Europa pressiona laboratórios por lentidão na entrega de vacinas contra covid-19

Parlamento Europeu e organizações civis brigam para retirar a confidencialidade dos contratos assinados entre Bruxelas e a indústria farmacêutica, numa tentativa de cumprir plano de vacinação

Pedestres caminham pela Champs Elysees, em Paris, com máscaras de proteção contra a covid-19, nesta segunda-feira, 25 de janeiro. Europa cobra transparência das farmacêuticas sobre vacinas.
Pedestres caminham pela Champs Elysees, em Paris, com máscaras de proteção contra a covid-19, nesta segunda-feira, 25 de janeiro. Europa cobra transparência das farmacêuticas sobre vacinas.GONZALO FUENTES (Reuters)
Guillermo Abril
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A health worker prepares a dose of the Pfizer-BioNtech COVID-19 vaccine at Clalit Health Services in Jerusalem, on January 24, 2021. - Since the rollout of vaccinations one month ago, more than 2.5 million of Israel's nine-million-strong population have been vaccinated already, the health ministry said on January 22. (Photo by MENAHEM KAHANA / AFP)
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Passadas quatro semanas de campanha de vacinação contra a covid-19 na União Europeia, que começou oficialmente no domingo 27 de dezembro, Bruxelas já reconhece que será difícil cumprir com os ambiciosos planos de imunização fixados naquela mesma semana, em parte por complicações logísticas imprevistas e pela dificuldade de traçar um calendário de produção e distribuição claro das vacinas com as empresas farmacêuticas.

Enquanto no Reino Unido foram administradas 10 doses para cada 100 habitantes e nos Estados Unidos cerca de 6 injeções para cada 100 habitantes, na União Europeia não chegam a duas para cada 100 habitantes, segundo cálculos do EL PAÍS a partir de dados da página online Covid Visualizer (mas começaram três e duas semanas antes do que na UE, respectivamente).

O primeiro susto logístico veio da empresa Pfizer, fabricante junto com a BioNTech da primeira vacina aprovada para seu uso na UE, que comunicou na semana passada, repentinamente, aos Governos do bloco uma diminuição temporária nos envios por uma reestruturação em sua fábrica de produção em Puurs, na Bélgica. Ainda que afirmasse que a melhora impulsionaria a produção do imunizante contra o coronavírus no futuro, as capitais tremeram: aí estava o medo de uma parada, com a terceira onda já cobrindo o continente.

A presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, demonstrou seu descontentamento, ligou “imediatamente” ao executivo-chefe do laboratório para pedir explicações, segundo contou, e lhe transmitiu que os 27 Governos precisavam “urgentemente das doses garantidas no primeiro trimestre”. A União Europeia comprou da Pfizer/BioNTech 600 milhões de doses, mais do que de qualquer outra farmacêutica.

Na sexta-feira, 22 de janeiro, foi a vez da empresa AstraZeneca ―cuja vacina terá seu uso aprovado nos próximos dias na UE, tornando-se o terceiro imunizante na Europa (com os da Pfizer e da Moderna)―, anunciar o atraso nas entregas das doses aos Estados membros. E dessa vez coube à comissária da Saúde da UE, Stella Kyriakides, a expressar a “profunda insatisfação” da Comissão e exigir dos responsáveis da empresa “um calendário preciso”, para que os países possam planejar a vacinação.

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Uma enfermeira prepara uma dose da vacina da Pfizer/BioNTech em 13 de janeiro, em um hospital de Palma de Mallorca, na Espanha.Isaac Buj (Europa Press)

Variantes do vírus pressionam por vacinação

O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, completou neste domingo, em uma entrevista na rádio francesa Europe 1, as críticas aos laboratórios. Pediu “um diálogo transparente” com eles sobre os atrasos, e afirmou que a União Europeia usaria “todos os meios legais” para que respeitem os contratos assinados. Mas também exibiu as rachaduras na ambiciosa estratégia de vacinação pelo Executivo comunitário.

A Comissão pediu nesta semana aos Governos para “acelerar a vacinação” diante de um cenário epidemiológico “preocupante”, com a propagação das novas e mais contagiosas variantes do coronavírus. E fixou objetivos ambiciosos: imunizar 80% das pessoas com mais de 80 anos e 80% dos trabalhadores da saúde antes de abril, e 70% da população geral até o verão (do Hemisfério Norte). Esses não são obrigatórios, mas sim um guia do caminho a seguir.

Na entrevista de domingo, Michel disse que achava “difícil” chegar ao objetivo de 70% de imunizacão até o verão europeu, devido exatamente às “dificuldades nas linhas de produção nas próximas semanas, o que tornaria o processo mais complexo”. Acrescentou que a União Europeia se vê obrigada a dar “um soco na mesa” para fazer com que esses acordos sejam cumpridos. E que se conseguirem mobilizar as linhas de produção, “talvez tenhamos sucesso.”

Os problemas logísticos são em parte um reflexo das crescentes parcelas de poder que os produtores de vacinas conquistaram desde o início da pandemia: são a grande esperança para sair dela, mas continuam cobertos por um manto de opacidade.

Muitos pensavam que, de algum modo, sua rápida resposta diante da crise sanitária, desenvolvendo vacinas a uma velocidade jamais vista, redimiria a indústria farmacêutica de sua tradicional imagem obscura de setor bem azeitado pelos lobbies e guiado somente pelo lucro. Mas, como diz o eurodeputado Pascal Canfin (França), que há meses briga para saber as condições contratuais entre a UE e as farmacêuticas, ainda que a primeira parte do relato tenha funcionado, falta saber qual será o desenlace.

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Cobrança por mais transparência

A Comissão Europeia afirmou “que trabalhará com as empresas para desenvolver um programa claro e transparente da entrega das diferentes vacinas.” Mas os prazos não foram tornados públicos, protegidos pela confidencialidade contratual. Canfin, presidente da comissão de Saúde da Eurocâmara e membro do grupo liberal Renew, pediu nesta semana à ministra da Saúde de Portugal (país que tem a presidência semestral da UE) que todos os Estados membros publiquem seus números mensais de envios previstos de doses, para saber quantas injeções devem ser enviadas e para que seja possível avaliar o progresso rumo à imunidade.

Apesar de terem recebido adiantado centenas de milhões de euros de fundos públicos para apoiar suas pesquisas, seus testes, suas fábricas e a escalada da produção, ainda não se sabem os termos exatos assinados por Bruxelas, que liderou em nome dos 27 países-membro a compra de 2,3 bilhões de doses de uma carteira de seis vacinas diferentes. Não se sabe o preço oficial de compra, mas estima-se que sejam em torno de 136 bilhões de reais. Também não se sabe o calendário exato de entrega. Nem a distribuição detalhada por países, que a princípio devem seguir critérios elaborados previamente em função da população. Assim como a forma como a responsabilidade seria dirimida no caso de efeitos adversos derivados de seu uso.

Na semana passada, após uma intensa batalha a favor da transparência por parte de alguns eurodeputados, a Comissão tornou público um dos seis acordos de compra antecipada, o da empresa alemã CureVac. Seu fármaco ainda não foi aprovado pela Agência Europeia de Medicamentos, mas já em março de 2020, no começo da pandemia, chegou a causar tensão diplomática entre Berlim e Washington, após o interesse mostrado pelo então presidente norte-americano, Donald Trump, em levar sua fórmula e toda a sua produção ao outro lado do Atlântico. Acabou ficando na margem europeia, e no começo de janeiro foi anunciada sua união com a Bayer para o “desenvolvimento e fornecimento” da vacina. Segundo o executivo da UE, que sempre defendeu que são as empresas que impuseram a confidencialidade, o contrato foi tornado público porque a CureVac concordou em mostrar uma versão censurada.

“É um primeiro passo, mas não pode ser o último”, diz em uma entrevista telefônica o deputado Pascal Canfin. A transparência, afirma, é fundamental nesses momentos “porque precisamos da confiança da população para realizar essa campanha” de vacinação e porque “para evitar as notícias falsas, e os debates puramente eleitoreiros precisamos de fatos concretos”.

Canfin foi o primeiro eurodeputado a ter acesso à versão com rasuras do contrato da CureVac. Saiu decepcionado de sua primeira revisão das 67 páginas do documento no interior de um local vigiado no qual precisou entrar com o tempo limitado e deixando o celular. Isso foi informado pela comissária de Saúde, Stella Kyriakides, em um debate no Parlamento Europeu nesta semana. “De seis parágrafos sobre a responsabilidade jurídica, e sobre quem é o responsável pelos problemas, há dois que estão rasurados, que não podem ser lidos”, criticou. “Como os senhores querem que nós, como representantes dos europeus, possamos estar satisfeitos com essa transparência parcial?”.

O contrato que a Comissão divulgou contém disposições das que se pode deduzir que se retira a responsabilidade dos laboratórios. “A Administração dos Produtos será feita sob a responsabilidade exclusiva dos Estados membros participantes”, se lê em um artigo. Em outro, os países se comprometem a tirar a responsabilidade do contratante pelos danos e prejuízos causados, como mortes, mas pelas rasuras no documento é impossível inferir com certeza o alcance dos compromissos. “Pode ter de tudo nos dois parágrafos rasurados”, diz Canfin.

Compensar riscos

Quando a Comissão assinou seus primeiros contratos, afirmou em uma nota que a responsabilidade seria da empresa. “Mas”, acrescentava o comunicado, “com a finalidade de compensar os possíveis riscos assumidos pelos fabricantes pelos prazos incomumente curtos para o desenvolvimento das vacinas”, os contratos preveem “que os Estados membros indenizem os fabricantes pelas possíveis responsabilidades incorridas somente sob condições específicas”. Condições que continuam desconhecidas, pois estão rasuradas no único contrato tornado público.

“Dado que é dinheiro público os contratos deveriam ser públicos. Fim da história”, pede a parlamentar Manon Aubry, copresidenta do grupo da esquerda na Eurocâmara. Protesta porque a Comissão é quem compra as vacinas, quem faz as leis, quem entrega o financiamento, mas no momento de dar transparência ao processo se vê de mãos atadas.

O Corporate Europe Observatory (CEO), um grupo de pesquisa dedicado a expor a influência das corporações na elaboração das políticas da União Europeia, denunciou em setembro de 2020 que as grandes farmacêuticas são um dos lobbies “mais poderosos” em Bruxelas. As 10 empresas do setor que mais gastam em influência política contribuíram com 14,75 a 16,5 milhões de euros (98 a 109 milhões de reais) anuais em campanhas de lobby na capital europeia, segundo uma pesquisa do CEO.

A indústria, que emprega por volta de 175 lobistas em Bruxelas, “está usando a crise para amarrar seu modelo problemático de maximização de lucros”, afirmam. E alertam que sua pressão “para conseguir dinheiro público sem compromissos e normas monopolistas das patentes mais estritas poderia restringir o acesso aos medicamentos e vacinas da covid-19, prolongando a pandemia em nome do lucro.”

Na sexta-feira a Defensora do Povo da UE confirmou a abertura de uma investigação sobre a falta de transparência nos contratos por parte da Comissão.

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