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López Obrador tenta regular redes sociais e desata tempestade política no México

Medida proposta por senadores do Governo de esquerda permite que usuários recorram à Justiça contra suspensão de seus perfis, inclusive no caso de contas relacionadas a notícias falsas

AMLO en una mañanera
Uma pessoa grava com seu celular a entrevista coletiva do presidente do México, Andrés Manuel López Obrador.Andrea Murcia (CUARTOSCURO)
David Marcial Pérez
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German Chancellor Angela Merkel (L) and German government spokesman Steffen Seibert leave after a press conference on the current situation amid the novel coronavirus / COVID-19 pandemic, following a meeting with her so-called Corona-Cabinet, on November 2, 2020 in Berlin. (Photo by Kay Nietfeld / POOL / AFP)
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Mark Zuckerberg, Chief Executive Officer of Facebook, testifies remotely during the Senate Judiciary Committee hearing on "Breaking the News: Censorship, Suppression, and the 2020 Election", in Washington, U.S., November 17, 2020. Bill Clark/Pool via REUTERS
Congresso dos EUA examina as tecnológicas: “Não devemos nos curvar aos imperadores digitais”

O México começa a trilhar um caminho inexplorado. Senadores do partido Morena, do presidente Andrés Manuel López Obrador, apresentaram na noite de segunda-feira uma iniciativa que regulamenta o funcionamento das redes sociais no país. A reforma, que ainda tem pelo menos três meses de tramitação no Congresso, representa uma reviravolta no cenário ao garantir, ao menos no papel, que usuários das redes sociais poderão recorrer à Justiça mexicana se tiverem seus perfis suspensos ou cancelados por decisão das empresas de tecnologia. Após numerosas reações negativas à proposta, o senador Ricardo Monreal informou nesta terça-feira que adiará por três semanas a apresentação oficial do projeto, para permitir sua discussão.

O primeiro dique, em todo caso, caberá ao Instituto Federal de Telecomunicações (IFT), um órgão administrativo de caráter técnico, que ganhará imenso poder através de um controle duplo. Por um lado, poderá fiscalizar a normativa interna entre os usuários das redes e as empresas, que deverão contar com uma autorização prévia. Por outro, desenvolverá também uma supervisão posterior, concentrada sobretudo nos motivos do cancelamento de contas relacionadas a notícias falsas, mensagens de ódio ou direitos da infância. O novo sistema exige inclusive a criação de departamentos específicos nas empresas para atender às queixas dos usuários, inclui multas às empresas tecnológicas e amplia os caminhos de acesso aos tribunais.

Tendo como pano de fundo o recente cancelamento das contas de Donald Trump e as eleições mexicanas de junho deste ano, o México decidiu dar um passo à frente no tenso equilíbrio entre as grandes empresas tecnológicas e a capacidade dos Estados de regular os pontos cegos da Internet. O objetivo oficial é “a proteção da liberdade de expressão nas redes sociais”, embora juristas e organizações da sociedade civil salientem o deficiente desenho legal de uma iniciativa criada às pressas, sem debate prévio com especialistas e atores sociais, de difícil aplicação e que poderia justamente cercear as liberdades na rede.

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A reforma estabelece um primeiro filtro na hora de definir as redes sociais que ficarão sob o guarda-chuva da regulação: as plataformas com um milhão ou mais assinantes ou usuários, dada sua capacidade “de gerar um impacto maior em processos de comunicação social e na esfera jurídica dos cidadãos”. Para obter a autorização prévia do IFT, as grandes empresas tecnológicas ―Twitter, Facebook e Google― teriam que adequar seus termos de serviço (as regras que os usuários devem seguir) à legislação mexicana. Isso envolve principalmente a proteção “dos direitos dos menores de idade, a eliminação da difusão de mensagens de ódio, a propagação de notícias falsas e a proteção dos dados pessoais”.

Multas milionárias

Ao mesmo tempo, as empresas “deverão incluir um mecanismo rápido para receber impugnações dos usuários contra a suspensão de contas ou perfis, a eliminação de conteúdos ou o cancelamento definitivo”. O México pretende assim exigir que as empresas criem departamentos específicos para responder às solicitações dos usuários, e eles não poderão ser automatizados “mediante o uso de algoritmos ou qualquer outra tecnologia”, e sim operado por “pessoas físicas devidamente capacitadas em matéria de direitos humanos e liberdade de expressão”. Se no prazo de 24 horas a companhia não responder, o usuário poderá se dirigir ao IFT ―com capacidade para impor multas de até 80 milhões de pesos (21,4 milhões de reais), em um percurso que chega até os tribunais.

“É uma iniciativa muito pequena e totalmente conjuntural, que não se encarrega dos problemas que as redes podem gerar, concentrando-se em vez disso em controlar a resolução de conflitos relacionados apenas à suspensão e cancelamento de contas”, observa Javier Martín Reyes, professor de Estudos Jurídicos do CEDE, que duvida inclusive da sua constitucionalidade, devido à ambiguidade jurídica e a falta de precisão do texto: “Como vincula e como exige cumprimento das redes sociais? Como pode cancelá-las, multa-las ou julgá-las se não tiverem sede fiscal no México?”.

O México enfrenta os mesmos obstáculos que os demais países que pretenderam uma regulação ―por exemplo, que as empresas tecnológicas estabelecem contratos privados com usuários que escapam às jurisdições e às legislações de cada Estado. Nesta iniciativa mexicana, a lógica foi equiparar as redes sociais aos meios de comunicação tradicionais. “A única via correta e democrática de proteger a liberdade de expressão no espaço cibernético é a legislativa, o mesmo para imprensa, TV, rádio e redes sociais”, defendeu no final de janeiro o líder do Morena no Senado, Ricardo Monreal, autor de uma iniciativa que se dispõe a reformar profundamente a Lei Federal de Telecomunicações e Radiodifusão.

Organizações internacionais dedicadas à defesa da liberdade de expressão já ergueram a voz ao entender que se trata de uma reforma que confunde o papel do Estado no exercício da liberdade de expressão no âmbito digital. “No México, o acesso a Internet é um direito garantido pela Constituição, não um bem público sob tutela do Estado. A Internet não está nem deve estar sujeita a ser colonizada pelo Estado, diferentemente do rádio e da televisão, onde, através de concessões, conluios e publicidade oficial há um exercício de controle sobre estes meios tradicionais”, dizia nesta terça-feira em um comunicado da organização Artigo 19.

Outras críticas mencionam inclusive os atritos que esta legislação provocaria com o novo tratado de livre comércio na região. “A necessidade de obter uma autorização para a operação das chamadas redes relevantes atenta contra o estabelecido no T-MEC em matéria de trato nacional, pondo barreiras injustificadas ao comércio digital”, aponta a Associação Latino-Americana da Internet (ALAI) em seu comunicado.

A batalha digital do Morena

Monreal, que exerce no Senado as funções de braço executor do Morena ―partido com maioria em ambas as câmaras do Congresso― tem um histórico de projetos destinados a amarrar os serviços digitais. No ano passado, ele tentou obrigar plataformas como Netflix a terem pelo menos 30% de produções mexicanas no seu catálogo. Um ano antes, impulsionou uma reforma da Lei Federal de Proteção de Dados Pessoais para obrigar as plataformas a executarem o chamado “direito ao esquecimento”, a eliminação total de conteúdos quando qualquer usuário assim solicitar. Desta vez, descartada a via fiscal, a origem da iniciativa vem diretamente da cadeira presidencial.

“A Estátua da Liberdade em Nova York está ficando verde de coragem, porque não quer virar um símbolo vazio.” Assim se manifestou Andrés Manuel López Obrador poucos dias depois do cancelamento definitivo da conta de Donald Trump no Twitter ―algo que o Facebook e YouTube também fariam― por “incitação à violência” no marco do ataque ao Capitólio por seus seguidores. O presidente mexicano falou em 14 de janeiro, e a partir daí entrou em funcionamento a máquina legislativa. Monreal reconheceu que já iniciou as conversações com as empresas tecnológicas. “O Facebook se mostrou compreensivo e flexível, e o Twitter um pouco menos”, anunciou numa entrevista ao EL PAÍS na semana passada. Ao mesmo tempo, comprometeu-se a abrir o debate a especialistas, acadêmicos, especialistas e usuários das redes.

“A iniciativa têm muitas inconsistências e é sobretudo uma mensagem política às grandes empresas, uma tentativa de elevar a pressão para que sejam canceladas contas de apoio à 4T [a quarta transformação do país a que se refere López Obrador] com vistas às eleições de junho”, acrescenta Reyes ao calor dos recentes cancelamentos de contas de seguidores do presidente no Twitter. A justificativa da empresa foi que se tratava de “informação enganosa no perfil da conta para realizar ações de spam, perturbação ou assédio”. López Obrador, por sua vez, atacou o diretor da companhia no México, Hugo Rodríguez, acusando-o de ter trabalhado para o PAN, a direita mexicana.

A iniciativa do Morena guarda algumas semelhanças com as tentativas de regulação em outros países. Os EUA vêm há tempos tratando de ajustar sua legislação para que as companhias tecnológicas se tornem responsáveis pelos conteúdos publicados em suas plataformas. Já a União Europeia, junto com a OCDE, procura impor em nível mundial a chamada taxa Google, novos impostos concebidos para sobrecarregar a atividade das grandes plataformas digitais. “A diferença é que a linha no resto do mundo está sendo traçar grandes marcos gerais regulatórios para resolver um problema muito complexo. A proposta do Morena, entretanto, marca regras superespecíficas para resolver o problema concreto do cancelamento de contas”, acrescenta Reyes.

A iniciativa, que pretende colocar o México como pioneiro na garantia da liberdade de expressão, contém também vários paradoxos. O México é o país mais letal do mundo para os jornalistas, com oito repórteres assassinados no ano passado, segundo o último relatório de Repórteres Sem Fronteiras. Além disso tem graves problemas de impunidade, num país onde 9 em cada 10 delitos não são denunciados, e quase um terço dos detentos ainda não têm condenação. Outro paradoxo é a blindagem do Instituto Federal de Telecomunicações (IFT), enquanto o Executivo vai corroendo cada vez mais outros órgãos autônomos, possivelmente, mais aptos para cumprir estas novas funções de controle.

“O IFT é um órgão técnico. Estas funções deveriam ser cumpridas pelo Instituto Nacional de Transparência e Acesso à Informação (INAI), mas se continuar com a tendência ao desmantelamento dos organismos autônomos”, aponta Hugo Concha Cantú, pesquisador do Instituto de Investigações Jurídicas da UNAM. De fato, os planos do López Obrador passam por uma polêmica reforma para eliminar e modificar algumas das instituições de transparência que acabariam integrando o INAI ao Gabinete federal.

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