegaram motivos de Estado para não publicar material sensível. Mas Biden cedeu, como tinha prometido na campanha − talvez induzido pelo constrangimento da retirada americana do Afeganistão −, e ordenou, uma semana antes deste aniversário do 11/9, que o Departamento de Justiça liberasse alguns dos documentos.

Em meio às muitas incógnitas que o 11/9 ainda provoca, pode-se falar também do aumento desmedido do orçamento de defesa dos EUA: dois trilhões de dólares (10,5 trilhões de reais) em financiamento de emergência para responder aos ataques, segundo o Serviço de Investigação do Congresso; até seis trilhões de dólares (31,5 trilhões de reais), segundo outros analistas. Das fake news geradas nas mais altas instâncias: a mais estrepitosa, a existência de armas de destruição em massa no Iraque do Saddam Hussein. Da crescente influência regional do Irã depois da derrubada de Saddam no país vizinho. E, finalmente, da existência de informes contrastantes sobre a crescente atividade dos terroristas nos Estados Unidos e em outros países muito antes dos atentados, mas isso seria puxar mais pontas soltas. Nem o roteirista mais experiente poderia concluir uma história com tantas tramas. Um thriller pós-moderno e funesto que, mesmo 20 anos depois, resiste a chegar à palavra “fim”.

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