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Lentidão da vacinação contra a covid-19 na Argentina pressiona o Governo em meio à crise econômica

A escassez de imunizantes contra a covid-19 centra o debate político diário quando somente cerca de 7,5% dos argentinos receberam as duas doses. No Brasil, segunda dose foi aplicada em 10,69% da população

vacuna contra coronavirus en Argentina
Homem recebe a vacina Sputnik, em San Juan, na Argentina.DPA vía Europa Press (Europa Press)
Enric González

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(FILES) In this file photo taken on March 3, 2020 Argentina's (then) Health Minister Gines Gonzalez Garcia (C) speaks next to the Secretary of Health Access Carla Vizzotti during a press conference in Buenos Aires in which he confirmed the first case of the novel coronavirus, COVID-19, in the country. - Vizzotti was named as health minister on February 19, 2021 replacing Gines Gonzales who resigned following a request by Argentine President Alberto Fernandez after it emerged that people close to him had skipped the line for a COVID-19 vaccination. (Photo by Juan MABROMATA / AFP)
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A Argentina sofre uma gravíssima crise econômica. Mas o debate político, muito acirrado, gira em torno de algo ainda mais urgente: a falta de vacinas contra a covid-19. E principalmente a da Pfizer, que por enquanto não chegou ao país. “Diminuam a obsessão que têm com a Pfizer”, pediu a ministra da Saúde, Carla Vizzotti, depois que circularam informações (posteriormente desmentidas) de que o Governo de Buenos Aires havia se recusado a que o fundo solidário Covax fornecesse doses do imunizante norte-americano. Uma coisa parece estar fora de dúvida: a Argentina pecou por otimismo e cometeu erros graves em sua campanha para comprar vacinas.

É preciso voltar quase ao início da pandemia para alinhavar a sequência de despropósitos. Em julho de 2020, quando a Argentina já estava há quase quatro meses em um dos mais longos confinamentos do planeta, o presidente Alberto Fernández anunciou que a maior companhia farmacêutica, a Pfizer, faria um de seus testes clínicos no país. Milhares de argentinos se submeteriam a uma vacina experimental e, em troca, a Argentina teria tratamento preferencial (em preços e prioridade no envio de remessas) quando o produto estivesse pronto. As relações entre Alberto Fernández e os diretores da Pfizer eram excelentes. A Pfizer foi a primeira vacina autorizada pelas autoridades sanitárias argentinas.

Em agosto, porém, foi revelada uma iniciativa da AstraZeneca: a empresa britânica havia chegado a um acordo com o magnata mexicano Carlos Slim e o empresário argentino Hugo Sigman para fabricar ao menos 150 milhões de doses destinadas à América Latina. Um laboratório do grupo empresarial Sigman, o mAbxience, produziria o princípio ativo perto de Buenos Aires e outro laboratório no México, o Liomont, o dosificaria e embalaria. As prioridades mudaram na Casa Rosada, que apostou fortemente na AstraZeneca.

“Naquele momento acreditávamos que os compromissos seriam cumpridos”, admitiu um porta-voz do Governo na quarta-feira. E os compromissos não foram cumpridos. O mAbxcience produziu o princípio ativo e o enviou para o México, mas lá, por falta de materiais auxiliares (os Estados Unidos proibiram sua exportação) e por complicações administrativas, o processo ficou parado. As primeiras doses da AstraZeneca “latino-americana” ainda não foram comercializadas. Só chegaram à Argentina as vacinas envasadas nos Estados Unidos e as fabricadas na Índia.

Ao mesmo tempo, as negociações de compra com a Pfizer encalharam. Houve dois obstáculos: o Governo de Buenos Aires recusou-se a pagar a distribuição por parte da DHL (empresa à qual a Pfizer concedeu exclusividade para garantir a manutenção da cadeia de frio) e a Pfizer se negou a aceitar a possibilidade de sofrer ações judiciais por “negligência”, conforme estabelecido pelo decreto de emergência posteriormente retocado e aprovado como lei pelo Parlamento argentino. O ponto das possíveis indenizações, que em muitos outros países foi deixado de lado, significou o rompimento definitivo.

Nos meses seguintes, o Governo argentino e vários porta-vozes muito próximos da vice-presidenta Cristina Fernández de Kirchner, deram explicações estranhas ou claramente delirantes. Chegou-se a dizer que a Pfizer tinha exigido geleiras como garantia. Há apenas uma semana, o presidente Alberto Fernández declarou que algumas condições estabelecidas pela farmacêutica o colocavam “em uma situação muito violenta e comprometiam o país”. Não deu mais detalhes.

Além das compras bilaterais, a Argentina poderia ter acesso a vacinas por meio do Covax, um fundo patrocinado pela Organização Mundial da Saúde destinado a distribuir internacionalmente os imunizantes da forma mais equitativa possível. Em fevereiro deste ano, quando ainda se acreditava na rápida chegada dos milhões de doses da AstraZeneca, um representante do Governo explicou que havia pedido ao Covax a menor quantidade possível. Poderia encomendar quase 50 milhões de doses (as necessárias para vacinar metade da população com as duas doses), mas pediu nove milhões, o mínimo para ter acesso ao fundo. “A opção pelo mínimo foi uma escolha inteligente” e “oportuna” devido à “sua relação custo-benefício”, disse à Câmara dos Deputados, por meio de videoconferência o subsecretário de Gestão Administrativa do Ministério da Saúde, Mauricio Monsalvo.

Poucos dias depois, também em fevereiro, estourou o escândalo dos “centros de vacinação VIP”. Centenas de pessoas, entre elas políticos, empresários e jornalistas ligados ao peronismo e ao kirchnerismo, receberam a injeção fora da ordem estabelecida e, em alguns casos, na própria sede do Ministério da Saúde, ao lado do gabinete do ministro. O ministro Ginés González García foi obrigado a renunciar. Os “centros de vacinação VIP” ficaram associados como um estigma à imagem do Governo.

Na Argentina, como em outros lugares, a escassez de vacinas se tornou um problema crônico. Até a quarta-feira, 2 de junho de 2021, de acordo com dados oficiais, menos de três milhões de pessoas, em uma população de 40 milhões, receberam as duas doses, o que corresponde a menos de 7,5% da população. No Brasil, onde também há lentidão na aplicação das vacinas, a segunda dose foi aplicada em 22.631.020 pessoas, o que equivale a 10,69% da população brasileira, segundo os dados atualizados na quarta-feira.

E as vacinas em uso na Argentina configuram um espectro ideológico peculiar: além da britânica AstraZeneca (por sua suposta condição “latino-americana”), também há russas e chinesas. Agora está em negociação a possível compra de vacinas cubanas. Não há produtos norte-americanos.

Um breve escândalo surgiu na terça-feira depois que o delegado do Fundo Covax para a América Latina, Santiago Cornejo, disse que a Argentina lhe pedira para não incluir as vacinas da Pfizer em seus envios. Depois, tanto Cornejo quanto a ministra da Saúde, Carla Vizzotti, esclareceram que isso se devia ao problema legal com a Pfizer (a suposição de “negligência”) e que o pedido não reduzia o número de doses, de outros fabricantes, que o país iria receber. Vizzotti também lembrou que seu Governo continua negociando com a Pfizer.

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As vacinas estão no centro do debate político quase todos os dias. Há uma semana, a ex-ministra da Segurança Patricia Bullrich, uma figura importante da oposição macrista, acusou o presidente Alberto Fernández e o ex-ministro da Saúde Ginés González García de não comprarem o produto da Pfizer porque a empresa se recusou a pagar subornos. Quando Fernández e González anunciaram queixas e ações judiciais, Bullrich insistiu, sem qualquer prova, em suas afirmações. As vacinas, por mais barbaridades que se digam, são o flanco mais frágil de um Governo cuja popularidade está em seu nível mais baixo.

Depois de pular o breve escândalo da Covax, o ex-ministro González García explicou que o preço das vacinas foi um elemento fundamental na hora de escolher. “Entre uma que custa 20 dólares [em referência à vacina da Pfizer] e outra que custa quatro [em referência à russa Sputnik], a coisa está clara”, disse. Mas em algumas remessas a dose da Sputnik chegou a custar 22 dólares.

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