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Perseguir ou matar o dissidente sai grátis em várias partes do mundo

A captura sem precedentes do jornalista bielorrusso Roman Protasevich é mais um passo em uma perigosa escalada: a da perseguição impune de dissidentes além das fronteiras

Captura de um vídeo postado nas redes sociais do jornalista bielorrusso Roman Protasevich, durante sua prisão em Minsk.
Captura de um vídeo postado nas redes sociais do jornalista bielorrusso Roman Protasevich, durante sua prisão em Minsk.TELEGRAM CHANNEL NEVOLF (AFP PHOTO)
Andrés Mourenza

Os passageiros do voo FR4978, procedente de Atenas, observaram perplexos como seu avião girou bruscamente depois que já havia iniciado a descida sobre Vilna, a capital lituana. Mais ainda quando um caça do Exército de Belarus se aproximou para escoltar o avião não até seu destino previsto, e sim para o aeroporto de Minsk. Mas um homem jovem ―que, visivelmente assustado, começou a vasculhar sua bagagem para entregar seu telefone e seu laptop à sua acompanhante― logo percebeu o que realmente estava ocorrendo: iriam prendê-lo. O homem, de 26 anos, era o jornalista e ativista Roman Protasevich, procurado por Belarus desde que, há dois anos, foi para o exílio temendo por sua vida. “Aqui me espera a pena de morte”, disse ele quando os serviços de segurança bielorrussos o retiraram do avião detido juntamente com sua namorada, Sofia Sapega, de nacionalidade russa e estudante da Universidade Europeia de Vilna.

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Mas por que um Governo como o de Alexandr Lukashenko ―bastante contestado por se aferrar ao poder após eleições fraudulentas de 2020 e alvo de sanções da União Europeia― se arrisca a uma operação tão espetacular, forçando a aterrissagem de um voo civil, para capturar um dissidente? “É verdade que é um método muito extremo de repressão”, diz Nate Schenkkan, diretor de estratégia da organização de defesa dos direitos humanos Freedom House. “Mas o fato de um Governo ser capaz de colocar em perigo a vida de tantos passageiros, de utilizar um caça e de ameaçar a aviação civil internacional mostra o sentimento de impunidade que move esses regimes quando perseguem os dissidentes. Eles sentem que não há consequências por isso”, acrescenta. A razão principal, opina Schenkkan, é que Lukashenko não está abrindo um novo precedente, mas seguindo precedentes anteriores.

Em fevereiro, três meses antes que Belarus mobilizasse sua aviação militar para deter o voo de Protasevich, a Freedom House publicou um relatório (com Nate Schenkkan como coautor) alertando para a tendência crescente de Estados autoritários de perseguir exilados além de suas fronteiras. O documento reúne dados de mais de 600 casos de sequestro, assassinato, desaparecimento e extradição fraudulenta executados entre 2014 e 2020 por cerca de 30 países. A Freedom House atribui à China um terço dos incidentes citados e classifica a Rússia como o país que mais cometeu assassinatos ou tentativas de assassinato de dissidentes no período estudado, mas acusa países menos poderosos de utilizar táticas parecidas. Por exemplo, os tailandeses que fugiram de seu país depois do golpe de Estado de 2014 viram com temor como destacados compatriotas no exílio desapareceram ou morreram em estranhas circunstâncias. Em Ruanda, o regime de Paul Kagame trama planos complexos para deter opositores no exterior: Paul Rusesabagina, famoso por ter salvado dezenas de tutsis durante o genocídio de 1994 e imortalizado no filme Hotel Ruanda, denunciou em agosto seu “sequestro” no aeroporto de Dubai, depois de ser atraído de seu exílio na Bélgica para dar uma suposta conferência. A Turquia, que nos últimos anos já repatriou mais de cem exilados vinculados ao nacionalismo curdo e à organização islâmica de Fethullah Gülen −acusada da tentativa de golpe de Estado de 2016 −, tem feito isso pressionando os países que os acolhiam ou através de operações de seus serviços secretos.

O opositor ruandês Paul Rusesabagina em um tribunal de Kigali (Ruanda) em setembro de 2020.
O opositor ruandês Paul Rusesabagina em um tribunal de Kigali (Ruanda) em setembro de 2020.STRINGER (AFP via Getty Images)

O refúgio turco

Curiosamente, durante a última década, enquanto a Turquia se tornava mais autoritária e mais agressiva no exterior, ela se transformou também em refúgio para milhares de dissidentes que escapam das ditaduras do Oriente Médio, Cáucaso e Ásia Central. Depois desses exilados, porém, chegaram seus perseguidores. Entre 2009 e 2016, foram assassinados seis antigos comandantes e combatentes chechenos; em 2015, o líder de oposição tajique Umarali Kuvvatov foi morto com um tiro na cabeça (depois de uma tentativa de envenenamento); em 2017 e 2019, pistoleiros acabaram com a vida de dois dissidentes iranianos, um deles desertor do Ministério da Defesa. Em novembro, um exilado uigur (minoria muçulmana perseguida na China) foi baleado e sobreviveu ao que definiu como uma tentativa de homicídio instigada por Pequim. Ele disse que as autoridades chinesas o haviam forçado a espionar seus compatriotas da diáspora uigur na Turquia sob a ameaça de torturar sua mãe.

De todos os assassinatos de exilados ocorridos em Istambul, um se destaca por sua ousadia e brutalidade: o do jornalista saudita Jamal Khashoggi, em 2018. Se os crimes anteriores foram cometidos por sicários que depois fugiram ―o que permite que os governos que supostamente ordenaram essas mortes neguem seu envolvimento―, Khashoggi foi assassinado dentro do consulado da Arábia Saudita em Istambul por membros do aparato de segurança saudita que viajaram de Riad com essa finalidade e depois despedaçaram o cadáver. O herdeiro do trono saudita e líder de fato do país, Mohamed Bin Salman, aprovou o assassinato, segundo um relatório da inteligência dos EUA divulgado em fevereiro.

A Nobel da Paz iemenita Tawakkol Karman durante um protesto em
outubro de 2018, em Istambul, contra o desaparecimento do jornalista saudita Jamal Khashoggi.
A Nobel da Paz iemenita Tawakkol Karman durante um protesto em outubro de 2018, em Istambul, contra o desaparecimento do jornalista saudita Jamal Khashoggi.Anadolu Agency (Getty Images)

“Esses incidentes são só a ponta do iceberg; cada assassinato, cada entrega, cada detenção se propaga como uma onda entre a diáspora e silencia muitos mais”, sustenta o relatório da Freedom House. Porque esse é o objetivo: nem tanto a presa individual, e sim dar uma lição e servir de ameaça sobre o que pode ocorrer com quem critica seu país de origem. “A repressão transnacional tem um grande peso na oposição exilada. Provoca medo, e alguns abandonam o ativismo. Outros passam para o anonimato ou restringem seus comentários a certos temas para evitar cruzar os limites impostos pelas autoridades. Outros, porém, continuam”, afirma Schenkkan. Mas, sem dúvida, é mais difícil você se mobilizar quando suspeita que está sendo espionado.

“Outro padrão que temos muito documentado nos países do Oriente Médio (como Bahrein e Egito) é a detenção de membros da família para forçar os dissidentes a retornar para seu país de origem”, assinala Diana Eltahawy, subdiretora da Anistia Internacional para a região. No ano passado, por exemplo, o psiquiatra Amr Abu Khalil, irmão de um jornalista egípcio de oposição exilado na Turquia, morreu de ataque cardíaco em uma prisão do Egito depois que seus carcereiros lhe negaram cuidados médicos. Essas situações, explica Eltahawy, originam-se no contexto de uma década em que ―como ocorreu no Egito ou na Líbia― ocorreu uma certa abertura, seguido de uma intensa repressão contra os dissidentes que fugiram do país. E a repressão, aponta ela, tem crescido no exterior.

Sob o rótulo de terrorismo

Embora a perseguição de dissidentes fora de seu país de origem sempre tenha existido −pense em Trótski−, o relatório da Freedom House sustenta que um dos motivos que encorajaram essa política agressiva de perseguição transnacional foi a impunidade com que os Estados Unidos conduziram sua guerra contra o terrorismo, com mais de cem sequestros em todo o planeta e centenas de ataques (segundo um informe da fundação Open Society para identificar as vítimas da guerra ao terror). Também serviu como impulso a campanha de dezenas de assassinatos “seletivos” de Israel nos últimos 20 anos, incluindo desde membros do Hamas em Gaza até cientistas nucleares no Irã e inclusive um engenheiro palestino na Malásia.

O aparente álibi de que vale tudo contra o terrorismo tem feito com que numerosos governos autoritários recorram ao rótulo de “terroristas” para justificar seu ataque contra os dissidentes. Porque embora o sequestro e o assassinato sejam os métodos mais brutais de repressão transnacional, eles não são os mais utilizados. Há outros, como a pressão sobre as autoridades dos países que acolhem os exilados e o abuso da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol). Nesse sentido, os governos autoritários utilizam o medo do terrorismo, além dos discursos anti-imigração e antirrefugiados da direita populista, que predispõem os governos ocidentais a entregar os indivíduos sobre os quais haja alguma suspeita de atividade ilegal, por menor que seja.

O jurista Manuel Ollé Sesé, que acaba de publicar na Espanha La Extradición Pasiva: Un Enfoque de Derechos Humanos Fundamentales (“a extradição passiva: uma abordagem de direitos humanos fundamentais”), relata essa tendência crescente segundo a qual certos governos vigiam os movimentos de suas “presas jurídicas” pelo mundo em busca de “um território complacente” que aceite seu pedido de extradição. “Os Estados autoritários constroem um fato criminoso e o enfeitam de tal forma que, quando essa pessoa chega a um país, acende um alerta vermelho da Interpol e, efetivamente, parece que ela cometeu um crime. Só quando se começa a investigar é que se percebe que esse pedido de extradição é fraudulento”, explica. Mas aí já começam os problemas para o dissidente: “É bem provável que ele seja alvo de prisão provisória”. Foi o que aconteceu em 2017 com o jornalista turco-sueco Hamza Yalçin, acusado pelo Governo de Recep Tayyip Erdogan de crimes de opinião e ligação com o terrorismo, que passou várias semanas detido na Espanha antes que o Conselho de Ministros rejeitasse a solicitação de extradição para Turquia. Isso também ocorreu em 2017 com o escritor turco-alemão Dogan Akhanli, que Istambul queria repatriar para julgá-lo por supostos vínculos com o terrorismo, e que foi detido durante suas férias em Granada. “É um problema muito urgente e sobre o qual a comunidade internacional deve fazer uma reflexão”, afirma o jurista Ollé Sesé: “A Interpol deveria rever seu sistema, e essas ações fraudulentas não deveriam passar nem pelo primeiro filtro. Os juízes, procuradores e advogados devem se envolver e garantir que sejam respeitados os direitos fundamentais. Caso o indivíduo requerido seja finalmente extraditado e não sejam respeitados seus direitos no país de origem ou ele seja submetido a tortura, os governos devem tomar medidas, como exigir sua devolução ou cortar toda a cooperação para futuras extradições”.

O ativista tajique Sharofiddin Gadoev mostra uma foto de seu primo, o opositor Umarali Kuvvatov, em um foro em Oslo em 2019.
O ativista tajique Sharofiddin Gadoev mostra uma foto de seu primo, o opositor Umarali Kuvvatov, em um foro em Oslo em 2019.Julia Reinhart (Getty Images)

Entre as formas de perseguição, a mais utilizada, de longe, é a digital, tanto que não é quantificável. A internet mudou tudo. Aos exilados, deu um alto-falante para se manterem em contato e continuarem sendo influentes nos países de onde tiveram de fugir. Ao mesmo tempo, enfatiza o pesquisador Marcus Michaelsen em seu estudo Silencing Across Borders (“silenciamento através das fronteiras”), “as tecnologias digitais permitiram aos governos expandir suas táticas de repressão extraterritorial, vigiando e respondendo rapidamente às atividades das diásporas”. Isso inclui o uso de tecnologias avançadas de espionagem, invasão de contas e vigilância das redes sociais: existem sérias suspeitas de que a Arábia Saudita espionou o celular de Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo, dono da Amazon e do The Washington Post. Em 2015, um engenheiro do Twitter foi acusado de receber dinheiro saudita em troca de fornecer informações que ajudassem a localizar exilados. A perseguição também se traduz em denúncias falsas ao YouTube ou Facebook para que sejam removidas contas de opositores, além de campanhas organizadas de acossamento com o uso de trolls e bots − a fórmula mais comum. “Profissionalmente, isso tem consequências. Se invadirem seus arquivos, podem apagar anos de pesquisa e trabalho. Também existe um custo econômico, porque se você suspeita que o telefone ou o computador que usa está infectado, precisa substitui-lo por um mais seguro, mais caro, sendo que os dissidentes exilados não costumam ser pessoas em boa situação econômica”, assinala a jornalista azerbaijana Arzu Geybulla, que reside em Istambul. Ela própria, estudiosa do assunto, recebeu centenas de ameaças por sua oposição contra a recente guerra entre Azerbaijão e Armênia, o que a obrigou a fechar temporariamente suas redes sociais: “Pessoalmente, isso tem um efeito devastador. O volume de desqualificações e, especialmente para as mulheres, as ameaças de estupro ou contra sua família podem ter graves consequências para a saúde mental. E mesmo fechando os perfis o nível de estresse continua, porque sabemos que continuam falando de nós e nos atacando”. Ou seja, a repressão digital funciona.

Uma perseguição impune

É por isso que alguns Estados começaram a perseguir seus exilados: porque é uma arma eficaz para combater a oposição e, especialmente, porque não acontece nada com esses países por fazer isso, o que “incentiva esses governos”, denuncia Eltahawy, da Anistia Internacional. O envenenamento do ex-espião russo Alexander Litvinenko em Londres, em 2006, ocorreu “provavelmente” com a aprovação do Governo de Vladimir Putin, segundo a investigação do Reino Unido. A fraca resposta ao assassinato parece ter tido um efeito de atração: nos anos seguintes, foram assassinados mais de dez opositores chechenos; o também ex-espião Serguei Skripal sofreu uma tentativa de envenenamento, novamente no Reino Unido em 2018; e o checheno-georgiano Zelimkhan Khangoshvili apareceu morto com dois tiros na cabeça em um parque de Berlim em 2019.

O ex-espião russo Alexander Litvinenko, hospitalizado em Londres poucos dias antes de morrer.
O ex-espião russo Alexander Litvinenko, hospitalizado em Londres poucos dias antes de morrer. Natasja Weitsz (Getty Images)

Agnès Callamard, que investigou o assassinato de Khashoggi como relatora especial das Nações Unidas para execuções extrajudiciais, alerta em um de seus informes que o uso de violência extraterritorial contra pessoas consideradas dissidentes está crescendo, precisamente devido “à impunidade” de quem comete esse tipo de crime. Ela insiste para que os governos nacionais e a ONU revejam seus protocolos, pois têm “a obrigação” de proteger a vida de quem está em seu território, seja ou não cidadão.

“Quando Mohamed Bin Salman ordenou o assassinato de Khashoggi, houve muita cobertura da mídia e muito barulho. No entanto, a situação mudou muito pouco para Mohamed Bin Salman, pessoalmente, e para a Arábia Saudita, geopoliticamente. E Paul Kagame, o presidente ruandês, dá entrevistas à mídia internacional sobre como foi bem-sucedida a operação para sequestrar Rusesabagina. Não sentem nem mesmo que tenham de pedir desculpas por essas coisas”, lamenta Schenkkan, da Freedom House. Além disso, ações desse tipo prejudicam não só as tentativas de formar uma oposição no exílio, como também as próprias democracias que acolhem os dissidentes, já que a repressão através das fronteiras, assinala Schenkkan, aumenta os níveis de violência e corrupção − com subornos ou pressão sobre instituições, forças de segurança, serviços de inteligência e até tribunais. “Mina o Estado de direito”, enfatiza. No caso de Protasevich, o pesquisador da Freedom House propõe uma resposta firme e sem rodeios: “É preciso ser duro diante de comportamentos desse tipo. Não basta impor sanções apenas contra indivíduos, é preciso estar disposto a bloquear setores inteiros da economia belarussa que sustentam o presidente ilegítimo Lukashenko: fertilizantes, combustíveis fósseis... Se não for feito algo assim, então os presidentes como ele pensarão: ‘Tudo bem, fazem muito barulho, mas no final o custo não é muito alto”.

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