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Extrema direita ameaça bipartidarismo tradicional da Argentina

Eleições legislativas testam a capacidade do peronismo e da oposição liberal para neutralizar candidatos como Javier Milei, inspirados em Trump e Bolsonaro

Federico Rivas Molina
O economista Javier Milei no último dia 3.
O economista Javier Milei no último dia 3.Twitter @JMilei

Javier Milei (Buenos Aires, 50 anos) está sempre desgrenhado. Diz que para secar sua cabeleira negra depois do banho diário simplesmente abre a janela do carro e se deixa pentear pela “mão invisível”. A mesma que defende com ardor quando fala do mercado e do liberalismo. Milei considera o Estado como “um inimigo”, e o socialismo como responsável por “ter matado 150 milhões de pessoas”. É economista, mas também um provocador que esquenta os programas políticos de televisão. Diz que Donald Trump “estava num bom caminho”, afirma ter participado do programa econômico de Jair Bolsonaro e se proclama “libertário”. Grita, insulta e crava os olhos sem pestanejar em quem lhe faz uma pergunta incômoda. Considerado um personagem divertido, agora virou fonte de preocupação para os políticos. Milei quer ser deputado nacional nas eleições de novembro, e tudo indica que conseguirá.

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“Estão com medo, os esquerdistas estão com medo”, gritam seus seguidores durante uma caminhada do candidato por Belgrano, um bairro de classe média e média-alta na zona norte portenha. A maioria não passa dos 20 anos. Ocorre que Milei faz um enorme sucesso entre os mais jovens, a quem convoca pelas redes sociais. “Hoje a revolução é liberal”, diz em cada entrevista, que são muitas, para explicar o perfil de seus eleitores. “Antes, ser rebelde era ser de esquerda, e agora o status quo é de esquerda. Por isso os mais jovens, que são rebeldes, abraçam o contrário das ideias de esquerda. Além disso, estão há menos tempo sendo doutrinados no sistema educacional, que na Argentina forma escravos da religião do Estado”. Sua candidata a vereadora em Buenos Aires tem apenas 18 anos e ainda não concluiu o ensino médio.

As pesquisas dão a Milei entre 5% e 12% das intenções de voto na sua circunscrição, suficiente para que sua candidatura supere o piso de 1,5% exigido para sobreviver nas eleições primárias, abertas, simultâneas e obrigatórias (PASO) marcadas para 15 de setembro. Depois virá a disputa final em 14 de novembro, quando certamente conseguirá uma vaga. “O voto de Milei é um voto de protesto, de gente descontente com a economia”, diz Victoria Murillo, diretora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Columbia (EUA). Embora sempre tenha existido uma alternativa de extrema direita na Argentina, “a característica de Milei é a estridência e que se apresenta como antissistema. Ocorre que hoje a rebeldia é o liberalismo”, diz.

Milei dispara suas ideias como dardos, em frases curtas. Diz que “os três direitos básicos são a vida, a liberdade e a propriedade” e que “os impostos são um lastro da escravidão”. Declara-se contrário ao aborto, a favor das uniões entre casais do mesmo sexo, “porque o matrimônio é um contrato”, defensor do porte de armas “porque tira do Estado o monopólio da violência” e disposto a liberar o consumo de drogas: “Se você quer se suicidar, não tenho nenhum problema”. Em seus comícios, promete “acabar com a casta política”, à qual se sente alheio. O peronismo, e principalmente sua corrente kirchnerista (de esquerda), é tudo o que Milei detesta. E quando fala da oposição de direita, reunida ao redor da figura de Mauricio Macri, a chama de “kirchnerismo com boas maneiras”, “populismo cool” e “socialismo amarelo”, em referência às cores da coalizão.

Enquanto isso, Milei convoca uma guerra moral. “Não podemos continuar abraçando os valores morais do socialismo, que são a inveja e o ressentimento, o trato desigual perante a lei, o roubo e até o assassinato. Quando a Argentina abraçou a ideia da liberdade, com a Constituição de 1853, em 35 anos nos transformamos no país mais rico do mundo”, disse no canal de televisão do jornal La Nación.

O sistema político argentino está hoje estruturado em duas grandes coalizões, na contramão da maior parte da região. Enquanto os candidatos independentes monopolizaram a Assembleia Constitucional no Chile e um quase desconhecido professor rural chamado Pedro Castillo é hoje o presidente do Peru, na Argentina o cenário político é dominado pela Frente de Todos (peronista) e o Juntos pela Mudança (centro-direita liberal).

Essas duas coalizões vêm servindo de barreira contra as irrupções antissistema e conseguiram manter a paz social, mas “podemos estar agora diante do começo de algo complicado, porque é possível que sua eficácia não prossiga indefinidamente”, adverte o cientista político Eduardo Fidanza, diretor da consultoria Poliarquía. “Que a Argentina, com a pobreza e a inflação que tem, não tenha gerado protestos tem a ver com o peronismo, os sindicatos, a Igreja e os movimentos sociais. Mas estes anticorpos podem não ser absolutos”, acrescenta.

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A Argentina não cedeu a figuras como Milei nem sequer na crise do corralito de 2001 e 2002. E quando em 2015 o modelo kirchnerista se esgotou, o sistema pendeu para uma alternância com o macrismo. O fracasso econômico ejetou Macri do poder após um só mandato, e os argentinos abraçaram outra vez o peronismo kirchnerista. Vitória Murillo diz que “estas novas coalizões [surgidas no começo do século] se organizaram mais ideologicamente do que era tradição no sistema argentino”, que historicamente abrigou num mesmo partido, o peronista, todos os extremos possíveis. Como “o kirchnerismo, o centro gravitacional do peronismo se deslocou para a esquerda”, e assim sobraram brechas para que figuras como Milei “tenham uma chance”.

Acontece que décadas de crise econômica minaram o poder de aglutinação do peronismo tradicional, baseado nos sindicatos. O desemprego e a informalidade tiraram poder dessas organizações verticalizadas. “Argentina, Uruguai e Bolívia estão organizados em dois polos”, diz Murillo, “mas isso não significa que com mudanças na estrutura social o sistema não exploda”. Portanto, há espaço na Argentina para um candidato antissistema, ao estilo Bolsonaro? “Por enquanto”, diz Eduardo Fidanza, “há impugnações sistêmicas e discussões sobre a natureza da democracia, mas regras básicas como a transparência das eleições e a alternância se mantêm”. Murillo concorda que estas eleições legislativas e as presidenciais de 2023 não levarão um antissistema ao poder, mas adverte: “Não sei se poderei dizer o mesmo em 2027”.

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