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Ai Weiwei: “Enfrentamos um monstro maior do que imaginamos. Não sabemos onde o inimigo está”

Artista perseguido pelo Governo chinês teve seu filme exibido no Festival de Cinema de Direitos Humanos de Genebra depois de ser ignorado por grandes plataformas de streaming como Netflix e Amazon. Para ele, um sinal de como o Ocidente foi derrotado pelo gigante asiático

Ai Wei Wei, artista chinês perseguido pelo Governo da China.
Ai Wei Wei, artista chinês perseguido pelo Governo da China.Zenith Richards / Camerapress / ContactoPhoto
Jamil Chade

O mundo terá de lutar para proteger a liberdade de expressão e a democracia em uma era pós-pandemia se quiser construir um “verdadeiro sistema imunológico” para a sociedade. O alerta é de Ai Weiwei (Pequim, 63 anos), artista chinês perseguido por seu governo. Em entrevista por zoom ao EL PAÍS um ano depois da declaração da pandemia, ele alerta que a China “venceu” a batalha estratégica com o Ocidente e acusa o mundo de ter sucumbido aos interesses financeiros, abandonando valores e princípios.

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Wuhan (China), 09/04/2020.- People wearing protective face masks look out from Jinyintan Hospital, in Wuhan, China, 09 April 2020. Wuhan, the epicenter of the coronavirus outbreak, lifted the lockdown on 08 April 2020, allowing people to leave the city after more than two months. According to Chinese government figures, over 2,500 people have died of Covid-19 in Wuhan since the outbreak began. EFE/EPA/ROMAN PILIPEY
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Em 2020, seu filme Coronation serviu como uma rara janela à crise sanitária em Wuhan. Mas ele logo descobriu que a censura não se limitava ao Partido Comunista Chinês. Grandes festivais de cinema na Europa e América do Norte se recusaram a exibir o filme, que tampouco foi distribuído pelas principais plataformas, como Netflix e Amazon. No último dia 13, sua obra esteve no Festival de Cinema de Direitos Humanos de Genebra. Mas o artista não nutre ilusões. Para ele, o mundo jamais saberá o que de fato ocorreu em Wuhan no final de 2019. Ele também alerta: a onda democrática dos últimos 40 anos está chegando ao final e a censura será profunda no mundo pós pandemia. Para ele, políticos como Jair Bolsonaro ignoram o debate entre “a vida e a morte”. “Ouvimos como eles disseram que isso tudo era normal. Essa atitude conta toda a história”.

Eis os principais trechos da entrevista:

Pergunta. O sr. não é bem-vindo na China. Como fez para filmar em Wuhan?

Resposta. Eu filmei a primeira pandemia, em 2003, quando o Sars apareceu. Portanto, quando a atual pandemia eclodiu, não era a primeira vez que eu lidava com o tema. Tenho feito outros filmes de investigação na China, o que me colocou problemas. Sei como filmar e o que filmar. Mas tivemos colegas e artistas em lockdown em Wuhan. Sabíamos que seria dramático. Mas jamais pensei que seria uma explosão global e que ainda hoje estaríamos sob a mesma situação e as pessoas morrendo. E sem saber quando isso tudo vai desaparecer. Contactei as pessoas que eu conheço e que confio. Dei a eles orientações a cada dia, depois que as imagens eram enviadas para mim. Obviamente, foi incrivelmente difícil por conta da situação do confinamento. Pessoas não poderiam se mover. Mas tínhamos pessoas em seis hospitais e também em locais temporários criados para lidar com os pacientes.

P. O que o sr. queria mostrar?

R. Tentamos mostrar diferentes aspectos. Não apenas dos hospitais. Mas também da vida humana, das pessoas abandonadas e esquecidas. Acredito que a maioria das pessoas no mundo não tem voz. Uma vez que você não tem voz, você não conta. Ou é apenas um número. Emoções e valores não são mais relevantes. Apresentamos pessoas que viviam essa situação e uma delas cometeu suicídio ao final.

P. Vimos que as plataformas globais não difundiram o filme. O que isso revela sobre a influência da China?

R. Tenho muito orgulho do que fizemos. Esse é, provavelmente, o filme mais importante sobre a pandemia e sobre a China. O que eu queria mostrar é como a China, no cenário político mundial, atua. E como o mundo entende a China. Ironicamente, a primeira lição que eu tive não foi da China. Mas do Ocidente. Todos os maiores festivais de cinema do mundo que tentamos apresentar o filme, em Toronto, Nova Iorque e distribuidores como Netflix e Amazon, todos amaram o filme quando nós o mostramos. Não acreditavam que tínhamos conseguido fazer isso. Algo tão poderoso e emocional. Mas, no final, a resposta que obtivemos era: não podemos aceitar o seu filme.

P. Como o sr. reagiu?

R. Eu entendo a situação. O mercado do cinema é hoje chinês. A China, desde fevereiro, superou os EUA como o maior mercado cinematográfico do mundo. O maior consumidor hoje do mundo é a China e, para os festivais, eles estão sob uma auto-censura ou sob censura da China. Claramente, eles só podem apresentar filmes que tenham sido alvo de um Dragoon Seal (Selo do Dragão), reconhecido pelo departamento de propaganda do partido comunista chinês. Obter isso é praticamente impossível. Muitos dos meus colegas na China nunca vão conseguir isso. Podem tentar por anos. Portanto, para que alguém apresente um filme meu ― mesmo que eu não critique a China ―não é possível. Não podem estar associados ao meu nome. Isso afetaria sua possibilidade comercial na China. Lá, apenas o Estado é comprador. Não estamos falando de um país ocidental, onde existem agentes privados no cinema. Mas mesmo a indústria do cinema no Ocidente se recusou a mostrar meu filme. Entendi que eles têm uma sólida presença na China e simplesmente não podem fazer isso. Como empresário, eles não podem perder esse mercado. Não é algo certo ou errado.

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P. Então o que é?

R. O Ocidente está totalmente colapsado com a necessidade de capital e na busca do lucro. Eles abandonaram liberdades e outros argumentos.

P. O que o sr. está dizendo é que a questão da liberdade de expressão não enfrenta desafios apenas na China. Mas também no Ocidente. Como o sr. acredita que o mundo vai emergir da pandemia, nessa questão?

P. Quando falamos em liberdade de expressão, sabemos que viveremos em condições muito piores. Não apenas na China. Mas em todo o mundo. Na China, estamos sob intenso controle e monitoramento. O controle é como se fosse de um filme de ficção científica ou de uma imaginação. Mas é a realidade. Mas, no Ocidente, acabamos de ouvir como grandes empresas de tecnologia têm vazado informações sobre usuários para empresas chinesas. Tudo na China tem o controle do Governo. Portanto, as autoridades podem controlar a informação de indivíduos no Ocidente também. Essa é a nova realidade. As grandes empresas estão profundamente relacionadas com a China e não há uma fronteira, ideologia ou nenhum tipo de argumento. Apenas lucros. Do lado da China, claramente eles estão saindo vitoriosos. A China venceu em termos estratégicos e, por isso, podemos prever claramente que a liberdade de expressão será profundamente afetada.

P. Como o sr. avalia a reação do Ocidente diante dessa constatação?

R. O Ocidente não tem valores reais. Um colunista do Washington Post é morto numa embaixada e o Governo americano diz que não é nada. Se o Ocidente pode aceitar isso, não tem qualquer possibilidade moral de argumentar. Julian Assange continua preso. Falar em liberdade de expressão é uma piada. Só se permite que se fale algo que eles aceitem. Nunca te deixarão falar algo realmente crucial ou questionar o establishment.

P. O sr. acha que um dia saberemos de fato o que ocorreu há um ano em Wuhan com a pandemia?

R.Não. Não acho que saberemos. O regime comunista é muito poderoso e forte e mantém um sigilo. A OMS fez uma missão superficial apenas. Eles (OMS) têm também uma responsabilidade pelo que ocorre, já que logo no início da crise, eles indicaram que a doença não era transmissível entre seres humanos. Estamos enfrentando um monstro muito maior do que imaginamos. Não há Estado, ideologia e não sabemos onde o inimigo está.

P. Em termos geopolíticos, o que vai acontecer no planeta no período pós-pandemia?

R. Estamos atravessando um período muito frágil. Não acho que a pandemia está abrindo a mente das pessoas para entender a dimensão do desafio que estamos enfrentando no futuro. Em muitos aspectos, estamos lidando com realidades inéditas para a sociedade humana. Tecnologia, Estados poderosos como a China e a incapacidade do Ocidente em lidar com esse estado autoritário, além dos enormes problemas climáticos. Tudo isso coloca nossa condição humana em questão.

P. A democracia pode também sofrer?

R. A onda de 30 ou 40 anos de democratização está chegando ao seu final. Se você vê o que ocorre no Brasil ou nos EUA e tantos outros países, há um enorme retrocesso no que se refere à democracia e ao estado liberal. Muitos desses países estão em crises domésticas, abrindo um espaço enorme para os regimes autoritários.

P. Qual a avaliação que o sr. faz hoje de Bolsonaro?

R. Você tem líderes como ele, mas também Vladimir Putin ou o chinês (Xi Jinping). Acho que durarão por um longo tempo ainda.

P. A resposta que foi dada à pandemia em países com líderes populistas fracassou. Por qual motivo?

R. O Ocidente não sabe lidar com emergências. Há muitos interesses nisso. Siga o dinheiro. Veja quem ganhou com a pandemia. Muita gente ganhou. O mundo tem novos bilionários. Lamento dizer, mas a verdade é que o mundo precisa estudar quem é que mais ganhou com a pandemia. Para esses políticos, a vida e a morte não é uma questão. Ouvimos como eles disseram que isso tudo era normal. Essa atitude conta toda a história.

P. Qual é o sistema imunológico da sociedade e o que podemos fazer para nos proteger disso tudo?

R. A sociedade civil precisa defender a liberdade de expressão e uma voz independente. Se não tivermos isso, não teremos o controle sobre o futuro.

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