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Construção de novo gasoduto amplia disputa entre Rússia e Ocidente

Os Estados Unidos consideram que a nova instalação tornará a União Europeia mais dependente do Kremlin, e a Ucrânia teme que o Governo de Putin avance sobre o país

Gasoducto Nord Stream 2
O presidente russo, Vladimir Putin, e a chanceler alemã, Angela Merkel, cumprimentam-se em Berlim, em janeiro de 2020, no início de uma conferência sobre a Líbia.picture alliance (dpa/picture alliance via Getty I)
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O gasoduto mais polêmico da geopolítica mundial passa pelas gélidas águas do Báltico. Nesse mar interior de água salobra, próximo à ilha dinamarquesa de Bornholm, o barco russo de colocação de tubos Fortuna trabalha para terminar de construir a linha-tronco do Nord Stream 2. Restam apenas 138 quilômetros para sua conclusão (6% do total). Mas a controvérsia permanece. O megaprojeto, que levará gás russo à Alemanha, continua dividindo a União Europeia, onde os países do Leste temem que a estrutura se transforme em outro tentáculo da influência de Moscou. Enquanto isso, paira a ideia de novas sanções dos Estados Unidos, que também têm seus próprios interesses estratégicos e comerciais, contra as empresas que participam do projeto.

Esse novo fluxo de gás russo sob o Báltico alimenta três grandes batalhas. Em primeiro lugar, a geopolítica, sobre o rumo a seguir nas relações do Ocidente com uma Rússia cada vez mais assertiva, e sobre a cooperação com o Kremlin em assuntos estratégicos. Depois a energética, com o debate sobre futuro do uso do gás frente a outras fontes menos poluentes. E finalmente a comercial, com a disputa entre Washington e Moscou —que atravessam o pior momento de suas relações—, por este último tentar introduzir seu gás no mercado europeu.

O projeto foi muito polêmico desde sua criação, em 2015, quando a gigante Gazprom, controlada pelo Estado russo, formou um consórcio com cinco companhias europeias para a construção de um novo gasoduto em substituição ao Nord Stream 1 —com menor capacidade— no leito do Báltico. O Nord Stream 2, com um custo de 9,5 bilhões de euros (cerca de 64 bilhões de reais), metade financiada pela Gazprom e outra metade pelos investidores europeus, ganhou impulso quando o social-democrata Gerhard Schröder deixou a Chancelaria alemã e se tornou assessor da Gazprom. O novo gasoduto permitirá agora que a gigante russa entregue 55 bilhões de metros cúbicos de gás por ano à Europa através de 2.460 quilômetros de tubulações que cobrem os mais de 1.200 quilômetros da russa Ust-Luga até Lubmin, uma pequena localidade muito próxima à cidade de Greifswald, na Alemanha.

A obra deveria ter sido concluída no final de 2019. Mas o debate político e as sanções que os EUA impuseram em dezembro daquele ano às empresas participantes provocaram um enorme atraso. Também geraram perdas bilionárias à Gazprom e a indignação do Kremlin, que defende a viabilidade do gasoduto de forma contundente. O envenenamento do líder opositor Alexei Navalny em agosto passado, que quase lhe tirou a vida e no qual o Ocidente vê a mão do Kremlin, deixou o tema ainda mais quente. As vozes que exigem a paralisação total do Nord Stream 2 voltaram a se elevar, com a recente e polêmica condenação de Navalny a mais de três anos de prisão por um caso antigo. O opositor já cumpre pena numa severa colônia penal russa.

Pressão sobre a Alemanha

A pressão para que a Alemanha retire seu apoio ao projeto aumentou nas últimas semanas. O Parlamento Europeu pediu a paralisação das obras. Mas a chanceler (primeira-ministra) Angela Merkel se mantém firme. Diz que o Nord Stream 2 é um negócio privado e insiste em separá-lo do direito que a UE tem de continuar impondo sanções a indivíduos russos em resposta ao caso Navalny e à dura repressão das manifestações pacíficas na Rússia.

Para a Alemanha, tampouco seria simples e barato abandonar o gasoduto, afirma Jürgen Trittin, deputado dos Verdes no Bundestag e membro da Comissão de Relações Exteriores. “Seria preciso pagar muito dinheiro em compensações às empresas. Estima-se que cerca de 10 bilhões de euros (67 bilhões de reais)”, diz. Os Verdes, que despontaram como o partido decisivo na Alemanha após as eleições de setembro, não gostam do projeto. “É ruim para os objetivos climáticos da UE. Se levarmos a sério o green deal, chegar a emissões zero em 2050, não podemos construir uma nova infraestrutura de combustível fóssil”, afirma Trittin. Mas legalmente, ele reconhece, não se poderia paralisar a obra sem compensar com bilhões a Gazprom e uma centena de investidores, entre eles a francesa Engie, a austríaca OWV, a holandesa Shell e as alemãs Wintershall DEA e Uniper. O deputado também qualifica de “besteira” o argumento da dependência energética da Rússia. “A Europa pode conseguir gás em qualquer parte. A Rússia é muito mais dependente de nós porque sua economia sofreria muito se deixasse de nos mandar gás. O principal problema do gasoduto é que, como europeus, prolongamos nossa dependência dos combustíveis fósseis”, afirma.

A Rússia também define o projeto como “puramente econômico”. Assim ressaltou em dezembro passado o presidente russo, Vladimir Putin, que dirige pessoalmente a política energética —um de seus grandes instrumentos geoestratégicos. A economia russa é fortemente baseada nos hidrocarbonetos, que respondem por 62% das exportações. Para o Kremlin, no entanto, a geopolítica tem uma importância ainda maior. Tem demonstrado isso com frequência ao apostar em projetos de duvidosa viabilidade a curto prazo, como o gasoduto Poder da Sibéria, entre a Rússia e a China, que “dificilmente será rentável”, segundo o especialista em energia Mikhail Krutijin, mas que é uma forma de consolidar a virada de Moscou para Pequim. Também é o caso do TurkStream, que flui através da Turquia e enfrentará uma dura concorrência, mas que é outra ferramenta das “ambições políticas do Kremlin” para expandir sua influência e, ao mesmo tempo, evitar que seu gás atravesse a Ucrânia, diz Krutijin.

Paralisar o projeto, segundo o presidente do Comitê de Energia da Duma (câmara baixa do Parlamento russo), Pavel Zavalny, seria injustificado do ponto de vista econômico. O congressista também diz que o Nord Stream 2 é uma boa solução para reforçar a segurança energética da Europa e faz parte de uma frutífera “parceria estratégica” entre Moscou e Berlim, sobretudo em matéria de energia. “Por isso, os projetos energéticos têm sido um objetivo para terceiros países interessados em debilitar a economia e as posições internacionais tanto da Alemanha como da Rússia”, afirma. “O principal beneficiário são os EUA, assim como os países europeus orientados a Washington ou que estão perdendo o trânsito do gás russo”, argumenta o deputado do Rússia Unida (partido do Governo).

Negociações com os EUA

A nova Administração estadunidense, com Joe Biden à frente, poderia ser mais razoável que a de seu antecessor, Donald Trump, na hora de negociar uma saída para o conflito que satisfaça todas as partes. Segundo publicou a revista alemã Der Spiegel, representantes dos EUA, da Alemanha e da UE têm mantido conversas sobre diversas propostas. Uma delas seria dispor de um fechamento automático do fornecimento de gás caso a Rússia viole os direitos humanos ou o direito internacional. A posição oficial de Bruxelas sobre o Nord Stream 2 é que não o apoia, mas também não pode fazer nada para paralisá-lo. Se o projeto cumprir a legislação europeia, e até o momento o faz, o bloco não pode intervir. É uma questão nacional —neste caso, alemã. “Não é um projeto de interesse comum para a Europa, não recebe orçamento europeu nem o receberá”, afirmou, no mês passado, a diretora geral de Energia dos 27 países-membros, Ditte Juul Jorgensen.

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Bruxelas tem sido muito contundente no que se refere às sanções dos EUA. Que um terceiro país imponha multas a empresas europeias que fazem negócios de maneira legítima contraria as leis internacionais e representa uma violação da soberania energética europeia, e nisso a Alemanha também concorda. Para a presidenta da Comissão, Ursula von der Leyen, é algo “inaceitável”. Josep Borrell, máximo representante da diplomacia europeia, também rechaçou as “sanções unilaterais” dos EUA contra as empresas do Nord Stream 2. O presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, declarou em fevereiro passado que, com a progressiva piora das relações entre Europa e Rússia nos últimos anos, as companhias energéticas são praticamente “a única ponte” que resta, e não é inteligente destruí-la.

Polônia e Eslováquia, radicalmente contra

O Nord Stream 2 “é um golpe contra a Europa” a serviço da “agressiva política” de Moscou, afirmou o primeiro-ministro polonês, Mateusz Morawiecki. “Fortalece o poder da Rússia e ajuda o presidente Putin a construir um poder militar e a intimidar outras nações”, declarou. A Polônia, a Eslováquia (que, além disso, perderiam receita pelos direitos de trânsito) e os países bálticos lideram a oposição dentro da UE contra o Nord Stream 2, advertindo que o gasoduto é uma tentativa de Putin de solapar a unidade europeia. Frente aos que afirmam que é apenas um projeto econômico, eles avisam que o gasoduto colide com a postura de isolar Moscou por sua ingerência em outros países, sua anexação da península ucraniana da Crimeia e sua participação no conflito de Donbass, onde apoia militar e politicamente os rebeldes pró-russos, além de sua participação na Síria e do envenenamento não apenas do opositor Navalny, mas também do ex-espião russo Sergei Skripal em solo britânico, em 2018.

Os contrários ao Nord Stream 2 consideram também que o gasoduto reforça a posição da Rússia como principal provedor de gás da União. O gás russo já representa 40% do total consumido na Europa. Também dizem que o projeto aumentará a vulnerabilidade da Ucrânia (por onde hoje passam vários tubos e que enfrentaria perdas bilionárias referentes às tarifas de trânsito, além de ser um país geoestratégico para a UE e para a OTAN), e Belarus, aliado e muito dependente de Moscou.

Nos últimos anos, o Kremlin diversificou as vias de exportação do gás russo, especialmente após as chamadas “guerras do gás”, que há mais de uma década afetaram o fornecimento europeu do hidrocarboneto devido à crise entre a Rússia e a Ucrânia, por onde na época fluía a maior parte do gás russo. Agora Moscou evita parte do território ucraniano pelo norte, com o Nord Stream 1, e pelo sul, com o TurkStream, que se estende pelo leito do mar Negro e transporta o gás por dois braços, um para a Turquia e outro para os países do sul e sudeste da Europa, como a Bulgária.

Washington concentra sua oposição ao projeto —bipartidária— na defesa da Ucrânia e com o argumento de que o gasoduto aumentará a dependência europeia do gás russo e expandirá a influência do Kremlin. Mas não são poucos os analistas que apontam que os EUA defendem também seus próprios interesses na venda de seu gás procedente da fraturação hidráulica (fracking) à Europa. “Gás da liberdade”, chamou-o Trump. Este ano, Washington ampliou também sua política de sanções às seguradoras, certificadoras e qualquer empresa que realizar “atividades de instalação de tubos”.

O objetivo dos EUA para “torpedear” o Nord Stream 2, diz Alexander Simonov, professor de Economia da Universidade da Amizade dos Povos da Rússia, é “puramente econômico”. “A única forma eficaz que a indústria estadunidense tem de assumir o controle de uma parte significativa do mercado europeu é restringir fisicamente as capacidades de exportação das empresas russas”, afirma. Os especialistas alemães também veem um interesse comercial evidente em Washington, além do geopolítico, em sua oposição ao projeto. Em poucos anos, os EUA se tornaram o primeiro produtor mundial de gás natural graças à técnica de fracking. E precisam exportá-lo, pois ele sobra para o consumo interno. Sem o Nord Stream 2, diz Carsten Brzeski, economista-chefe do ING na Alemanha, os EUA poderiam colocar seu gás natural liquefeito —que chega em barcos e retorna à forma gasosa— no mercado europeu com maior facilidade. “Já vimos isso sob a presidência de Trump, quando os EUA pressionaram no contexto da guerra comercial para que a Europa comprasse mais do seu gás”.

“Desnecessário, caro e contrário aos objetivos do clima”

Na Alemanha, também crescem as críticas ao projetos do ponto de vista puramente econômico e energético. Claudia Kemfert, economista que dirige o Departamento de Energia do Instituto Alemão de Pesquisa Econômica (DIW), diz que “o fornecimento de gás natural na Alemanha e na Europa está garantido sem o segundo gasoduto. O Nord Stream 2 é desnecessário, caro e contrário aos objetivos de transição energética”, afirma. Segundo Kemfert, que publicou diversos estudos sobre o gasoduto, o projeto nunca deveria ter sido implementado. “A demanda de gás natural cairá porque é preciso cumprir os acordos de Paris sobre o clima. A infraestrutura atual é suficiente para garantir o abastecimento”, diz ela.

A Alemanha é um importador líquido de energia. O gás consumido chega da Rússia, da Noruega e da Holanda. O economista Brzeski reconhece que há suficiente energia sem o gasoduto, mas lembra que o projeto também busca diversificar as exportações energéticas alemãs. Seu funcionamento, ou sua paralisação, influiria no desenvolvimento das energias renováveis. “Por um lado, ele pode manter os preços baixos e apoiar assim a transição energética. Por outro, se for paralisado, os preços podem subir, o que tornaria mais urgente o desenvolvimento das renováveis.”

Com Biden disposto a restabelecer as boas relações com a UE, ainda não se sabe como será o desenrolar da questão do Nord Stream 2. Mas Washington não perde o foco e deixa claro que não abandonou a ideia de impor novas sanções a toda a malha que circunda o gasoduto. “O presidente Biden foi muito claro ao dizer que o gasoduto é uma ideia ruim. É ruim para a Europa e ruim para os EUA”, afirmou este mês o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken.

Os especialistas da órbita do Kremlin veem as sanções sobre o gasoduto de uma forma mais pragmática. “Há consequências para a Rússia”, diz Yulia Gryzenkova, da Universidade Financeira (do Governo russo), “mas não são apenas negativas. Também há consequências positivas, como a reativação da produção russa e o aparecimento de tecnologias”. O presidente do Comitê de Energia da Duma também vê essas medidas como uma “faca de dois gumes”. “O que não mata nos torna mais fortes”, diz o parlamentar Pavel Zavalny.

Ucrânia e a segurança europeia

A Ucrânia, país essencial para a estabilidade da Europa, com parte de seu território devorado pela Rússia e uma guerra alimentada no Leste, é um ponto central da controvérsia do Nord Stream 2. A UE e os EUA investiram ali bilhões de euros em ajuda externa —e Washington também em equipamentos militares— desde a derrocada do pró-russo Víktor Yanukovich, em 2014, por um movimento cidadão pró-democracia e pró-europeu. Agora, com as novas tubulações, que abrem outras vias para o gás russo e evitam o país do Leste, a Ucrânia perderia dois bilhões de dólares (11,4 bilhões de reais) em direitos de trânsito do gás. E isso, segundo seu ministro de Relações Exteriores, Dmytro Kuleba, significaria um “golpe econômico” da Rússia contra a Ucrânia “no transcurso de sua guerra militar, econômica, política e híbrida de sete anos”.

Em 2019, 40% dos envios da Gazprom à Europa passaram por território ucraniano. Naquele ano, a gigante russa aceitou pagar à Ucrânia cerca de 2,4 bilhões de euros (16 bilhões de reais) em atrasos de tarifas de trânsito e manter o fornecimento de 40 bilhões de metros cúbicos de gás por seus canais.

O Nord Stream, diz o ministro Kuleba, é “uma ameaça” para a segurança não só da Ucrânia, mas de toda a Europa. “Algo que impediu o Kremlin de expandir sua agressão militar contra a Ucrânia em 2014 foi o oleoduto estratégico ucraniano. O presidente russo, Vladimir Putin, percebeu que uma guerra em grande escala em todo o território da Ucrânia poderia colocar em risco o trânsito do gás russo para a Europa”, disse o ministro a este jornal, reiterando que o novo gasoduto é “totalmente desnecessário”. “O objetivo de construir o Nord Stream 2 nunca teve nada a ver com o mercado energético. É um projeto geopolítico”, afirma Kuleba.

Os EUA pressionam para que os envios pela Ucrânia continuem. De fato, uma das propostas contempladas é postergar as sanções e impô-las à Gazprom caso a empresa não cumpra o acordo entre Bruxelas, Kiev e Moscou, negociado em 2019 pela chanceler alemã, Angela Merkel, para manter parte do fluxo de gás através da Ucrânia durante cinco anos.

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