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O povoado francês que desafiou o fascismo

Chambon-sur-Lignon acolheu milhares de judeus e exilados republicanos espanhóis durante a II Guerra Mundial. Um deles acaba de deixar sua fortuna para a comuna francesa

Crianças em Chambon-sur-Lignon por volta de 1943. Coleção privada.
Crianças em Chambon-sur-Lignon por volta de 1943. Coleção privada.
Silvia Ayuso
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O advogado judeu que lutou pelas liberdades dos nazistas
Margot Frank, a la derecha, en un club de remo en 1941.
Margot Frank também escreveu um diário

Erich Schwam nunca esqueceu Chambon-sur-Lignon. O farmacêutico viúvo, francês de origem austríaca, sempre foi muito reservado. Tanto que muito poucos sabiam de sua origem sofrida. Só após sua morte em dezembro, aos 90 anos, quando veio o anúncio de que havia deixado todos os seus bens —quase dois milhões de euros (13,5 milhões de reais)— para Chambon, foi lançada uma luz sobre seu passado e, de quebra, sobre este povoado do Alto Loire que, no momento mais terrível da ocupação nazista da França durante a II Guerra Mundial, acolheu e salvou da deportação milhares de crianças judias, entre elas o próprio Schwam, da mesma forma que havia abrigado republicanos espanhóis que fugiram do franquismo.

Uma atitude que levou Chambon, como seus moradores chamam esta comuna de 2.500 habitantes de maioria protestante ao sul de Lyon, a ser uma das duas localidades do mundo, juntamente com a holandesa Nieuwlande, reconhecidas de forma coletiva como Justas entre as Nações pelo Yad Vashem, o Museu do Holocausto judeu. Em tempos de novas tentações autoritárias, a notícia do legado de Schwam teve bastante repercussão.

“Talvez seja pelo ambiente atual”, reflete Denise Vallat, vice-prefeita de Cultura desta localidade de difícil acesso, situada em uma meseta a 1.000 metros de altitude. Uma particularidade que, durante séculos, fez dela o refúgio ideal para huguenotes perseguidos no século XVII e padres refratários durante a Revolução francesa. No final do século XIX, tornou-se um centro de descanso para filhos de famílias carentes do sudeste da França, acolhidos em albergues e granjas da área. Graças a isso, Chambon dispunha de uma infraestrutura que lhe permitiu, após a ocupação nazista, oferecer refúgio a crianças judias e exiladas republicanos espanhóis, com ajuda de uma rede de associações internacionais e de pastores protestantes como André Trocmé, outro Justo.

“É uma bela terra, um pouco severa”, escreveu Albert Camus quando chegou, no outono de 1942, a Chambon para se recuperar de uma doença pulmonar na casa de um parente. Impedido pelo avanço da guerra de voltar a Orã, na Argélia, o futuro prêmio Nobel de Literatura acabou vivendo um ano em Chambon. Ali terminou A peste e preparou O mal-entendido. Também deixou rastro o filósofo Paul Ricoeur (mentor do presidente Emmanuel Macron), que lecionou no prestigioso instituto Cévenol, onde Erich Schwam concluiu o ensino médio —foi um dos poucos refugiados que não partiram quando a guerra acabou— antes de estudar Farmácia em Lyon. A estada de Camus coincidiu parcialmente com a de Schwam, que, segundo os primeiros dados recolhidos por Vallat e pelo historiador local Gérard Bollon, chegou a Chambon em fevereiro de 1943, aos 12 anos.

Vallat, professora de história aposentada, e Bollon se propuseram a descobrir o máximo possível sobre Schwam, cuja herança será destinada, conforme seus desejo, a “ações a favor dos jovens” na educação. “O que ele nos legou é o fruto do trabalho de toda uma vida, não um bilhete de loteria, por isso é muito importante que os habitantes do povoado saibam quem foi”, explica Vallat, que prepara uma exposição sobre Schwam.

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Mas rastrear sua vida está sendo uma tarefa quase detetivesca, porque ele “não deixou nenhuma carta, nem informação”. Em sua casa nos arredores de Lyon foi encontrado um envelope pardo com uma breve inscrição: Áustria, papéis velhos. Esses passaportes e documentos antigos permitem seguir a pista de Erich Schwam e seus pais, Oskar e Malcie, de sua Viena natal até Bruxelas, para onde partiram depois da anexação da Áustria em 1938, para acabar nos campos de concentração franceses de Gurs e Rivesaltes, onde ficaram amontoados juntamente com milhares de exilados republicanos. Vallat e Bollon também descobriram que Oskar Schwam, que era médico, trabalhou na maternidade suíça de Elna, próxima dos campos de concentração, na qual nasceram mais de 50 bebês espanhóis. Foi certamente uma enfermeira suíça da maternidade que conseguiu evitar a deportação, em 1942, dos Schwam para Drancy —onde o regime colaboracionista do marechal Pétain internava os judeus antes de mandá-los para campos de concentração nazistas—, e que enviou Erich e sua mãe para Chambon um ano mais tarde.

A espanhola Juliette Usach.
A espanhola Juliette Usach.

“O trajeto de sua família é muito emblemático daquele que foi feito por tantas outras famílias que passaram por aqui”, assinala Vallat. Está confirmado que “quase 2.000 pessoas —na maioria crianças, mas também famílias e pessoas sozinhas— passaram por Chambon e seus arredores”. O que permite estimar que, na verdade, houvesse entre 2.500 e 3.000 refugiados judeus, diz Vallat. A eles se somavam os espanhóis exilados que começaram a chegar à área em plena Guerra Civil e, principalmente, a partir de 1939.

Um deles foi Lluis Pepito Gausachs, futuro secretário de Josep Tarradellas no Governo catalão. Em 29 de junho de 1943, Gausachs caiu na pior blitz sofrida por Chambon, na Maison des Roches, uma das casas que abrigavam judeus e outros refugiados. Foram detidos 18 jovens, entre eles 5 espanhóis, poucos dos quais sobreviveram. Gausachs foi liberado por ter resgatado, alguns dias antes, um soldado alemão que estava se afogando no rio.

Outro espanhol que se salvou foi Antonio Plazas, filho de um anarquista republicano de Barcelona que chegou com 18 anos a Chambon, vindo de Rivesaltes, e que acabaria lecionando no Cévenol com Ricoeur. Outra espanhola, Juliette Usach, também ocupa um lugar muito especial na memória local. Em 1939, a médica protestante catalã foi encarregada de administrar uma casa dedicada inicialmente a acolher mulheres e crianças republicanas e que, a partir de 1941, passou a abrigar também as numerosas crianças judias que chegavam a Chambon.

O milagre do silêncio

O nome dessa “excelente mulher”, como é recordada pelo historiador Bollon com carinho e tristeza, já que morreu “na miséria”, figura na lista de Justos de Chambon exibida no memorial inaugurado em 2013 ao lado da escola frequentada por todas essas crianças salvas, em muitos casos sob identidade falsa para despistar as autoridades. Nas mesmas salas de aula estudam hoje os filhos de cerca de 50 solicitantes de asilo que aguardam sua documentação no povoado.

Porque o “milagre do silêncio”, como Bollon descreve a ação coletiva de toda uma população que jamais denunciou nem os refugiados nem aqueles que os acolheram, continuou nesta comuna que, décadas depois, também daria proteção a crianças tibetanas enviadas pelo Dalai Lama. Assim como a boat people (refugiados vietnamitas) e a iranianos que fugiram da Revolução Islâmica de 1979. Sempre sem alarde. Um exemplo dessa sobriedade, conta Vallat, é que existe uma tradição em Chambon respeitada até hoje: “Nenhuma rua e nenhum edifício tem o nome de ninguém, nem do povoado nem de personalidades como De Gaulle”. Apesar de sua generosidade, também não haverá uma rua Schwam. Em Chambon, as ações heroicas não têm preço, nem prêmio.

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