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O golpe mais simbólico de Daniel Ortega na Nicarágua

Regime detém três figuras importantes do sandinismo, companheiros do mandatário nicaraguense na luta da guerrilha contra a ditadura de Somoza

Carlos S. Maldonado
El presidente nicaragüense Daniel Ortega, su esposa, la vicepresidenta Rosario Murillo, y su hija Camila Ortega
O presidente nicaraguense, Daniel Ortega, sua esposa, a vice-presidenta Rosário Murillo, e sua filha Camila Ortega, assistem em julho de 2019 à comemoração dos 40 anos da Revolução Sandinista.INTI OCON (AFP)

Daniel Ortega impôs um duro golpe ao sandinismo. O presidente nicaraguense, ex-guerrilheiro transformado em autocrata, ordenou no domingo a detenção de três relevantes figuras sandinistas e ex-companheiros de armas na luta contra a ditadura da dinastia Somoza (1937-1979): Dora María Téllez, Víctor Hugo Tinoco e Hugo Torres.

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FILE - In this March 21, 2019 file photo, Nicaragua's President Daniel Ortega speaks next to first lady and Vice President Rosario Murillo during the inauguration ceremony of a highway overpass in Managua, Nicaragua. Nicaragua’s National Police have arrested on Tuesday, June 8, 2021, two more potential challengers to President Ortega, the third and fourth opposition pre-candidates for the Nov. 7 elections detained in the past week. (AP Photo/Alfredo Zuniga, File)
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Ortega salda assim uma velha dívida, porque sempre tachou de traidores os que deixaram a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN, o partido que ele controla) e mais tarde se tornaram opositores ao seu regime. “Assim são as voltas que a vida dá, os que uma vez acolheram princípios hoje os traíram”, disse Torres em um vídeo gravado enquanto sua casa estava cercada pela polícia de Manágua, minutos antes de sua captura.

Téllez, Tinoco e Torres representam o velho sandinismo que combateu a ditadura, primeiro de forma clandestina, e depois com ferozes ofensivas contra o regime direitista de Anastasio Somoza. Torres participou de um comando de 13 guerrilheiros que em 1974 invadiu a casa de um ministro de Somoza, José María Castillo, situada em uma zona residencial de classe alta em Manágua. Naquela noite Castillo organizava uma festa, e os convidados foram feitos reféns pelos guerrilheiros, uma das principais ações da FSLN contra o somozismo, que permitiu a liberação de dezenas de presos políticos.

Torres também participou com Téllez da invasão do Palácio Nacional, sede do Parlamento somozista, outra ousada operação dos rebeldes e um dos maiores golpes contra a ditadura. Em 1973, com apenas 20 anos, Víctor Hugo Tinoco foi “recrutado” pela guerrilha da Frente Sandinista. Era um jovem idealista, educado nos valores cristãos de justiça por sacerdotes franco-canadenses, em um ambiente influenciado pela Teologia da Liberação e sua opção preferencial pelos pobres.

“A revolução sandinista e toda a façanha heroica, de luta da juventude dos anos setenta, foi basicamente antiditatorial, antidinástica e pela liberdade da Nicarágua. Essas eram as aspirações fundamentais do grosso dos combatentes da Frente Sandinista. Estou certo, conforme entendo a esta altura, que havia alguns setores muito reduzidos que tinham outras agendas, outros projetos mais ideologizados, mas o motivo que empurrou a nossa juventude dos anos setenta era acabar com a dinastia e obter a liberdade da Nicarágua”, disse Torres ao EL PAÍS em 2019.

Os três ex-guerrilheiros se distanciaram da Frente Sandinista depois da perda das eleições em 1990 e devido ao controle que Daniel Ortega começou a exercer sobre o partido, sufocando as vozes críticas e fechando-se a uma abertura democrática para as eleições dos quadros políticos da organização, até transformá-lo em um aparelho pessoal, com ele e sua esposa, Rosario Murillo, atual vice-presidenta, como figuras centrais.

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“Daniel Ortega se apropriou do partido da revolução, a Frente Sandinista, a desnaturalizou e a transformou no seu partido, em um partido familiar. O mesmo que Ortega fez com a FSLN, privatizando-a e transformando-a em instrumento a serviço de seus interesses, fez com todo o Estado. Hoje, todas as instituições do Estado estão subordinadas politicamente à sua vontade. E a subordinação que Ortega obteve nas instituições é maior que a obtida por Somoza, porque nos tempos de Somoza havia algum grau de independência no Poder Judiciário e havia juízes que paravam Somoza com firmeza e atuavam com a lei na mão”, escreveu Torres em uma análise publicada pela revista Envío, da jesuíta Universidade Centro-Americana.

Dora María Téllez, a mítica Comandante Dois da revolução sandinista, disse em 2016 ao EL PAÍS que Ortega pretende “institucionalizar a sucessão familiar” para garantir a permanência no poder da Frente Sandinista, a qual, na opinião da ex-guerrilheira, Ortega “parasitou” até transformá-la em “uma entidade dominada por um caudilho” e uma “organização familiar”.

“Ortega só vai sair morto da chefia da Frente Sandinista, mas Rosario Murillo está na linha de sucessão”, disse Téllez. “Deram todo o poder a Murillo. A sucessão é uma chave que ainda está com Ortega. Precisam institucionalizar a sucessão familiar”, reiterou.

Devido a estas críticas e da sua posição contrária à instauração de uma nova ditadura na Nicarágua, os três ex-guerrilheiros, que mantêm vivo o sandinismo, foram detidos ironicamente pelo homem com quem outrora compartilharam ideais de liberdade, hoje transformado em déspota.


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