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Ordens religiosas reconhecem centenas de abusos e escancaram ferida da Igreja Católica na Espanha

Depois dos jesuítas, sete congregações reconhecem 61 episódios de pedofilia, enquanto os bispos se negam a rever seu passado. Total de vítimas na Igreja sobe a mais de 500

Miguel Hurtado, de 36 anos, conta que sofreu abusos sexuais por parte de um monge beneditino de Montserrat.
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Os abusos sexuais contra menores na Igreja Católica na Espanha continuam lentamente saindo à luz e, depois do passo dado há duas semanas pelos jesuítas, ao reconhecerem 81 vítimas das ações de 65 religiosos desde 1927, junto com sua intenção de indenizá-las, outras congregações estão seguindo o mesmo caminho. O EL PAÍS consultou 10 das maiores, e 7 revelaram que também investigaram ou estão investigando o passado e se dispõem igualmente a compensar as vítimas. São meras revisões de arquivos, não estudos rigorosos, que além do mais não foram divulgados publicamente e estão muito longe de refletir a realidade dos abusos na Espanha em comparação ao que se fez em outros países. Por outro lado, entre essas 10 ordens religiosas, os Irmãos Maristas, La Salle e Agostinianos continuam se recusando a revisar seu passado. O resto admite por enquanto 61 casos de religiosos pedófilos, dos quais 42 eram desconhecidos até agora. Somando-se os dados dos jesuítas – 65 casos, sendo 54 novos, segundo estimativas deste jornal –, as ordens católicas admitem 126 casos, dos quais 96 eram desconhecidos até agora. Estes números fazem disparar as estatísticas totais e elevam a mais de 500 o número de vítimas de abusos na Igreja espanhola, segundo a contagem feita pelo EL PAÍS com informação de sentenças, meios de comunicação e apuração própria, dada a ausência de dados oficiais e da Igreja.

Até o começo do mês, eram conhecidos 125 casos desde 1986, mas numa canetada é preciso agregar outros 96. Total: 221 religiosos abusadores, com pelo menos meio milhar de vítimas desde 1927. Ou seja, em poucas semanas foi conhecido quase o mesmo número de casos que nos últimos 35 anos. E em outubro de 2018, quando este jornal começou a investigar os abusos e criou um e-mail para receber denúncias, havia apenas 34 casos contabilizados. Desde então, o EL PAÍS recebeu mais de 200 mensagens e publicou aproximadamente 30 casos. A cifra subiu a toda velocidade com numerosas denúncias de vítimas na mídia.

Escolápios, claretianos, coraçonistas e Legionários de Cristo já fizeram investigações internas. Marianistas e salesianos apresentam cifras provisórias, 28 no último caso, a mais alta depois dos jesuítas. A Opus Dei está terminando seu inquérito. Essas investigações são apenas um primeiro e mínimo passo para a verdade. As ordens constatam que, no passado, os abusos nunca eram denunciados. Na maioria das vezes o acusado era transferido, expulso ou retirado da congregação, de modo que podia continuar cometendo abusos em outros lugares, e a instituição fingia ignorar. É apenas uma primeira abordagem do que aconteceu. Outra iniciativa foi abrir e-mails para receber denúncias, uma via pela qual alguns destes delitos afloraram. Em outros casos, a instituição religiosa simplesmente fica sabendo através da imprensa. A Ordem do Sagrado Coração de Jesus, por exemplo, só tem ciência de um caso, o do alto-comissário do Governo espanhol contra a pobreza infantil, Ernesto Gasco, que há dois meses revelou em uma entrevista que foi vítima de abusos.

Os escolápios da província central da ordem na Espanha só puderam rastrear a pista de um de seus membros, acusado em 1972, que deixou a ordem e foi parar nos Estados Unidos. Relatam que chegaram a contratar um detetive para investigá-lo. Os abusos que conseguiram determinar ocorreram em Madri, Salamanca, Toro e na diocese de Cádiz-Ceuta. Afirmam que do resto não tiveram como saber mais, nem onde ocorreram.

As investigações das ordens não eram conhecidas e só vêm à luz agora por indagação deste jornal. Seus resultados são muito limitados e não foram realizadas por pessoas externas, exceto na província catalã dos claretianos. Não foram revelados detalhes – nomes, lugar e data dos fatos – que, se divulgados, poderiam levar à aparição de mais vítimas. Só arranham a superfície, mas mesmo assim são um avanço na Igreja espanhola, que até 2018 guardava silêncio. E, sobretudo, põe ainda mais em evidência a postura da Conferência Episcopal Espanhola (CEE), um caso praticamente único nos grandes países católicos: nega-se a investigar o passado e a propor uma indenização a estas vítimas.

Completam-se dois anos da cúpula do Vaticano sobre pedofilia, realizada em fevereiro de 2019, e a Igreja espanhola deu poucos passos desde então. Apenas abriu escritórios de atendimento às vítimas em cada diocese, por ordem do Papa. Em outubro de 2018, criou uma comissão contra a pedofilia para atualizar os anacrônicos protocolos vigentes desde 2010, porém mais de dois anos depois nada se sabe sobre o seu trabalho. Em seu site, continuam aparecendo os protocolos antigos. A CEE optou por não responder às perguntas deste jornal e remete a notas e entrevistas coletivas de 2020. Em novembro, o porta-voz dos bispos, Luis Argüello, declarou apenas que as denúncias recebidas eram “zero ou muito poucas”.

Quanto a investigar, a ordem é que cada bispo faça o que quiser, ao contrário da diretriz adotada pelas conferências episcopais dos Estados Unidos, Alemanha, Holanda e França, que lideraram amplas investigações em seus países. Na Alemanha, os bispos encomendaram uma auditoria externa. Demorou quatro anos e teve os resultados publicados em 2018: desde 1946, 3.677 menores sofreram abusos por parte de 1.670 religiosos. A própria Santa Sé publicou há dois meses o demolidor relatório McCarrick, que apontava como João Paulo II e Bento XVI tinham ignorado denúncias de abusos.

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A resposta das 70 dioceses espanholas foi lenta e pouco transparente. Salvo alguns casos, como Cartagena, Madri, Barcelona e Bilbao, os bispados resistem a tornar públicos os números de casos que chegam a seus escritórios. A grande maioria se recusa a investigar seus próprios registros e indenizar as vítimas. O fato é que em todos os países a realidade dos abusos do passado só veio à luz com autênticas comissões da verdade – dos Governos, da Igreja, ou de ambos –, que as vítimas consideraram suficientemente confiáveis e sérias para ouvir seus casos. Se não, estes continuam ocultos.

“O balanço é muito ruim”, opina Juan Ignacio Cortés, autor de um dos poucos livros sobre o tema publicados na Espanha, Lobos con Piel de Pastor (editora San Pablo). “Continua vigente um protocolo bastante infame, foram abertos escritórios nas dioceses, mas se fez muito pouco. Na Espanha ninguém faz nada, não interessa, nem à Igreja nem ao Estado, que no passado devia vigiar porque muitas instituições, de internatos a orfanatos, eram parte do sistema de beneficência estatal. Mesmo agora, nos poucos casos que chegam aos tribunais, as vítimas não deixam de levar paulada, como no caso Gaztelueta, onde o Supremo [Tribunal espanhol] rebaixou a pena de 11 anos de prisão para dois. Há uma insensibilidade total por parte de todos. Todo mundo diz: que barbaridade. Mas depois olha para o outro lado.”

O EL PAÍS contabiliza pela primeira vez os casos de abusos conhecidos, o que inclui sentenças, investigações jornalísticas e denúncias públicas que tenham revelado os possíveis delitos de um religioso espanhol.

A organização Infância Roubada, a primeira a reunir vítimas espanholas em âmbito nacional, acredita que, apesar das ordens explícitas do Papa, algumas conferências episcopais “avançaram muito pouco, e outras, como a CEE, nada”. Seus responsáveis duvidam da eficácia dos escritórios diocesanos e os definem como “uma estratégia de marketing” para lavar o passado da Igreja. Por enquanto, acrescenta a organização, nenhuma diocese entrou em contato com as vítimas que recorreram à associação nos dois últimos anos, quase uma centena. “Dizem que ajudam as vítimas, mas ainda não publicaram nenhum relatório. Tampouco entraram em contato conosco”, salienta Juan Cuatrecasas, presidente da associação e pai da vítima do caso Gaztelueta. “Voltamos a repetir que nos abrimos a colaborar com a Igreja como intermediários”, afirma.

Gemma Varona, criminologista da Universidade do País Basco e autora de um estudo pioneiro sobre os casos registrados na Espanha, em 2015, elogia a decisão das ordens de investigar, mas é muito crítica quanto ao único relatório conhecido, o dos jesuítas. Opina que o resumo divulgado “é incompleto e metodologicamente muito duvidoso”. “Não explicam como o fizeram nem divulgam o estudo completo”, aponta. Sobretudo, como salientam as vítimas, acredita que o número de casos que registra é “ridículo”. “Não é crível; aliás, é incrível que se atrevam a publicá-lo. Há alguns anos, como ponto de partida, era aceitável, mas agora já acumulamos muito atraso.”

A investigação dos jesuítas aponta que 1% de seus membros desde 1927 cometeram abusos. Os estudos mais rigorosos a serem apresentados – nos Estados Unidos, Alemanha, França e Irlanda, por exemplo – coincidem em que a cifra média está entre 4% e 5% do clero. Por outro lado, um relatório como o da Pensilvânia em 2018 (300 sacerdotes acusados, 1.000 vítimas) ou o mais recente da França (1.500 padres, 3.000 vítimas) mostram que frequentemente um agressor abusa de mais de um menor. Varona acredita que “os relatórios devem ser para as vítimas, que são quem precisa deles, e por isso devem ser transparentes e bem feitos”. “É preciso responder às seguintes perguntas: por que as vítimas não denunciam? Por que não se atrevem? A isso se deve um número tão baixo.” Essa especialista trabalha nos últimos anos em outro estudo sobre as vítimas, que apresentará neste ano, e com todas que entrevistou “a vitimização secundária é muito clara”: refere-se ao novo sofrimento que representa denunciar e não ser ouvido, ou mesmo ser maltratado pela Igreja por causa disso.

“Roubaram-me nove anos mais”

O caso de Javier Paz, que sofreu abusos em Salamanca e foi uma das primeiras vítimas a aparecerem na televisão contando seu caso, em 2014, é significativo: “Roubaram-me mais nove anos, desde que denunciei, em 2011, porque confiei neles, denunciando no bispado, mas o processo canônico que fizeram foi um teatro para me manter enganado e em silêncio, até que me acusaram de querer só dinheiro, me humilharam, e decidi aparecer na televisão. Esmagam a gente outra vez, e a ferida não fecha”. Mas acrescenta que uma parte da Igreja faz bem o seu trabalho, citando o atual bispo de Barbastro-Monzón (Aragão), Ángel Perez Pueyo, que lhe deu todo o apoio. Seu último revés: pediu ao Vaticano a documentação de seu processo canônico, e foi negada.

Várias ordens já pagaram indenizações ou estão dispostas a fazê-lo se for o caso, mas, independentemente da compensação econômica, Josep Tamarit, catedrático de direito penal na Universidade Aberta da Catalunha e especializado em vitimologia, avalia os processos de justiça restaurativa: “É um diálogo entre as partes envolvidas, e faz sentido porque muitos são crimes prescritos, não podem ir para a Justiça penal, e é quase mais satisfatório para as vítimas”. Os escolápios catalães, que recebem assessoria da Fundação Vicki Bernadet, recorreram eventualmente à mediação do defensor do povo da Catalunha (síndic de greuges). “Era uma vítima que localizamos e não queria saber de nós, e graças à mediação falamos com ele. Foi muito positivo, muitos fantasmas caíram. Suponho que ele acreditou que encontraria o colégio dos anos cinquenta e, ao tratar conosco, mudou sua percepção. No Natal, me ligou para me felicitar pelas festas”, relata o provincial dessa ordem na Catalunha, Eduardo Pini. “Se o Parlamento [regional] criar uma CPI, que contem conosco, a Igreja tem que encarar isto e investigar.”

Para as vítimas, é muito importante que haja uma instituição laica e independente, porque não confiam”, afirma uma porta-voz da ouvidoria catalã. “Nas reuniões se fez uma escuta ativa importante, que alguém os ouça já é um passo, e depois foram feitas tarefas de mediação com as congregações”. Os salesianos, por exemplo, não contemplam indenizações e se centraram em um projeto de justiça restaurativa no qual, através de uma equipe de trabalho externo da ordem, oferecem terapias de longa duração, de 20 meses. Já iniciaram nove destes processos onde, salientam, tentam, “além de melhorar a saúde das vítimas, que sejam reconhecidas no dano sofrido”.

Mas a indignação das vítimas não é só com a Igreja: “É uma vergonha que o Governo não faça nada. É um tema muito delicado e ninguém quer enfrentá-lo. Basta um grupo de especialistas, uma verba e abrir um e-mail, investigar. Não custa nada e reverteríamos isso”, lamenta Manuel Barbero, presidente da organização Mans Petits e pai de uma vítima. É a associação que abriu um processo contra os maristas em Barcelona e conseguiu uma indenização de 400.000 euros (2,64 milhões de reais) para 21 famílias. “Falta implicação das instituições, que deveriam ter assumido o protagonismo, como em outros países. Em 2010, na Bélgica, foi o Parlamento que interveio, e foi criado um órgão especial de reparação em colaboração com a Igreja”, recorda Josep Tamarit, catedrático de Direito Penal da Universidade Aberta da Catalunha e especialista em vítimas. Foi um dos membros da comissão que síndic de greuges formou para investigar o fenômeno na Catalunha. A ouvidoria é uma das poucas instituições que intervieram no problema: em 2019, criou essa equipe para escutar as vítimas e apresentou um relatório no ano passado ao Parlamento regional. Recomendou a criação de uma comissão de investigação dos casos prescritos. Também o Governo regional de Navarra foi sensível às vítimas: convidou-as a falar no Parlamento regional, organizou um congresso sobre o problema e lhes financiou terapias psicológicas. No resto da Espanha, silêncio.

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