_
_
_
_
_

Quando a política se interpõe às medalhas

A fuga da atleta belarussa Tsimanuskaia retrocede aos tempos da Guerra Fria e destaca o papel dos Jogos como palco de conflitos mundiais

Caso Tsimanuskaia
Jesse Owens no pódio olímpico depois de sua vitória no salto em distância nos Jogos Olímpicos de Berlim 1936.Popperfoto
Cecilia Ballesteros

A fuga para a Polônia da corredora belarussa Kristsina Tsimanuskaia depois de sua fracassada participação nos Jogos de Tóquio voltou a colocar em evidência como o grande evento global do esporte é, desde seu início na era moderna em Atenas em 1896, uma enorme caixa de ressonância das tensões da política internacional do momento, cenário desde a ascensão inexorável de Hitler aos atentados terroristas, passando por vetos, protestos e boicotes a países de todo tipo.

Mais informações
Kristsina Tsimanuskaia Bielorrusia
Kristsina Tsimanuskaia, a dissidente acidental
Krystsina Tsimanouskaya
Atleta belarussa procura asilo na Polônia após denunciar que tentavam enviá-la a Minsk à força
El boxeador venezolano Eldric Sella entrena en Trinidad y Tobago
Eldric Sella, o primeiro latino-americano na equipe olímpica de refugiados

Tsimanuskaia é, por enquanto, a última de uma longa série de atletas que escolheram a liberdade e decidiram não voltar aos seus países de origem, embora no caso dela parece ter pesado mais o medo do que a dissidência política. Antes dela, nos Jogos de Londres 2012 mais de uma dúzia de atletas africanos, camaroneses, congoleses e sudaneses pediu asilo no meio da noite em delegacias da polícia britânica e, mais recentemente, nos Jogos do Rio 2016, foi criada a Equipe de Atletas Refugiados sob a bandeira olímpica, formada por atletas da Síria, Sudão do Sul, Etiópia e República Democrática do Congo. Em Tóquio são 29, muitos deles sírios, iranianos e afegãos. “Parece como se os Jogos Olímpicos, o mais lucrativo e político de todos os eventos esportivos do planeta, continuassem sendo usados para ações políticas. Está claro que a situação de países como Rússia, Belarus e Ucrânia veio à tona nestes Jogos”, diz em um e-mail Jonathan Grix, professor de Política do Esporte da Universidade de Manchester.

O caso Tsimanuskaia traz à memória as grandes deserções da Guerra Fria. A primeira atleta a fugir da cortina de ferro foi a ginasta tchecoslovaca Marie Provaznikova, e o fez nos Jogos de Londres, em agosto de 1948. Meses antes, em janeiro, havia acontecido o golpe comunista em Praga e o consequente controle do país centro-europeu pela União Soviética. Antes de viajar à capital britânica, Provaznikova liderou uma manifestação em Praga com mais de 20.000 atletas femininas em apoio ao presidente deposto, Edvard Benes. Uma vez em Londres e depois de fazer as ginastas das quais era treinadora ganharem a medalha de ouro, Provaznikova pediu asilo aos Estados Unidos. “Sou uma refugiada política e tenho orgulho disso”, disse na ocasião em tom de desafio.

Não estranha que com esse precedente a República Tcheca tenha sido um dos primeiros países a se oferecer para receber Tsimanuskaia quando se soube das intenções de fugir da tirania do presidente belarusso, Alexandr Lukashenko, e foi também a primeira vez que o COI protegeu uma atleta. “O que parece com a Guerra Fria é que um Estado queira vigiar as idas e vindas de seus atletas. A URSS se recusou a participar dos Jogos Olímpicos até 1952. Aceitou participar em troca de que houvesse uma vila olímpica específica para os seus atletas, para que não pudessem fugir para o ocidente. Então havia uma vila olímpica para homens, outra para mulheres e outra para atletas soviéticos ou de países comunistas”, diz Pascal Boniface, diretor e fundador do think tank francês Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (IRIS na sigla em francês) em um e-mail. “Na Europa há uma nova cortina de ferro entre a UE e os países que estão sob influência russa”, diz Javier Roldán, professor de Direito Internacional Público e Relações Internacionais da Universidade de Granada, por telefone. “O regime belarusso não seria possível sem o apoio de Moscou. As ditaduras perseguem cada vez mais os dissidentes, não só dentro, mas também fora de suas fronteiras”.

Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$

Clique aqui

Muito mais famosa foi a fuga protagonizada por dezenas de atletas húngaros nos Jogos de Melbourne, em 1956. Semanas antes do evento, os tanques soviéticos tinham esmagado a revolução húngara nas ruas de Budapeste. A equipe olímpica húngara soube do que aconteceu pela imprensa quando já havia aterrissado na capital australiana. Daqueles Jogos ficou na memória do esporte a semifinal de polo aquático entre Hungria e União Soviética, que passou a ser chamada de “o banho de sangue” devido à violência empregada pelos jogadores de ambas as equipes. A maioria dos atletas húngaros encontrou refúgio nos Estados Unidos, outros na Austrália e alguns voltaram ao seu país. Naquele mesmo ano fugiram alguns jogadores de futebol lendários como Czibor, Kocsis e Puskas, entre outros, que foram para a Espanha.

Desde então, e principalmente na década de setenta, tornou-se habitual a fuga de atletas do bloco soviético. Os Jogos de Munique 1972 e Montreal 1976 tiveram a fuga de dezenas de atletas, principalmente russos e romenos. Mais recentemente, meses antes de Pequim 2008, sete jogadores da seleção cubana sub-23 decidiram se refugiar em um hotel na Flórida até obterem asilo nos EUA e nenhum dos cinco boxeadores cubanos que venceram em Atenas 2004 voltou a competir por seu país nos jogos realizados na capital chinesa. Três escaparam, outro foi expulso da equipe olímpica por tentar fugir e outro se aposentou.


O jogador cubano Yordany Álvarez antes de desertar, na partida contra os Estados Unidos nas eliminatórias para Pequim 2008.
O jogador cubano Yordany Álvarez antes de desertar, na partida contra os Estados Unidos nas eliminatórias para Pequim 2008.GERARDO MORA (EFE)

Mas os Jogos Olímpicos constituem por si mesmos uma cronologia dos conflitos mundiais e uma galeria animada dos gestos que marcaram o protesto e a sensibilidade de cada época. Após a exclusão da Alemanha nos Jogos de Antuérpia 1920 e Paris 1924 por ser a potência derrotada na Primeira Guerra Mundial, o nazismo não hesitou em transformar os Jogos de Berlim 1936 em um formidável instrumento de propaganda do Reich que sonhava ser eterno. A pressão dos Estados Unidos obrigaram o regime, sob ameaça de boicote, a retirar os cartazes de “judeus indesejáveis” e os atletas franceses parodiaram a saudação nazista em seu desfile, mas a imagem que ficou na história foi a recusa de Hitler em parabenizar e apertar a mão do atleta afro-americano Jesse Owens. Anos depois, em Helsinque 1952, a Alemanha voltaria a competir e a URSS estrearia com esse nome. Nos Jogos seguintes, Melbourne 1956, Espanha e Holanda não compareceram em protesto contra a invasão soviética da Hungria; Iraque e Líbano tampouco, como represália a Israel, nem a China de Mao pela presença de Taiwan. Os Jogos de Roma 1960 marcaram o fim das participações da África do Sul do apartheid.

Os Jogos do México 1968 foram um marco na manifestação do protesto quando os velocistas norte-americanos Tommie Smith e John Carlos subiram ao pódio para receber suas medalhas e ergueram os punhos com luvas pretas em apoio ao movimento Black Power. A partir de então, gestos de protesto se sucederam a tal ponto que em 1975 o Comitê Olímpico Internacional (COI) criou a regra 50 da Carta Olímpica, revisada em várias ocasiões e endurecida em 2020, para proibir qualquer manifestação de propaganda política, religiosa ou racial na sede olímpica com risco de ser sancionado e até expulso o atleta que o fizer. No entanto, pouco podem fazer as restrições na era das redes sociais. Como diz Patrick Merle, professor associado e diretor da Escola de Comunicação da Universidade da Flórida, “a nova moda é que esse tipo de manifestação agora se faz nas redes sociais, no caso de Tsimanuskaia no Instagram, e os atletas parecem mais vigiados e controlados, dependendo de seus países de origem”.

Tommy Smith e John Carlos erguem o punho em solidariedade ao movimento Black Power no México 1968.
Tommy Smith e John Carlos erguem o punho em solidariedade ao movimento Black Power no México 1968.NCAA Photos (NCAA Photos via Getty Images)

Os Jogos do México também foram marcados pela violência. Dias antes da abertura, o Governo do presidente Díaz Ordaz afogou em sangue a revolta estudantil de Tlatelolco, causando dezenas de mortes. A violência reapareceu em Munique 1972, cujo lema oficial era “Os Jogos alegres”, quando o comando palestino Setembro Negro invadiu o alojamento de Israel e sequestrou 11 atletas desse país. A operação terminou em um massacre depois que a Alemanha orquestrou uma emboscada no aeroporto em que terroristas e reféns pegariam um avião para o Cairo. Todos os reféns foram assassinados e apenas três dos agressores foram presos. Anos depois viria o boicote ocidental aos Jogos de Moscou 1980 pela invasão soviética do Afeganistão. O Kremlin pagaria na mesma moeda não comparecendo a Los Angeles 1984. Mas o mundo estava começando a mudar. Em Barcelona 1992 a URSS já não participou –a maioria de suas ex-repúblicas o fez com a bandeira da Comunidade de Estados Independentes (CEI)– e a África do Sul voltou, já com Mandela. E começou a ascensão da China, não apenas no esporte.

Quadro de dissidentes

Entre as deserções políticas de maior repercussão estão as dos jogadores de xadrez, o chamado esporte científico, tantas vezes tabuleiro da Guerra Fria e nunca de forma mais contundente do que naquela mítica final do campeonato em Reykjavik, em 1972, entre o norte-americano Bobby Fischer e o soviético Boris Spassky. Fisher conquistou o título depois de sete vitórias, três derrotas e 11 empates. A humilhação foi tal que Spassky caiu em desgraça na URSS e acabou se naturalizando francês em 1984.

O primeiro enxadrista a fugir foi Alexander Alekhine, que escapou dos bolcheviques em 1921, mas o movimento mais inesperado foi feito por Viktor Korchnoi, que conquistou o campeonato soviético em 1960. Isso permitia que ele jogasse mais torneios internacionais, mas a cada vez que voltava de uma viagem, suas andanças eram examinadas com lupa no Comitê de Esportes: ir ao cinema ou tomar uma bebida eram atividades suspeitas. “Em geral, digamos que não era um dos favoritos das autoridades”, dizia. Mesmo assim, filiou-se ao Partido Comunista, mas isso não melhorou sua posição, razão pela qual, durante um torneio em Amsterdã, em 1976, aproveitou para visitar o dissidente Andrei Amalrik, autor do livro A União Soviética Sobreviverá Até 1984?, com quem travou forte amizade. Depois de vencer o torneio, em vez de se apresentar na embaixada soviética como estava previsto, pediu asilo na Holanda, embora tenha acabado se naturalizando suíço. A Holanda permitiu que permanecesse no país, mas não lhe concedeu o estatuto de refugiado.

 

Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui

Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_