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Governo Ortega deixa sem papel e tira de circulação o principal jornal da Nicarágua

Retenção da matéria-prima do ‘La Prensa’ aprofunda o blecaute informativo imposto pelo regime durante a campanha eleitoral

Jornaleiro oferece exemplares do ‘La Prensa’ numa rua de Manágua, em 16 de abril de 2020. / INTI OCON / AFP
Jornaleiro oferece exemplares do ‘La Prensa’ numa rua de Manágua, em 16 de abril de 2020. / INTI OCON / AFPINTI OCON (AFP)
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O jornal La Prensa, o mais antigo da Nicarágua, não chegará às bancas nesta sexta-feira, porque o Governo de Daniel Ortega e Rosario Murillo impôs um bloqueio alfandegário ao papel necessário para imprimi-lo. “O papel se encontra sequestrado”, alertou a edição digital do único jornal de alcance nacional que resta no país centro-americano. A medida reforça o blecaute informativo provocado pela escalada repressiva do regime sandinista através do Ministério Público, que persegue jornalistas com a chamada Lei dos Crimes Cibernéticos e manda para a prisão os opositores que se atrevem a dar declarações aos meios de comunicação independentes.

Não é a primeira vez que a administração Ortega-Murillo impõe um embargo alfandegário ao papel e à tinta do La Prensa, mas é a primeira ocasião em que sua edição impressa —assim como a do jornal popular Hoy, da mesma editora— deixa de circular por falta de material. O embargo anterior durou mais de 500 dias, até 6 de fevereiro de 2020, quando o regime liberou várias toneladas de papel, tinta e demais insumos graças à mediação do núncio apostólico, monsenhor Waldemar Stanislaw Sommertag.

“O papel se encontra sequestrado porque as autoridades da Direção Geral de Alfândega (DGA) não aprovam o trâmite do pedido de isenção feito pelo La Prensa desde 26 de julho”, informou o jornal. “Segundo a lei, as autoridades têm um máximo de dias para responder a essa solicitação. Entretanto, nesta ocasião passaram-se 18 dias desde o início do trâmite”, acrescenta o texto. Segundo o artigo 68 da Constituição Política da Nicarágua, os meios de comunicação com “função social”, como o La Prensa, estão isentos de “qualquer tipo de impostos”.

O trâmite para importar insumos foi relativamente normal até 2018, quando eclodiram os protestos sociais contra o Governo. As revoltas foram neutralizadas com violência, como denunciaram organismos de direitos humanos, e os meios de comunicação se tornaram cruciais para documentar a repressão, ao mesmo tempo em que o Governo se voltou contra as redações. Foram confiscados equipamentos dos canais 100% Notícias e Confidencial, e os dois jornais de circulação nacional, La Prensa e El Nuevo Diario, foram submetidos a um longo bloqueio alfandegário. O El Nuevo Diario não resistiu à falta de matéria-prima e fechou definitivamente em setembro de 2019, após 40 anos de circulação.

“O custo do papel e os insumos [retidos em 2018] ascendeu a 225.352 dólares [1,18 milhão de reais], mais o pagamento dos armazéns públicos. Nessa ocasião a matéria-prima foi liberada [...]. Entretanto, os 17 meses de sequestro causaram grandes prejuízos à empresa, já que esta precisou imprimir em papel mais caro e se viu forçada a cortar fortemente o alcance da circulação, reduzindo grandemente as vendas”, recordou o La Prensa.

Gráfico prepara um cilindro de papel antes de pôr em funcionamento a rotativa do jornal La Prensa, em Manágua, em 7 de fevereiro de 2020.
Gráfico prepara um cilindro de papel antes de pôr em funcionamento a rotativa do jornal La Prensa, em Manágua, em 7 de fevereiro de 2020. OSWALDO RIVAS (Reuters)

Desde aquele episódio, a direção do jornal faz importações de lotes menores de insumos, em intervalos mais curtos, para poder esquivar as restrições da DGA. O Governo sandinista, que descreve a mídia como “terroristas da comunicação”, decidiu agora torpedear o órgão decano da imprensa nicaraguense, em um contexto eleitoral questionado.

Blecaute informativo

O embargo do papel do La Prensa é parte de uma escalada repressiva que já levou à prisão de 32 líderes opositores, incluindo sete pré-candidatos presidenciais, à cassação de todos os partidos de oposição e à imposição de uma eleição sem concorrência nem transparência. Ao mesmo tempo, o Ministério Público atacou dezenas de jornalistas com base na Lei dos Crimes Cibernéticos. A perseguição impulsionou uma nova onda de repórteres partindo para o exílio.

A maioria de jornalistas saiu de maneira irregular da Nicarágua para evitar que as autoridades de Migração lhes confiscassem seus passaportes, como aconteceu com Julio López, do programa de rádio Onda Local, e com outros opositores que tentaram sair de maneira formal.

A perseguição política causou também um “blecaute informativo” sem precedentes no país: as principais fontes que costumavam ser ouvidas pelos repórteres têm optado por se autocensurar, depois que especialistas eleitorais foram detidos por expressarem suas opiniões nos meios de comunicação. O caso mais claro foi o de José Antonio Peraza, capturado horas depois de alertar na televisão local sobre a falta de garantias nas eleições de novembro.

“A perseguição sistemática e generalizada contra a imprensa independente desencadeou que hoje na Nicarágua as fontes informativas não queiram falar com a imprensa independente por medo de enfrentar um processo judicial posterior; as poucas fontes informativas que opinam sobre temas de interesse nacional o fazem sob a condição do anonimato, o que constitui um grave retrocesso em matéria de liberdades públicas”, alertou em julho de 2021 o monitoramento dos casos de violações à liberdade de imprensa mantido pelo próprio La Prensa.

Um exemplo do que diz o jornal foi o fechamento judicial de 24 ONGs, principalmente organizações médicas que, na falta de informação pública oficial sobre os efeitos da pandemia da covid-19, eram fontes primárias de informação para os jornalistas independentes.

“Não é apenas um blecaute informativo, porque o blecaute informativo se limitaria aos meios de comunicação”, diz a socióloga Elvira Cuadra. “Isto inclui tanto organizações como pessoas individuais. Algumas detenções, sobretudo as últimas, têm todas essas características: depois de conceder entrevistas e emitir sua opinião, as pessoas são detidas e lhe são aplicadas leis e artigos que não fazem sentido”, acrescenta.

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