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Na França, um novo ‘Me Too’ rompe o silêncio do abuso sexual em família

Milhares de pessoas declaram nas redes que foram vítimas de parentes após o impacto do livro ‘La familia grande’, de Camille Kouchner

Um homem lê ‘La familia grande’, de Camille Kouchner, em Paris.
Um homem lê ‘La familia grande’, de Camille Kouchner, em Paris.THOMAS SAMSON (AFP)
Silvia Ayuso
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Marlene Schiappa, newly appointed French deputy Minister responsible for Citizenship, attends a handover ceremony at the Interior Ministry in Paris, France, July 7, 2020. REUTERS/Gonzalo Fuentes
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“Eu tinha cinco anos. Uma tarde, o irmão da minha mãe acabou com a minha inocência e ensombrou o resto da minha vida. Num segundo, eu tinha 100 anos.” “Meu pai me dizia que era normal.” Desde sábado, mensagens desse tipo se multiplicam no Twitter na França. Foram quase 80.000 no fim de semana, e continuam chegando —todos com a hashtag #MeTooInceste. O lançamento no começo deste mês do livro La familia grande (título original, ainda sem tradução no Brasil), onde Camille Kouchner, filha do ex-ministro Bernard Kouchner, revela os abusos que seu irmão gêmeo sofreu quando adolescente por parte de seu padrasto, o reconhecido cientista político Olivier Duahmel, abriu na França um dique que será difícil de fechar. O novo movimento Me Too é só mais um sinal de que o silêncio sobre o abuso sexual de menores de idade em geral, e no seio da família em particular, parece ter sido quebrado. Enquanto a palavra é liberada, o país debate como fazer frente a este flagelo que, segundo uma pesquisa recente, atingiu 1 em cada 10 franceses na sua infância ou adolescência. A proposta de criar novas leis não convence a todos.

“Haverá um antes e um depois disto”, afirma Madeline Da Silva. A vice-prefeita para a Infância da localidade de Lilas, na periferia de Paris, e integrante do coletivo feminista Nous Toutes (“todas nós”). Ela é uma das criadoras da hashtag #MeTooInceste, lançada no sábado. Se La familia grande causou impacto por falar de um influente círculo político e intelectual parisiense, a onda de denúncias no Twitter “demonstrou que o problema está em todas as partes e em todos os níveis” da sociedade, afirma por telefone Da Silva, também militante pelos direitos infantis. As vítimas “se pronunciaram de maneira maciça, e isso fez a França abrir os olhos para a questão da violência sexual contra os menores”.

Há poucas dúvidas sobre a magnitude do problema: segundo uma pesquisa feita em dezembro, 6,7 milhões de franceses, ou 10% da população, dizem ter sofrido abusos sexuais por parte de um familiar. Naquele mesmo mês, a deputada macronista Alexandra Louis apresentou um relatório segundo o qual a cada ano quase 130.000 meninas e 35.000 meninos são vítimas de estupro ou tentativa de estupro na França, agressões que “em sua maioria ocorrem na esfera familiar ou próxima”.

O que gera menos consenso é como agir perante essa realidade. No centro das discussões está a conveniência de legislar mais, se as leis existentes bastam e o importante seria aplicá-las bem e, sobretudo, adotar uma política efetiva de prevenção. Um debate que, por outro lado, não tem nada de novo.

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Na França, o incesto é um agravante no caso de violação ou abuso sexual. O Código Penal francês também estabelece uma pena de até 20 anos de prisão para casos de estupro de um menor de 15 anos.

Em 2018 foi aprovada a chamada Lei Schiappa, que ampliou de 20 para 30 anos o prazo de prescrição dos crimes sexuais contra crianças a partir do momento que a vítima chega à maioridade. Também reforçou as disposições para castigar mais duramente crimes desse tipo cometidos contra menores de 15 anos.

Novo crime sexual

Mas para alguns essa nova lei não foi longe o suficiente, sobretudo porque não estabeleceu uma idade mínima de consentimento. Essa questão está agora no centro dos novos debates, junto com a possibilidade de ampliar ainda mais o prazo de prescrição. O Senado deve discutir nesta quinta-feira uma proposta para criar uma nova tipificação de crime sexual “que proteja os menores de 13 anos”.

“Se a lei precisar mudar, nós a mudaremos”, afirmou nesta terça-feira o chefe da bancada macronista na Assembleia Nacional, Christophe Castaner, à emissora RTL. Um caminho apoiado pelo secretário de Estado para a Infância, Adrien Taquet. “Temos que encontrar os meios jurídicos de criminalizar as relações sexuais entre um adulto e um menor de 15 anos”, declarou à Europe 1.

Mas a nova febre legislativa não agrada às impulsionadoras do novo Me Too. “É preciso deixar de tentar mudar a lei. Isso não quer dizer que seja satisfatória, mas, se falamos em mudar a lei, damos a entender que a atual não proíbe a violência sexual contra menores, sendo que proíbe. E mesmo assim, ela não para”, alerta. Por isso muitos especialistas preconizam que os profissionais que trabalhem com menores recebam formação para que sejam capazes de detectar casos de abusos, assim como já reivindicam no caso da violência de gênero.

“Não é a lei a que fará as delegacias de polícia atenderem melhor às mulheres que denunciam abusos, nem é a lei que fará as escolas e locais que recebem crianças entenderem melhor o que elas querem dizer”, resume Da Silva. “A realidade é que é preciso fazer a violência parar, não castigá-la melhor. Se fizermos só isso, vamos ocupar o espaço público com um debate que não é o correto”, adverte.

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