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Peregrinação às cegas até as portas de Ceuta

Centenas de subsaarianos e jovens marroquinos percorrem dezenas de quilômetros em direção a Fnideq, com a esperança de que nesta terça-feira volte a ser aberto o acesso para a Espanha

Inmigrantes Ceuta
Agentes de segurança marroquinos montam guarda enquanto um grupo de emigrantes caminha pela costa na cidade nortista de Fnideq, em uma tentativa de cruzar a fronteira nesta terça-feira.FADEL SENNA (AFP)
Francisco Peregil

O esforço desmedido que centenas de pessoas fazem para sair de Marrocos é bem visível quando nos aproximamos de Fnideq, a cidade de 77.000 habitantes que se chamava Castillejos quando estava sob o protetorado espanhol. É lá, quando faltam apenas 15 quilômetros e várias encostas para chegar à cidade mais próxima de Ceuta (enclave espanhol no norte da África), que surgem as cenas mais chocantes: crianças marroquinas de não mais de dez anos pedindo carona em grupos de duas, quatro ou cinco; uma mulher subsaariana com seu bebê às costas; uma família de subsaarianos com duas crianças menores de cinco anos; outro subsaariano com seu filho ao ombro; uma pessoa negra deitada imóvel no chão, sem que se saiba realmente se está viva ou morta. É impossível parar para atendê-la porque os soldados marroquinos obrigam a continuar circulando.

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Centenas de subsaarianos e jovens marroquinos caminhavam na manhã desta terça-feira em direção a Fnideq. Alguns carregavam uma simples mochila e outros, nada. Alguns, de camiseta, esfregavam os braços com as mãos para combater o frio enquanto subiam uma encosta. Os caminhantes passavam sem nenhum problema pelo posto de controle da polícia, situado a 15 quilômetros de Fnideq.

Ao chegar à cidade, em frente à fronteira com a Espanha, também podiam ser vistos centenas de jovens, marroquinos e subsaarianos, que tinham chegado ao ponto de onde milhares de pessoas partiram na segunda-feira. Agora, a maioria esperava sentada ou deitada na grama sua oportunidade de partir. Outros estendiam ao sol as calças jeans molhadas depois de terem feito uma tentativa de chegar a Ceuta. “Mas fecharam a praia esta manhã”, comentava um morador de Fnideq. “Neste momento, é impossível sair.”

As autoridades marroquinas tinham instalado vigilância na praia mais próxima de Ceuta, mas continuava livre o acesso a Fnideq, para onde continuavam chegando, no início da tarde, centenas de “candidatos à emigração irregular”, como o Governo de Marrocos designa esses cidadãos.

Alguns grupos de emigrantes subsaarianos podiam ser vistos até mesmo a 100 quilômetros de Fnideq, na rodovia que vai de Rabat à antiga Castillejos. A essa distância, a maioria deles caminhava sorridente e esperançosa. O esgotamento e o andar manco de tanto caminhar só se notavam de perto.

Enquanto ocorria esse efeito de chamada, o Governo marroquino permanecia em silêncio. Apenas a embaixadora em Madri, Karima Benyaich, afirmou nesta terça-feira, em declarações à Europa Press, que nas relações entre países há ações que têm consequências “e têm de ser assumidas”, em uma referência velada à decisão da Espanha de prestar assistência médica ao líder da Frente Polisário, Brahim Gali.

A chegada de quase 8.000 migrantes irregulares a Ceuta evidenciou duas questões, ambas já conhecidas dos dois lados da fronteira. Uma delas é que ficou demonstrada a capacidade de desestabilização que a situação no Marrocos pode ter em relação à Espanha. E a outra é que ficou claro até que ponto, apesar do patriotismo preconizado pelas autoridades marroquinas, muitos de seus cidadãos estão dispostos a abandonar o país da noite para o dia, mesmo arriscando a própria vida.

Na imprensa marroquina, que depende de subvenções do Estado para sobreviver, não houve nenhuma crítica ao fluxo em massa de emigrantes. Pelo contrário. Uma das manchetes mais sarcásticas foi a do site de notícias Hespress, o mais popular de Marrocos: “Ausência da polícia espanhola incentiva milhares de migrantes a entrar a nado em Ceuta”. O site deu a seguinte justificativa: “A falta de cobertura policial espanhola contribuiu em grande medida para a grande afluência de migrantes à cidade ocupada de Ceuta desde a noite de domingo. A imprensa espanhola se mobilizou para responsabilizar preventivamente as autoridades de segurança marroquinas, acusando-as de ser complacentes e permitir o fluxo de migrantes para a cidade, enquanto a fonte do Hespress considerou que as justificativas das autoridades foram para encobrir o não cumprimento de seu trabalho”.

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