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Naomi Klein: “O ‘Green New Deal’ é um plano de emprego, é ainda mais relevante com a covid-19”

A autora de ‘Sem logo’ e ‘A doutrina do choque’ lança um novo livro e alerta que é tarde demais para evitar os desastres ambientais, mas não para impedir “a grande catástrofe mundial”

A jornalista Naomi Klein, fotografada em setembro de 2019.
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Naomi Klein recupera uma frase de Margaret Thatcher para ilustrar exatamente o oposto do que precisamos diante da emergência climática que nos ameaça. “O que é sociedade?”, perguntou a premiê britânica em 1987 para justificar seu ataque aos serviços sociais: “Isso não existe! Há indivíduos e há famílias!”. É aí, nessa filosofia da solidão e do indivíduo que se impôs sobre o conceito social, estão os nossos males. O polo oposto é o que propõe On fire: the burning case for a Green New Deal (A ardente demanda por um New Deal verde, não publicado no Brasil, tradução livre), o novo livro da jornalista canadense que provocou solavancos intelectuais no modo de vida do Ocidente em Sem logo, A doutrina do choque e Tudo pode mudar: capitalismo vs clima.

Da província de British Columbia, no Canadá, ele falou recentemente por videoconferência sobre sua última obra, ainda sem lançamento no Brasil, na qual defende o movimento social como forma de evitar a angústia individual frente ao desastre que vivemos e, sobretudo, a responsabilidade dos Governos para impedir que passemos do desastre para a catástrofe. On fire, que leva o título de uma das grandes frases com que Greta Thunberg cutucou a elite mundial em Davos (“aja como se sua casa estivesse em chamas, porque está”), encadeia artigos publicados por Klein na última década para ampliar o foco e elucidar a transformação na consciência que ocorreu nestes dez anos diante das mudanças climáticas. De uma causa que ficava em segundo plano quando havia outras emergências —como a crise de 2008—, passou a fazer parte da solução ante a nova recessão graças ao Green New Deal, uma proposta global que conseguiu entrar na agenda dos Estados Unidos e da Europa e que Klein defende com ardor. On fire é, antes de mais nada, um livro de leitura tão rápida como urgente e concreto em propostas de profundidade.

Pergunta. Seu livro retoma a figura visionária de Franklin D. Roosevelt na promoção do New Deal, que ele conseguiu impor diante de todas as resistências e de acusações de ser socialista. Precisamos de um Roosevelt do Green New Deal? Quem poderia ser?

Resposta. Não será uma única figura. Cada país precisa encontrar uma maneira de se transformar para fazer o que for preciso diante de uma ameaça existencial. Os líderes emergem em tempos de crise como este. Roosevelt não era visto como um político radical quando se tornou presidente, ele havia sido governador de Nova York, era uma figura do establishment, mas chegar ao poder em meio à Grande Depressão e receber pressão da população o transformou. Vemos isso agora com Joe Biden. Ele também é um político do establishment, estava à direita de Obama em sua Administração, e o que já estamos vendo em seu primeiro mês não tem nada a ver com o que vimos nos anos de Obama: Biden tornou-se mais decisivo, de pensamento muito mais profundo e assume que é preciso fazer e gastar o que for necessário. Os momentos constroem as lideranças. Não se trata tanto de personalidades, mas das dinâmicas que causam a transformação de dirigentes. Acredito nas condições políticas que produzem líderes.

P. Trump se foi. Podemos ter esperança na luta contra as mudanças climáticas?

R. Dizer “esperança” é um exagero. Há um alívio porque pelo menos temos as conversas corretas com os argumentos necessários. Não estamos mais falando sobre a existência ou não das mudanças climáticas, mas sobre como nos transformarmos de acordo com critérios de ciência e justiça. Essa é a coisa certa a fazer e é um alívio. Mas só terei esperança quando as emissões começarem a cair. Greta Thunberg tem razão quando denuncia o palavreado dos políticos, que podem dizer as coisas certas durante décadas, mas, enquanto as emissões não caírem 8% ou 10% ao ano, isso não importa. É por isso que é preciso combinar a esperança e a ação.

P. Seu livro destaca a mobilização mundial liderada por Greta Thunberg. Não tem medo de que o novo coronavírus tenha tirado o foco dessa luta?

R. Sempre temi porque já vimos isso antes. Quando o foco está nas mudanças climáticas, surge outra crise e todo o mundo as esquecem. Na Espanha aconteceu: antes da crise financeira mundial de 2008 estava muito focada nas mudanças climáticas. Quando a crise irrompeu e a austeridade brutal prevaleceu, houve a sensação de que já não poderia mais se permitir isso. Porque o tipo de políticas que estavam sendo implementadas então na Espanha e em outros países não se enquadrava em um Green New Deal. Eram leis sobre o comércio de direitos de emissão ou investimentos em energia renovável que não protegiam os consumidores o suficiente para evitar que o custo aumentasse. Quando veio a crise econômica, espalhou-se essa sensação de: “Tudo bem, o clima é algo com que se preocupar quando você não precisa se preocupar em colocar comida na mesa”. Mas agora é diferente. O Green New Deal é um plano de emprego, um plano de estímulo econômico, e é ainda mais relevante quando há uma crise como a causada pela covid-19. Cada país agora precisa esboçar um caminho para sair da crise e esse caminho pode ser de recuperação verde. Não estamos cometendo os mesmos erros que cometemos em 2009 e 2010. Além disso, estamos aprendendo com os erros. Na França, por exemplo, Emmanuel Macron colocou o custo do combate às mudanças climáticas na classe trabalhadora com seu imposto sobre o diesel. Isso aumentou o custo de vida e gerou uma reação, os coletes amarelos. Você não pode pedir aos trabalhadores que carreguem o fardo enquanto deixa os mais ricos seguirem seu ritmo de consumo como se nada estivesse acontecendo. É uma injustiça climática.

P. Analisa a pandemia como resultado das mudanças climáticas?

R. A crise climática é parte de uma crise ecológica mais ampla, de um padrão maior de como estamos explorando a natureza para nossos propósitos mais rápido do que os ciclos de regeneração podem suportar. As doenças que saltam dos animais para os humanos estão frequentemente associadas à pressão sobre o mundo vegetal e os habitats. E é preciso ver a covid-19 no contexto dessa crise ecológica que reflete nossa relação insustentável com o mundo natural. Assumimos que podemos nos expandir mais e mais e mais sem enfrentar as consequências. Nosso modo de vida está desvalorizando o mundo natural. As mudanças climáticas são parte disso, e a pandemia também.

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P. Somos nós, os indivíduos, responsáveis ou são os governos?

R. Há muito que podemos fazer como indivíduos para reduzir nossas emissões. Esta videoconferência é um bom modelo para lançar livros no futuro, espero que meus editores não se importem [risos]. Voar apenas por motivos essenciais, não comer carne, usar carros elétricos, painéis solares no telhado... faço muitas dessas coisas. Mas devemos ser claros: não é a solução. Assim estabelecemos modelos de um modo de vida diferente, e é importante tê-los. Mas não vamos reduzir as emissões na velocidade necessária, que é de 8% ou 10% ao ano, sem uma estratégia internacional e em cada país. Precisamos de leis, leis aplicáveis. Uma das coisas que vimos com a covid-19 é como um Governo deve lidar com uma verdadeira emergência: você não sugere às pessoas que fiquem em casa, mas ordena que fiquem em casa. E impõe sanções. E também se assegura de cuidar das vidas. Muito se pode aprender com as melhores respostas à covid-19: há leis a impor, mas também justiça para garantir que as pessoas recebam o seu salário, que tenham dinheiro suficiente, alimentos, garantir o essencial, que os pequenos negócios não quebrem... E depois há os protestos, é claro. Quando você impõe uma ação sem justiça, as pessoas ficam tão estressadas que se rebelam. Vimos isso com os confinamentos. Se as pessoas se desesperam, começam a pensar em conspirações. E é disso que trata o Green New Deal: precisamos de ação, mas vamos garantir que as pessoas tenham empregos, que seus salários alcancem um mínimo, que ninguém seja deixado para trás e que as comunidades mais negligenciadas se beneficiem dessa transição. Quando você assume esse espírito, pode agir rápido. Vimos isso com a covid-19 em países que agiram bem, como a Nova Zelândia.

P. Continuando com essa responsabilidade individual, não há o risco de nos sentirmos responsáveis por coisas demais, risco de angústia? Greta Thunberg viveu isso e muitos outros jovens também.

R. Por isso precisamos de movimentos e não apenas de ação individual, e de governos que apresentem claramente um plano para a população e digam: “Isso não depende só de você, de que sejam perfeitos. Isto é o que vamos fazer como sociedade para mudar e vamos lhes dar este apoio”. A angústia é produzida pela dissonância entre a compreensão da crise e a constatação de que tudo permanece igual ao seu redor. Aconteceu com Greta Thunberg. Ver que não havia correspondência entre o que aprendia com a ciência e o que todo mundo estava fazendo, que não era nada. Muitos jovens com quem falei acreditam que o melhor antídoto para a desesperança que sentem é organizar movimentos. É por isso que a pandemia foi tão severa, especialmente para os jovens. Não puderam se reunir, a não ser por videoconferência ou nas redes sociais. E as redes têm uma forma própria de pressionar, de gerar ansiedade. Portanto, espero que logo possamos nos reunir de novo e que as pessoas sintam que não estão sozinhas nisso. Livrar-nos desta sensação de isolamento.

P. Ao mesmo tempo que as manifestações desapareceram, a questão parece ter ganhado mais importância entre os políticos.

R. Estamos vendo isso nos Estados Unidos, onde graças a essa pressão os jovens se organizaram e tiveram um grande papel na eleição de Biden. Existem diferentes formas de mobilização e de pressão, além das manifestações. Por outro lado, esta é uma crise mundial. Na Índia, por exemplo, estão ocorrendo as mobilizações mais importantes da história do país. Agricultores, estimulados pelos jovens, estão protestando pela terra, em mãos da Monsanto. O mundo é grande e pode ser que não estejamos nas ruas da Espanha ou do Canadá, mas em outros lugares as pessoas estão nas ruas. E nós também voltaremos.

P. Há quem considere que o Green New Deal não é compatível com o capitalismo.

R. O Green New Deal é um plano para uma economia muito, muito ativa. A única analogia na história do capitalismo que podemos apontar é a forma como as economias se organizaram na Segunda Guerra Mundial para derrotar o fascismo, o modo como Roosevelt reorientou por completo a economia. Foram criados agências e programas para transformá-la. E, enquanto isso, o acusavam de ser socialista. Existe um conflito fundamental entre as lógicas do capitalismo que equiparam uma economia saudável com crescimento, por um lado, e o fato de que o mundo está em crise, por outro. O clima é uma dessas crises, a pandemia também, e é por isso que temos que aprender as lições da covid-19. Quando se trata de construir uma economia essencial, do que as pessoas precisam para ter uma vida boa? É preciso começar por aí, e não pelo consumo como ponto central —sem importar o que polua—, simplesmente porque é bom para o crescimento econômico. Essa é a lacuna fundamental entre o capitalismo e qualquer tipo de ação séria contra as mudanças climáticas. Quando se leva a sério a redução das emissões entre 8% e 10% ao ano, se queremos um futuro habitável, não podemos perseguir o crescimento como lema principal da economia. É preciso ser claro quanto a isto. Porque você pode ter algo parecido com o Green New Deal e criar muitos empregos, painéis solares, energia eólica... e fracassar na redução das emissões porque não quis enfrentar o excesso de consumo.

P. Por que os negacionistas têm tanta força?

R. O movimento conservador nos Estados Unidos está negando basicamente tudo: os resultados das eleições, a covid-19, as máscaras ... E para nós que fazemos parte do movimento contra as mudanças climáticas não é uma surpresa, porque eles também as negam. Depois de negar as leis da física, da química, da ciência e as evidências científicas esmagadoras dos gases que aquecem o planeta, você pode negar tudo. O negacionismo das mudanças climáticas foi o ensaio de todos os negacionismos que vieram depois. E isso tem muito a ver com o que está acontecendo com a informação. Agora recebemos as notícias em plataformas privadas que nos oferecem segundo critérios de mineração de dados e não pautados pela ética da responsabilidade do jornalismo ou pelos valores que costumavam reger nossa informação, ainda que de forma imperfeita.

P. Você critica Hollywood e o gênero distópico que encheu as telas de cinema com o apocalipse social e ecológico porque, segundo diz, não ajudam a causa.

R. Dos textos sagrados incorporamos ao nosso imaginário uma narrativa apocalíptica sobre o fim do mundo. No Antigo Testamento ou no Novo, encontramos grandes inundações, fugas em massa nas quais um pequeno grupo se salva e a maioria dos pecadores morre. E eu acho que essa narrativa bíblica foi reativada por Hollywood em filmes de desastre. Essa visão do futuro se tornou tão ritualística e foi contada tantas vezes que, se ela se torna a única versão do futuro que você vê na tela ou na sua igreja, começa a ser uma profecia. Com a covid-19, as pessoas sentiram os outros como se estivessem em The Walking Dead, essas são nossas referências. Adoro ver um bom filme apocalíptico, como todo mundo, mas acho que também precisamos de filmes que mostrem uma visão do futuro em que possamos decidir mudar, decidir ser diferentes, outro tipo de humanos. Unir-nos em vez de nos separarmos.

P. Acha que podemos contar com a China, que recentemente se comprometeu com a questão das mudanças climáticas?

R. A China está em um cabo de guerra em várias direções na questão climática. Mesmo que seja difícil protestar no país, há muito descontentamento com a qualidade do ar, há muitas forças empurrando para as energias renováveis e o país avançou nessa direção em grande escala, mas também se aferra ao carvão em grande escala, como tudo na China. O que podemos fazer da Europa ou da América do Norte é nos mexermos. Quando nós da América do Norte, da Austrália e da Europa não reconhecemos nossa responsabilidade histórica, os Governos da China, Brasil e Índia usam isso como desculpa: “Por que nós vamos fazer isso, com toda a pobreza que temos, se os ricos não o fazem?”. Se agirmos e conseguirmos o Green New Deal, isso ajudará essas forças no sul global a fazer com que seus Governos façam mais e mais depressa.

P. Você denuncia a questão do clima como a maior injustiça intergeracional. É uma questão de gerações ou de classes sociais?

R. Existe uma injustiça intergeracional que se sobrepõe à injustiça de classes. Nem todos os jovens serão igualmente vulneráveis, mas todos os jovens serão vulneráveis, todos, até mesmo os ricos. As mudanças climáticas não afetam todos por igual. Se você tiver dinheiro, terá melhores oportunidades de segurança, de se defender de tempestades, de respirar um ar melhor.

P. Estamos em tempo de evitar o desastre?

R. Se adotarmos uma verdadeira ação transformadora total e não parcial, teremos a oportunidade de evitar uma mudança climática catastrófica. Mas não podemos mais evitar os desastres, já os estamos vivemos.

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