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Com escassez de vacinas ocidentais, imunizantes da Rússia, Índia e China ganham popularidade

Laboratórios desses países estão entre as opções mais buscadas por Governos que não encontram imunizantes suficientes de laboratórios dos EUA e Europa. Neste ano, Brasil negociou 30 milhões de doses da vacina russa e da indiana

O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban, recebe, em 28 de fevereiro, a vacina do laboratório chinês Sinopharm, da qual seu país adquiriu cinco milhões de doses.
O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban, recebe, em 28 de fevereiro, a vacina do laboratório chinês Sinopharm, da qual seu país adquiriu cinco milhões de doses.AP

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O rei Mohamed VI, de Marrocos, foi imunizado contra a covid-19 na semana com a vacina chinesa do laboratório Sinopharm. No domingo anterior havia sido a vez do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban. A Turquia adquiriu 100 milhões de doses de outra vacina chinesa, a da Sinovac, a mesma que foi administrada ao presidente do Chile, Sebastián Piñera. E, na segunda-feira passada, num ato ostensivo de patriotismo científico, o chefe de Governo indiano, Narendra Modi, recebeu a primeira dose da Covaxin, 100% desenvolvida na Índia. Por causa da falta de vacinas dos laboratórios farmacêuticos ocidentais, os países menos desenvolvidos (e muitos dos desenvolvidos) estão injetando as que vêm do Oriente.

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Sputnik V, vacina russa contra a covid-19, alcança eficácia de 92% em ensaio com 20.000 participantes

A vacina russa se chama Sputnik V e foi criada pelo Centro Nacional Gamaleya de Pesquisa Epidemiológica e Microbiológica, com sede em Moscou. A Eslováquia autorizou seu uso em 1º de março, e no mesmo dia já recebia as primeiras 200.000 doses, de um total de um milhão previstas no contrato. A Hungria já estava vacinando sua população com ela, e a República Tcheca cogita fazer o mesmo. Até a Áustria mostrou seu interesse. Tchecos e eslovacos estão entre os países com a maior taxa de mortalidade pela covid-19 do mundo, por isso suas autoridades preferiram não esperar as novas remessas das três vacinas ocidentais aprovadas pela União Europeia. A Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês) acaba de iniciar a revisão do produto russo, mas ainda não o autorizou.

O primeiro-ministro eslovaco, Igor Matovic, disse em entrevista coletiva junto ao avião que trazia o primeiro lote que essas vacinas russas “poderiam acelerar o processo de vacinação em 40%”, segundo a agência Reuters. Até agora, os eslovacos tinham recebido 300.000 dose de laboratórios dos EUA e Europa, na sua maioria da Oxford/AstraZeneca e Pfizer/BioNTech. O peso da pandemia e a demora na distribuição explicam em parte por que a Sputnik V está cobrindo essa lacuna. Os laços históricos entre os antigos membros do Pacto de Varsóvia (aliança militar de países comunistas da Europa, no século XX) também podem ter pesado. Segundo o Fundo Russo de Investimento Direto, que financiou a Sputnik V, 39 países (ver mapas), habitados por mais de 1,1 bilhão de pessoas, autorizaram seu uso ou já a estão administrando.

Por sua tecnologia, a Sputnik V é também a mais ocidental das vacinas que vêm do Oriente. Assim como as de Oxford/AstraZeneca e do laboratório Janssen, que está prestes a ser aprovada na UE, a russa usa a técnica do vetor viral. Recorre a outros vírus (adenovírus humano), modificados e incapazes de se replicarem, para levar às células as instruções que ensinam a produzir a proteína da espícula do coronavírus. É ela que ativa o sistema imunológico.

Da dezena de inoculações orientais já em uso, só a do Gamaleya e uma das chinesas (a do laboratório CanSino) usam esse sistema, baseado no adenovírus humano. As demais foram criadas a partir do próprio coronavírus SARS-CoV-2 ou partes dele, uma técnica em desuso nos países ocidentais. “Estas vacinas exigem o cultivo do próprio vírus em laboratório, inativando-o com a exposição a substâncias químicas”, explica Adelaida Sarukhan, pesquisadora de vírus emergentes do Instituto de Saúde Global (ISGlobal), de Barcelona.

O coordenador do projeto da vacina contra covid-19 do Hospital Clínic-IDIBAPS de Barcelona, Felipe García, recorda que a tendência no Ocidente é de não fazer pesquisas neste campo, por acarretarem “uma série de problemas”. Por um lado, há a questão da segurança, já que “é preciso estarmos muito seguros de que o vírus está totalmente desativado”. De outro, acrescenta, se o vírus estiver morto, sua capacidade de ativar o sistema imunológico diminui muito.

Mas o que García e Sarukhan mais questionam é a falta de transparência e escrutínio público de seus ensaios. Nenhuma das vacinas orientais à base de vírus inativados teve os dados de seus últimos ensaios clínicos publicados ou revisados por outros cientistas. Só a CoronaVac, do laboratório chinês Sinovac, divulgou os resultados de seus primeiros ensaios em humanos na revista The Lancet. Mas, a julgar pelos comunicados e declarações oficiais, sua eficácia oscila entre 50% e 79%. “Seus níveis são mais modestos, mas faltam conhecer os últimos resultados”, observa Sarukhan.

Apesar disso, mais de 50 países compraram alguma das três vacinas chinesas ou a indiana Covaxin, todas feitas com vírus inativados. No Brasil, o Ministério da Saúde diz negociou 30 milhões de doses da vacina russa e da indiana. Serão entregues a partir de março 20 milhões de doses da Covaxin e 10 milhões da Sputnik V. E é que essas vacinas têm suas vantagens: trata-se de uma tecnologia madura, na qual a China e a Índia têm muita experiência. A produção em escala industrial é mais simples e barata, e ambos os países contam com a infraestrutura necessária para produzir milhões de doses por dia. Além disso, não exigem conservação em frio extremo, como é o caso, por exemplo, das vacinas de RNA da Moderna e da Pfizer. O problema da temperatura está fazendo que estes dois produtos norte-americanos quase não sejam distribuídos na calorosa e pouco equipada África Subsaariana.

O fundador da plataforma SciTech Africa, Uwagbale Edward-Ekpu, argumenta que, das imunizações ocidentais, “a da AstraZeneca é a vacina contra covid-19 mais adequada para o continente, já que é mais barata, e os países africanos já têm a infraestrutura de cadeia de frio de 2 a 8 graus Celsius que ela exige”. De fato, é ela que está sendo distribuída no continente africano como parte da iniciativa internacional Covax, promovida pela Coalizão para as Inovações em Preparação para Epidemias, a aliança para a Vacinação GAVI e a Organização Mundial da Saúde (OMS). A distribuição das vacinas por essa plataforma já começou, e seus responsáveis esperam entregar 75 milhões de doses até maio, de um total de dois bilhões previstas até o ano que vem.

Mas a Covax só financia a vacinação de 20% da população, e o resto precisa ser adquirido pelos Governos. Por isso, Edward-Ekpu, também colaborador da plataforma de vigilância da covid-19 na África do Instituto Milken, acredita que os imunizantes da Ásia e Rússia terão seu espaço garantido na região: “Apesar do ceticismo inicial, vários países africanos já tinham optado pela vacina chinesa Sinopharm e a russa Sputnik devido à falta de acesso às vacinas ocidentais. Com mais dados que mostrem sua eficácia e segurança, junto com o esforço diplomático feito pela Rússia e China para promover suas vacinas na África, acredito que mais nações africanas acabarão comprando dos chineses e russos, independentemente de terem ou não acesso às vacinas ocidentais”.

A Sinopharm, uma empresa estatal chinesa, já enviou lotes de suas vacinas a todo o continente africano, de Marrocos ao Zimbábue, passando por Senegal e Guiné-Equatorial. Há países como o Egito que adquiriram 20 milhões de doses. E, na Ásia, o governo chinês a está doando em lotes de 100.000 a uma dezena de países.

Deixando de lado os casos do Peru e Argentina, que têm acordos com a Sinopharm para receber 38 e 30 milhões de doses, respectivamente, a que triunfa na América Latina é outra chinesa, a da Sinovac, com contratos vigentes em uma dezena de países. Como a anterior, trata-se de uma empresa controlada pelo Governo chinês. Seu produto foi testado no Chile e no Brasil, países que apostaram nessa vacina para cobrir boa parte de seus planos de vacinação. O Chile, por exemplo, visto como modelo de sucesso na imunização, adquiriu 60 milhões de doses da vacina da Sinovac, chamada CoronaVac, apesar de ter menos de 20 milhões de habitantes. Já o Brasil reservou 100 milhões, mas tem 10 vezes mais habitantes que o Chile, segundo dados do Unicef (órgão da ONU para a infância e a educação). Em terceiro lugar aparece a vacina da CanSino, único imunizante chinês a usar a tecnologia do adenovírus. O México comprou 35 milhões de doses dela.

Ofuscada pela onipresença das vacinas russas e chinesas, a Índia parece estar em um segundo plano, mas é provável que, quando o mundo inteiro estiver vacinado, o maior percentual de imunização se deva aos produtos indianos, sobretudo nas nações emergentes ou menos desenvolvidas. Os laboratórios do subcontinente produzem 60% das vacinas que circulam pelo planeta. A maior dessas fábricas, o Serum Institute, tem capacidade para produzir 1,5 bilhão de doses por ano e está construindo outra linha de produção com capacidade para mais um bilhão. Os principais laboratórios ocidentais já estão envasando suas fórmulas no subcontinente.

Ao contrário do que ocorre nessas meras linhas de montagem, a Covaxin é autenticamente indiana. É feita com vírus inativado e, novamente, provém de uma empresa pública, chamada Bharat Biotech. Apesar de não terem sido revisados pela comunidade científica, os resultados de seu ensaio clínico apontam para uma eficácia de 81%. Entretanto, apesar de aprovada em uma dezena de países, o protagonismo cabe a outro produto, o Covishield, do Serum Institute – que nada mais é que a vacina da AstraZeneca, fabricada sob licença. A plataforma Covax já tem 1,1 bilhão de doses encomendadas, com opção de comprar outros 900 milhões, e muitos países estão fazendo contratos com o Serum Institute em vez de procurar a AstraZeneca. Aliás, a empresa indiana está fazendo um ensaio com a Sputnik V russa e poderia também fabricá-la em escala maciça.

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María Belén Herrero, pesquisadora da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais no âmbito de saúde internacional e soberania sanitária, considera que as vacinas orientais “estão disputando o cenário com os grandes laboratórios farmacêuticos ocidentais”. Na verdade, diz, “a América Latina não teria podido iniciar os processos de vacinação até agora se não fosse por estas vacinas”.

Mas Herrero alerta que as vacinas russas, chinesas e índias não bastarão. “Confirmam a lógica individualista que se destaca desde o início da pandemia, o ‘salve-se quem puder’”, observa. No entanto, sua simples existência ilustra “a importância de fomentar e fortalecer a produção pública”. Não por acaso, apenas 2 das 10 vacinas orientais em uso foram desenvolvidas por empresas privadas. No Ocidente, nenhuma vacina é pública, embora tenham sido financiadas com dinheiro governamental. Por último, a socióloga argentina sente falta de mecanismos globais que funcionem efetivamente.

Esse mecanismo global deveria ser a Covax. Como recorda Virginia Rodríguez, especialista em questões políticas do ISGlobal, “a ideia inicial era criar um mecanismo para distribuir as vacinas em nível global de forma equitativa”. Mas, ao impor-se a lógica individualista destacada por Herrero, “os países mais ricos priorizaram seus interesses: imunizar primeiro a sua população”. Quando os Estados com mais recursos começaram a comprar e a monopolizar, “observou-se que a Covax, por seu volume de aquisições, se tornaria uma ferramenta para os países de renda média. Os mais pobres dependem das doações para o sistema e das vacinas restantes, e estas demorarão a chegar”. E é aqui, conclui Rodríguez, “onde se abre espaço para as vacinas russas e chinesas”.

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