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O preço que o presidente de El Salvador está disposto a pagar para ‘bitcoinizar’ o país

Um anúncio em inglês em uma conferência em Miami e a aprovação expressa da criptomoeda transformaram Bukele em herói ‘geek’. Mas a volatilidade e o crime cibernético preocupam os especialistas

Bukele fala durante uma entrevista coletiva em San Salvador, em 6 de junho.
Bukele fala durante uma entrevista coletiva em San Salvador, em 6 de junho.JOSE CABEZAS (Reuters)
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O presidente Nayib Bukele levou sua personalidade a novos patamares como o millennial disruptivo que vai onde ninguém mais se atreve e até as últimas consequências. Embora ninguém saiba muito bem quais podem ser as consequências: El Salvador será o primeiro país do mundo a adotar o Bitcoin como moeda oficial, decisão anunciada em inglês e aprovada de maneira expressa por um Parlamento controlado por seu partido, sem dar muitas explicações aos salvadorenhos. O momento não poderia ser mais delicado. Em todo o mundo aumentam os ataques de ransomware —programas maliciosos usados por cibercriminosos para bloquear o acesso a um sistema ou sequestrar seus dados—, paralisando setores econômicos inteiros, e são habilitados pela moeda dos hackers: o Bitcoin.

“Isto criará postos de trabalho e ajudará a proporcionar inclusão financeira a milhares de pessoas que estão fora da economia formal”, disse Bukele sob aplausos no sábado passado ao anunciar sua proposta, em um vídeo apresentado em uma conferência sobre a criptomoeda realizada em Miami. A mensagem, em inglês, era destinada a um público de fãs de tecnologia e criptomoedas. Mas foi também a primeira vez que grande parte dos salvadorenhos ouviu falar da nova moeda que em breve estará em suas vidas. Bukele foi apresentado por Jack Mallers, diretor da plataforma de pagamento Strike, um jovem de 27 anos que passou três meses em El Salvador.

No vídeo do evento, Mallers aparece contando emocionado como em sua viagem conheceu Yusef, um dos irmãos mais novos do presidente. “Se você resolver o problema do dinheiro, pode resolver os problemas do mundo”, diz o jovem —ovações do público— antes de destacar que, com a criptomoeda, os salvadorenhos que moram nos Estados Unidos poderiam enviar dinheiro para suas famílias sem ter de pagar altas comissões. Em seguida, dá lugar ao presidente, que aparece em uma tela: “A médio e longo prazo, esperamos que esta pequena decisão nos ajude a empurrar a humanidade, pelo menos minimamente, na direção adequada”, disse Bukele —ovações do público—, sem especificar como. Pouco depois, no Twitter, o mandatário de 39 anos respondeu a algumas perguntas e estimou que se 1% da atual capitalização em Bitcoin fosse investida em seu país, poderia aumentar o produto interno bruto em 25%.

“As pessoas o aplaudiram como um telepregador”, diz ao EL PAÍS o jornalista do portal El Faro, Nelson Rauda, que acompanhou a aprovação legislativa da medida. “A partir daí começou e não parou. Colocou essa coisa de raios laser nos olhos [na foto de seu perfil no Twitter, um símbolo dos fãs de Bitcoins] e muitos funcionários o imitaram; começou a tuitar em inglês e voltou a ser aquele Nayib Bukele que seduziu o público internacional no início de seu mandato”. Três dias depois desse megaevento em Miami, na terça-feira, a lei chegou à Assembleia Legislativa, onde o partido do presidente, Novas Ideias, que tem maioria, contornou os procedimentos habituais para tramitar a lei. A norma foi aprovada de maneira expressa em apenas cinco horas e quase sem debate.

Voltar a ser ‘cool’

Embora os Bitcoins serão moeda oficial em El Salvador em menos de 90 dias, Rauda diz que Bukele não explicou a decisão em nenhuma entrevista coletiva. Só o fez por meio das redes sociais e principalmente em inglês. Além disso, enquanto os parlamentares tramitavam a norma na Assembleia Legislativa, o presidente estava no fórum de debates de áudio do Twitter —Spaces— explicando a lei com o irmão Karim para um público de língua inglesa. “Comecei a ouvir e disse: ‘Não faz sentido continuar ouvindo o projeto de lei, que tem duas páginas, e os deputados estão falando de coisas que não têm relevância’”, diz Rauda. “No Spaces eles deram muitos detalhes da lei que não estavam dando no plenário. Havia coisas muito absurdas, como que na Assembleia se estava dizendo que o uso de Bitcoins não seria obrigatório e perguntaram isso ao presidente, que disse que sim”.

A decisão de implementar os Bitcoins no país e focar no público internacional é interpretada por Eduardo Escobar, diretor da ONG Acción Ciudadana, como uma “cortina de fumaça” para desviar a atenção dos problemas pelos quais seu Governo foi questionado e uma maneira de “mudar sua imagem em nível internacional” em um momento em que o país está se afastando dos Estados Unidos e das organizações internacionais e aproximando-se da China.

“Houve um golpe de Estado em 1º de maio, liderado por Bukele e apoiado pela Assembleia Legislativa, no qual afastaram os magistrados e o procurador. Na semana passada soubemos que o Governo expulsou a Comissão Internacional contra a Impunidade em El Salvador porque investigava 12 casos de corrupção do atual Governo”, aponta Escobar, que compara a adoção da criptomoeda com a dolarização do país de 2001, feita “sem consultas, de costas para a população e de madrugada”.

“Vínhamos de uma série de coisas que minaram sua imagem e com isto ele voltou a ser o Nayib cool, o Nayib admirado, audacioso, revolucionário”, concede Rauda. “É como uma volta ao back to basics para ele.” Enquanto em casa Bukele mantém níveis de popularidade acima de 70%, a decisão de adotar o Bitcoin e a ordem posterior de gerar um plano para que no país se possa minerar a criptomoeda com energia vulcânica lhe renderam novos seguidores entre os fãs da tecnologia.

Um ‘velho oeste’ virtual

Para além do mundo geek, dúvidas e incertezas dominam a análise dessa decisão por parte dos especialistas e dos setores mais críticos em seu país. “Os riscos de cibersegurança associados à integração da criptomoeda no sistema financeiro da nação são inúmeros”, diz Steven Silberstein, diretor geral da FS-ISAC, organização global de intercâmbio de inteligência cibernética com foco em serviços financeiros. Os governos trabalharam durante décadas para garantir a segurança dos bancos e das instituições financeiras, razão pela qual hoje são consideradas “infraestrutura crucial”, explica o especialista. “Recursos substanciais foram investidos para garantir que bilhões de pessoas que dependem de um sistema financeiro estável possam passar seus dias sem se preocupar com um colapso financeiro catastrófico resultante de um ataque cibernético em grande escala.”

Un pequeño restaurante en la playa de El Zonte, en Chiltiupan (El Salvador), que acepta bitcoins en una foto del 8 de junio.
Un pequeño restaurante en la playa de El Zonte, en Chiltiupan (El Salvador), que acepta bitcoins en una foto del 8 de junio.JOSE CABEZAS (Reuters)

Silberstein lembra um episódio devastador em 2014, quando um intercâmbio de criptomoedas no Japão chamado Mt Gox foi hackeado e foram roubados centenas de milhares de Bitcoins (que hoje são negociados a cerca de 36.000 dólares cada, o que causou um prejuízo de muitos milhões). O que foi roubado nunca se recuperou, em parte porque, ao contrário do dinheiro depositado em uma conta bancária, é muito difícil rastrear quem possui criptomoedas. Este tipo de moeda não é respaldado por pessoas, por organizações ou pela confiança em um banco, mas por uma linguagem matemática secreta chamada criptografia.

Há um mês, o presidente norte-americano Joe Biden fez um pronunciamento especial na televisão para falar do ataque cibernético que paralisou um gasoduto, no qual hackers extorquiram autoridades e pediram pagamento em Bitcoin em troca da liberação do sistema. Foi a primeira vez que um mandatário desse país abordou o problema do ransomware, um tipo de ataque cibernético em que os criminosos costumam pedir um pagamento em troca da liberação de um sistema informático. A senadora Elizabeth Warren postou uma mensagem na quinta-feira referindo-se às criptomoedas como “o velho oeste” e pediu uma regulamentação estrita para proteger os investidores e enfraquecer o crime cibernético.

“O uso de criptomoedas certamente permitiu ataques de ransomware”, analisa Silberstein. Segundo a Chainalysis, empresa de análise sobre o assunto, a prática causou 350 milhões de dólares em prejuízos no ano passado, um aumento de 311% em relação a 2019, o que coincide com um salto exponencial na demanda e no preço das criptomoedas em nível mundial. Dos EUA à Ucrânia, ataques desse tipo paralisaram as bolsas, ministérios de Governo e até plantas nucleares.

No caso de El Salvador, o fato de que o Bitcoin conviva com o dólar norte-americano como moeda oficial torna a proposta ainda mais arriscada, já que a legalização do Bitcoin como moeda nacional facilita a conversão dos lucros de façanhas ilegais (como é o ransomware) em moeda fiduciária. “Dado que El Salvador está dolarizado, isso tornará o país a alternativa de referência para converter os rendimentos do ransomware ou outros tipos de extorsão digital em dinheiro?” —pergunta Silberstein.

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‘Desdolarização’

“O presidente Bukele gosta de armar um bom show e esta proposta reforça sua imagem de millennial disruptivo que está agitando as coisas em El Salvador”, diz por telefone de Nova York Risa Grais-Targow, analista para a América Central do Eurasia Group. “Está propondo isso como uma forma de dinamizar a economia, mas, ao estudar o contexto, em que há denúncias de corrupção contra pessoas próximas a ele, a política econômica parece bastante improvisada.”

Em maio, o Departamento de Estado dos EUA divulgou uma lista de 17 funcionários centro-americanos corruptos que inclui a chefa de gabinete de Bukele, Carolina Recinos, o ex-ministro de Segurança Rogelio Rivas, e o legislador Guillermo Gallegos, líder do partido Grande Aliança pela Unidade Nacional (GANA), que levou o presidente ao poder em 2019. Embora essa lista não tenha nenhum efeito imediato, neste mês se espera a publicação da Lista Engel, que pode incluir sanções específicas sobre contas bancárias nos EUA, sobre transações internacionais e restrições de visto dos indicados.

“Nesse contexto, fazer qualquer coisa que gere mais preocupações em relação à transparência, ou possível lavagem de dinheiro, é como reforçar o confronto ou talvez se afastar do caminho para uma relação construtiva com os EUA”, opina Grais-Targow, do Eurasia. Se Bukele obrigar os cidadãos a usar o Bitcoin, isso poderia abrir uma brecha no uso do dólar, de maneira que socava o futuro da dolarização. Portanto, esta proposta pode ser interpretada como um passo para a “desdolarização” sem ser, estritamente, um plano para se desfazer por completo do dólar.

Os Estados Unidos são o país com maior peso nas decisões do Fundo Monetário Internacional (FMI), organismo multilateral com o qual Bukele negocia um empréstimo estimado em até 1,3 bilhão de dólares para impulsionar a recuperação econômica devido à crise do coronavírus. Na quinta-feira, o porta-voz do FMI disse que as autoridades do Fundo se reunirão com Bukele para discutir o assunto e alertou sobre os riscos das criptomoedas, argumentando que legalizar seu uso oficial gera “uma série de questões macroeconômicas, financeiras e jurídicas que requerem uma análise muito cuidadosa”.

Legal e obrigatório

A nova lei aprovada pela Assembleia Legislativa de El Salvador obriga todas as empresas a oferecerem Bitcoin como meio de pagamento, razão pela qual os salvadorenhos deverão investir na tecnologia necessária em seus negócios. O presidente disse nas redes sociais que privilegiará o uso do aplicativo Strike, que funciona como uma carteira digital e permitirá que os cidadãos paguem seus impostos em Bitcoin. As finanças públicas estarão, portanto, expostas a repentinas desvalorizações desta criptomoeda, que chegou a cair até 22% em um único dia.

A lei também estabelece que qualquer dívida poderá ser convertida em Bitcoin. “Isso coloca o sistema bancário em risco, porque os bancos são obrigados a receber pagamentos em Bitcoin com todas as complexidades que isso tem”, explica Ricardo Castaneda, economista do Instituto Centro-Americano de Estudos Fiscais (ICEFI) de San Salvador, “O Bitcoin é uma moeda altamente volátil e a forma como os bancos cuidam da volatilidade da moeda é por meio das taxas de juros. Então é possível que haja um aumento nas taxas de juros”, o que encareceria a dívida dos salvadorenhos.

O Governo diz que absorverá esse risco, acrescenta Castaneda, “o que é uma falácia, porque o Governo se financia com impostos, certo? Na verdade, quem terá de assumir esse risco serão inclusive as pessoas mais pobres, porque no final tudo será pago como impostos”.

“Existe preocupação sobre se vão mexer nas pensões, se vão convertê-las em Bitcoin”, diz Escobar, da Acción Ciudadana. “O qualificativo que nos descreve é incerteza, desconhecimento e incerteza sobre o que o Governo quer fazer e as implicações que isso terá. Não temos informações, nem qual é o objetivo”, lamenta.

Quando se considera que 70% da economia do país é informal, é difícil imaginar que tantos cidadãos serão incorporados ao sistema bancário e tributário apenas porque agora podem usar o Bitcoin, acrescenta Castaneda. E aqueles que podem, estariam se expondo a flutuações de preços e a riscos de segurança cibernética.

“Podemos supor que muitos consumidores serão relativamente ou completamente novos nas criptomoedas e nas plataformas usadas para negociá-las e armazená-las”, diz Silberstein, da FS-ISAC. “Sem uma campanha de alfabetização cibernética em massa, os consumidores podem ser presa fácil para cibercriminosos sofisticados que usam o phishing e outros golpes para obter acesso às suas contas. Não há lastro com as criptomoedas como poderia haver com as moedas lastreadas pelo banco central”, acrescenta.

Para Nelson Rauda, a impressão é que em El Salvador o Bitcoin é um debate de gente com dinheiro, algo que “a maioria do país não tem”. Por isso acredita que no megaevento de Miami em que se falou pela primeira vez em oficializar a criptomoeda, a isca para os salvadorenhos foi que poderiam enviar remessas sem comissão. O dinheiro enviado por cidadãos residentes no exterior representa mais de 20% do produto interno bruto do país. No entanto, alerta o jornalista, “é uma promessa de venda. Não existe nenhum documento público que se refira a isso”.

Com a grande popularidade de Bukele, diz por seu lado Escobar, o presidente –publicitário de profissão– pode vender quase qualquer coisa que quiser: “As pessoas não se importam que ele não lhes tenha dito nada sobre o Bitcoin. O que ele diz em geral é sagrado. É assim que as pessoas encaram. Ele conseguiu constituir não um Governo, mas uma seita que tem como objeto de culto sua personalidade “.

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