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Questões raciais e de gênero aprofundam a fratura da esquerda francesa

“Reuniões não mistas” reservadas a pessoas negras, árabes, imigrantes e mulheres desatam as críticas da direita e incomodam setores progressistas na França

Marc Bassets
Manifestação de estudantes contra a precariedade, em 16 de março em Paris.
Manifestação de estudantes contra a precariedade, em 16 de março em Paris.BERTRAND GUAY (AFP)
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A esquerda francesa, dividida em múltiplas correntes e ameaçada com a irrelevância, encontrou um novo motivo para se fraturar. O detonador é, desta vez, uma prática pouco conhecida pela maioria da população: as chamadas reuniões não mistas e universidades e entre ativistas. Nestes fóruns, pouco comuns, só podem participar pessoas discriminadas por raça e gênero. Uma parte da esquerda os defende como um espaço onde as vítimas do racismo e sexismo têm liberdade para falar. Outros veem nestas reuniões uma violação inaceitável do princípio de igualdade inscrito no DNA da República.

A polêmica, circunscrita até alguns dias atrás a círculos de universitários, militantes e intelectuais, explodiu no coração do Partido Socialista (OS), hegemônico na esquerda durante décadas e hoje em plena luta pela sobrevivência. No sábado, em uma entrevista à rede BFM-TV, Audrey Pulvar, que lidera como independente a candidatura socialista às eleições regionais de Paris em maio, julgou inaceitável impedir os brancos de participar de uma reunião de minorias. Mas acrescentou: “Se um homem ou mulher branca vier a essa reunião, eu diria: ‘nem pensar em expulsá-lo’. Por outro lado, pode-se dizer a ele que fique quieto”.

Nas discussões das redes sociais e no parlamento das conversas televisivas os matizes valem pouco. Pulvar, nascida no território antilhano da Martinica, foi acusada de racismo pela direita. Marine Le Pen, líder do partido de extrema direita Reagrupamento Nacional, pediu à Promotoria que agisse “por incitação à discriminação racial”. Muitos socialistas se sentiram incomodados, pois as palavras da candidata podem dar a entender que era aceitável separar as pessoas por sua raça. Um dos poucos a defender Pulvar na esquerda foi Jean-Luc Mélenchon, líder do partido A França Insubmissa, acusado por alguns setores de complacência com o islamismo e o chamado racismo antibrancos —que não existe. As declarações são a história que revela o abismo ideológico entre a esquerda moderada do PS e a populista de Mélenchon: o que o ex-primeiro-ministro Manuel Valls chamou há anos de “as esquerdas irreconciliáveis”.

A polêmica começou duas semanas antes, quando, na emissora Europe 1, Mélanie Luce, a presidenta da UNEF, a maior entidade estudantil, defendeu as reuniões não mistas. “Organizamos reuniões para permitir que as mulheres expressem as discriminações que sofrem, e reuniões para que as pessoas afetadas pelo racismo expressem o que sofrem”, disse Luce, que se apresenta como a primeira presidenta racializada —não branca— da UNEF. Luce admitiu, diante da insistência da apresentadora, que nessas reuniões não vão homens, no primeiro caso, e brancos, no segundo.

As declarações da líder estudantil não descrevem uma prática nova. Jean-Christophe Cambadélis, presidente da UNEF entre 1980 e 1984 e três décadas depois primeiro-secretário do Partido Socialista, lembra: “Estas reuniões já existiam nos anos setenta e eu já era contra e as denunciava”. Na época, diz, eram organizadas pelos direitos das mulheres e o combate contra a homofobia. Cambadélis, crítico ao que considera uma “deriva racial” do sindicado, acrescenta: “A partir do momento em que pode se pensar que brancos e outros são incapazes de ser sensíveis ao racismo e somente pessoas que vêm da imigração e, entre aspas, negros, podem se expressar, se questiona o caráter universal da luta contra o racismo”.

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As palavras de Luce refletem uma evolução visível, por exemplo, na presença entre seus dirigentes de muçulmanas com véu. A imagem choca alguns franceses, porque a veem como uma afronta à laicidade.

A entidade seria, segundo os críticos, o expoente de uma esquerda mais preocupada em cultivar os atritos entre comunidades do que defender a ideia de uma nação de cidadãos iguais perante a lei. Os defensores da UNEF apontam, por outro lado, que ainda que a França oficialmente não reconheça as raças, o racismo está espalhado em um país cuja diversidade real se reflete nas posições da entidade e em práticas como as reuniões não mistas.

Reuniões para minorias

“São reuniões reservadas a grupos que sofrem pessoalmente o racismo em sua vida cotidiana e em suas relações com as instituições”, diz a ensaísta Rokhaya Diallo, uma das vozes francesas mais ouvidas do novo antirracismo. “Em relação ao sexismo, são reuniões abertas às mulheres, mas também são feitas às pessoas LGBTI que sofrem formas de exclusão”. “Essas reuniões não excluem”, argumenta, “e sim congregam pessoas em função de um critério”.

Diallo, filha de senegaleses, esclarece que nunca participou de reuniões desse tipo, mesmo que as defenda. Acha que a polêmica obedece ao fato de que “a França tem muitas dificuldades para abordar as questões raciais”. “É considerado avançado nos direitos humanos e na igualdade, mas é um país que conhece pouco sua história colonial e da escravidão”, diz. “Há uma espécie de repressão da liberdade de palavra das pessoas não brancas”, acrescenta. “As que se viram envolvidas em polêmicas sobre as reuniões não mistas são pessoas como Mélanie Luce, eu, Audrey Pulvar. Isso dá o que pensar”.

Cambadélis alerta que o tema identitário é “uma armadilha” à esquerda que acabará beneficiando a direita. “É preciso dizer”, afirma, “que esses métodos não são aceitáveis e não representam o que a esquerda pensa. E este não é o centro do debate hoje, que gira em torno da questão sanitária e social”.

As opções de Anne Hidalgo

Seria a primeira mulher presidenta e a primeira nascida fora da França. A prefeita de Paris, a socialista Anne Hidalgo (San Fernando, Cádiz, 61 anos), não se declarou candidata às eleições presidenciais de 2022, mas multiplica os sinais de que pode se lançar à disputa. O principal obstáculo é a desunião da esquerda, dividida em pelo menos três grupos. O primeiro é personificado por Jean-Luc Mélenchon, líder do A França Insubmissa e já candidato declarado da esquerda da esquerda, ou esquerda populista: soberanista, eurocética e acusada por alguns rivais de islâmico-esquerdista, ou seja, benevolente demais, em nome da defesa dos oprimidos, com o islamismo.

O segundo grupo é o dos ecologistas, mas divididos entre uma ala esquerdista e outra mais centrista e liberal. Sem um acordo com os ecologistas, com quem já governa na capital francesa, Hidalgo terá dificuldades para ir ao segundo turno: os favoritos são hoje, segundo as pesquisas, o presidente, Emmanuel Macron, e a líder da extrema-direita, Marine Le Pen. Uma aliança de Hidalgo com Mélenchon parece muito improvável.

O terceiro grupo na esquerda é o que Jean-Christophe Cambadélis, ex-primeiro-secretário do Partido Socialista, chama de “a esquerda realista”. Esta inclui tanto o minguado OS como pequenos partidos e grupos que orbitam ao seu redor. “É preciso fazer tudo o que for possível para que rapidamente exista uma candidata ou um candidato da esquerda realista”, diz Cambadélis. “Se Anne Hidalgo fosse candidata, eu a apoiaria. Caso contrário, desejaria uma primária da esquerda responsável para encontrar um candidato que permitisse ir às eleições presidenciais”. Nesse caso, ele mesmo pensa em se candidatar.

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