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A ideologia do Talibã: uma mistura de fundamentalismo islâmico e costumes pashtuns

Peso da cultura local diferencia os novos dirigentes afegãos de outros islamistas radicais, abrindo uma fresta para que possam mostrar certa flexibilidade

Ángeles Espinosa
O mulá Neda Mohammad, comandante do Talibã, no domingo, em seu escritório na cidade afegã de Jalalabad.
O mulá Neda Mohammad, comandante do Talibã, no domingo, em seu escritório na cidade afegã de Jalalabad.JAMES EDGAR (AFP)

Sua interpretação do islamismo exclui qualquer desvio da ortodoxia. Seu código penal impõe castigos físicos que recordam a Idade Média. Excluem as mulheres do espaço público e, quando lhes permitem acessá-lo, exigem que elas cubram totalmente as formas do seu corpo, da cabeça aos pés. Proíbem a música e qualquer outro entretenimento. É a descrição da sociedade talibã que conhecemos na década de 1990, mas poderia ser o Estado Islâmico (EI), a Arábia Saudita (antes das últimas reformas sociais) ou mesmo o Irã revolucionário de primeira hora. Os islamistas radicais têm muito em comum, mas não são todos iguais.

Tais semelhanças levaram alguns observadores a equipararem a ideologia do Emirado Islâmico, como se autodenomina o Talibã, com o wahabismo saudita. Sem dúvida, o dinheiro que o Reino do Deserto enviou ao Paquistão para financiar a guerra dos Estados Unidos contra a União Soviética no Afeganistão durante a década de 1980 radicalizou os estudantes das madraças e favoreceu o avanço extremista na região, onde prevalecia um movimento local conhecido como Deobandi, surgido no século XIX e de origem sufista. Mas os talibãs não são wahabitas, e sua moral social tem mais a ver com suas origens pashtuns que com o islamismo.

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Bashir Ahmad, professor de Estudos Islâmicos, explica que “há muitas diferenças entre a ideologia talibã e o wahabismo”, que ele equipara à ideologia do EI, com a qual os novos governantes de Cabul rivalizam. “O Talibã segue a jurisprudência que chamamos de Hanafi, e [os grupos wahabitas] não seguem nenhuma das escolas [do islamismo sunita] Hanafi, Shafii, Maliki ou Hanbali; têm suas próprias ideias”, diz ele, falando de Cabul.

Trata-se, explica Zahid Hussain, especialista paquistanês no fenômeno Talibã, de “um movimento construído sobre o fundamentalismo islâmico e uma rigorosa adesão à conservadora cultura pashtun”. Esta distinção aparentemente acadêmica pode ser decisiva na capacidade do Talibã de se mostrar flexível ao assumir o poder. Talvez o exemplo mais visível e fácil de entender seja a burca, uma vestimenta habitual na sociedade pashtun, mas sem comparação no resto do mundo islâmico.

Em seu primeiro período no governo, o Talibã impôs a burca a todas as afegãs, sobretudo nas cidades fora de seu feudo, onde seus costumes eram mais questionados. No campo, bastou-lhes a segregação existente, e as nômades kuchi nunca utilizaram esse vestido longo com apenas uma fresta na altura dos olhos. Agora, fala-se na obrigatoriedade do hijab, não da burca.

O fato de se tratar de um imperativo cultural, mais do que religioso, permite certa flexibilidade. Apenas entre 40% e 50% da população afegã é pashtun; a outra metade, embora esteja formada por minorias étnicas que também são muçulmanas e em geral conservadoras, não adere aos mesmos códigos. Resta ver quais serão as normas, e se cobrir a cabeça bastará para que as mulheres possam trabalhar e participar da vida pública, como acontece no Irã (com um regime islâmico xiita), ou se o objetivo é voltar a trancá-las em suas casas.

A comparação com o Irã também surgiu nos últimos dias por conta da informação de que o líder do Talibã vai se tornar a máxima autoridade do país, equiparável a um chefe de Estado, com a última palavra em assuntos religiosos, políticos e militares. A figura remete à do líder supremo iraniano, atualmente o aiatolá Ali Khamenei. Entretanto, o Talibã é um grupo sunita, e na tradição dessa seita a ideia de seguir um guia (o conceito de taqleed) gera polêmica. Enquanto os deobandis o aceitam, os salafistas o rejeitam.

Sobre a nomeação de Hibatullah Akhunzadah como líder supremo, Ahmad explica que “é a norma do Talibã”. “Há uma grande diferença entre o Governo iraniano e o Governo do Talibã. Talvez de fora pareça [um cargo] como o do Governo iraniano, mas não há nenhuma relação”, salienta esse professor da Universidade Salam, de Cabul, sem entrar em detalhes concretos sobre a diferença. “Você entenderá melhor nos próximos dias”, responde, quando se pede algum exemplo.

Outra diferença importante com os wahabitas —ou salafistas, como preferem ser chamados— é o conceito de jihad, ou guerra santa. Enquanto para estes é um imperativo (como se vê na Al Qaeda e no EI), para os deobandis é um conceito menos rigoroso. De fato, embora no passado o Talibã tenha dado proteção à Al Qaeda, nunca se vinculou a operações fora de seu país. Daí que os Estados Unidos não o tenha incluído na sua lista de organizações terroristas (embora tenha feito isso com uma de suas facções, a Rede Haqqani) e tampouco considerem que agora ele represente uma ameaça direta aos seus interesses.

Significativamente, o seminário teológico Dar ul Ulum, da cidade indiana de Deobandi, de onde surgiu e tomou seu nome o movimento Deobandi, apoiou de maneira consistente as aspirações do Talibã, mas condena o terrorismo islâmico (inclusive emitiu uma fatwa a esse respeito em 2008).

Também os salafistas são mais intolerantes que os deobandis em relação os não muçulmanos (kufar) e com os muçulmanos que não seguem sua linha, como se viu no trato que o Estado Islâmico dispensou às minorias (yazidis, cristãos ou xiitas) durante o período em que se impuseram no norte do Iraque e sul da Síria. Perguntado se a ideologia do Talibã está mais próxima da teocracia iraniana ou do regime saudita, Ahmad responde que de nenhum. “Eles têm sua própria ideia de Governo”, conclui.

Embora pareça contraditório, dadas as diferenças doutrinais inerentes a ambos as ramos do islamismo, outros analistas se mostram convencidos de que hoje o Talibã têm melhor relação política com Teerã que com Riad.

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