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Após bonança, economia que Trump deixa vai refletir os 400.000 mortos pela pandemia nos EUA

Republicano quebrou paradigmas e dobrou o Fed, o banco central norte-americano, e Biden pode se beneficiar deste novo paradigma emprego-inflação, aponta um especialista

Letreiros com a legenda ‘Ainda se precisa de ajuda’ perto do Capitólio, em Washington.
Letreiros com a legenda ‘Ainda se precisa de ajuda’ perto do Capitólio, em Washington.Bryan Woolston (Reuters)
Isabella Cota

O legado econômico de Donald Trump será lembrado, depois de anos de bonança, por sua resposta fracassada à pandemia do coronavírus, retratado não apenas nas mais de 400.000 mortes que produziu no país, mas também pelos danos que causou à economia. Enquanto os países da Ásia recuperaram sua produção e consumo durante 2020 a partir da testagem em massa e das medidas para conter o contágio, os Estados Unidos negaram, reagiram tarde e hoje estão longe da fortaleza econômica que tinham antes da crise. O país recuperou apenas dois terços de seu produto interno bruto (PIB) e 56% dos empregos perdidos desde o início da pandemia de covid-19, de acordo com o Bank of America. O banco estima que a recuperação total não acontecerá até o terceiro trimestre de 2021 e os dados mais recentes apontam para uma segunda queda. Em 14 de janeiro, o Departamento do Trabalho anunciou que 1,15 milhão de norte-americanos se declarou desempregado, o número mais alto desde julho, quando a primeira onda de contágios levou a confinamentos rigorosos. Trump será o primeiro presidente da história de seu país a deixar o cargo com menos empregos do que quando chegou, de acordo com uma análise da Moody’s Analytics.

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A pandemia marcará o legado econômico de Trump, mas, em geral, este é mais do que uma economia em ruínas. Entre 2017 e 2021, a Administração rompeu paradigmas comerciais e forçou a abertura ideológica da Federal Reserve (Fed, o banco central norte-americano), abrindo o teto de gastos para Governos do futuro. O que Trump fez no plano econômico poderia até facilitar o trabalho de seu sucessor, o presidente eleito Joe Biden, de acordo com especialistas. “Trump herdou uma economia muito boa e a deixou feito uma calamidade”, resume Mark Zandi, economista-chefe da Moody’s Analytics. Em 2017, quando Trump chegou à presidência, o desemprego estava em baixa e o PIB em alta, a economia não havia se recuperado totalmente do choque da crise financeira de 2008, mas as tendências estavam a seu favor, diz Zandi.

No primeiro ano de sua presidência Trump reduziu impostos para as grandes corporações, razão pela qual a economia se fortaleceu brevemente em 2018, ano em que o presidente travou uma guerra comercial da China e Coreia do Sul até o México e a Alemanha. “Como resultado, no final de 2019 a indústria manufatureira estava em recessão, a agricultura estava em recessão, o transporte estava em recessão, e foi então que Trump realmente pediu uma trégua”, aponta Zandi. Se o Governo dos Estados Unidos chegou a um acordo com a China foi porque percebeu que as eleições de 2020 estavam se aproximando, opina o economista. Uma análise feita por Zandi mostra que o PIB cresceu mais lentamente sob Trump do que sob qualquer outro presidente desde Harry Truman, que chegou ao poder em 1945.

O histórico econômico de Trump antes da pandemia deve ser colocado na balança, diz Michelle Meyer, economista-chefe do Bank of America para os EUA. É provável que o corte de impostos seja considerado sua “maior vitória econômica”, diz Meyer, “mas, por outro lado, as tensões com a China e um desafio real ao comércio mundial marcam outro de seus legados. Isso criou muita incerteza, muitas interrupções na cadeia de fornecimento. Ainda estamos vendo as consequências disso e será muito interessante ver como Biden abordará o comércio global”.

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O comércio não será igual depois de Trump, diz Mark Blyth, autor e professor de Economia Internacional da Universidade de Brown. “Trump fez pedaços da narrativa que diz que todos nos beneficiamos do tipo de globalização neoliberal das décadas de 1990 e 2000, ganhando a lealdade de uma grande parte da população que basicamente esteve em um longo ciclo de declínio à medida que os empregos na indústria manufatureira foram perdidos por várias razões. Trump lhes disse: ‘Eu sei por que eles se foram, por causa da China’.”

A pandemia do coronavírus marcou um ponto de inflexão na economia dos EUA. Não se pode culpar Trump pela pandemia, mas se pode culpá-lo por sua resposta fracassada à pandemia, de acordo com Blyth e Zandi. Desde o início, a Administração recusou-se a encarar a ameaça que esta pandemia seria, desde ignorar os avisos antes de chegar ao território nacional até negar sua gravidade para justificar sua inação. A China e outros países da Ásia se concentraram em confinamentos estratégicos e testes em massa para conter o contágio e suas economias agora estão recuperadas total ou parcialmente.

O presidente “fez da resposta à pandemia um péssimo trabalho e a economia dos EUA está sofrendo como consequência, inclusive ainda hoje está lutando apesar da enorme ajuda fiscal”, explica Zandi, da Moody’s Analytics. A ajuda fiscal é equivalente, até o momento, a 15% do PIB do país, um montante sem precedentes. “Apesar de toda essa ajuda, a economia está lutando contra o desemprego e o subemprego que são muito altos. Nossa economia mal está se mantendo em pé.”

Jogo de valentões

No longo prazo, afirma Blyth, o impacto mais duradouro da economia da era Trump será que ganhou da Fed uma espécie de jogo de valentões e, como resultado, forçou sua abertura ideológica. Para a Fed, a postura tradicional sempre foi que um forte impulso nos salários e no emprego leva inevitavelmente a uma disparada da inflação. Mas Trump e seus aliados republicanos no Congresso implementaram políticas que fizeram exatamente isso: reduziram os impostos para impulsionar a criação de empregos e aumentaram o gasto público, financiado através de dívida. “Em resumo, aqueceram a economia”, diz Blyth, “e não houve essa inflação. A Fed então mudou seus objetivos, permitindo um pouco mais de inflação com a ideia de que há espaço para aquecer a economia e, quando a inflação subir, eles lidarão com isso”.

O teto foi aberto por Trump, mas pode ser que Biden se beneficie deste novo paradigma emprego-inflação, aponta o especialista. O presidente eleito anunciou em 14 de janeiro que buscará a aprovação de um pacote de 1,9 trilhão de dólares (cerca de 10,18 trilhões de reais) para aumentar os gastos com infraestrutura, ajudas monetárias às famílias e recursos de saúde para combater as duas crises de covid-19, a sanitária e a econômica. O precedente estabelecido por Trump poderá ajudar Biden a obter os recursos que busca e continuar aumentando a dívida.

“Agora, isso se deveu a Trump? Não. É porque os republicanos são gênios da economia? Tampouco. Muitas pessoas disseram isso durante muito tempo, francamente eles simplesmente foram os que assumiram o risco”, diz o pesquisador, “e nada disso desculpa a incitação à revolta. Nada disso desculpa a sedição, o racismo, o ódio, o assédio racial e tudo o mais que fez.” “Se a pergunta é qual será o legado econômico de Trump?, a resposta é que ele rompeu o confortável consenso da política neoliberal que estava sufocando lentamente a classe trabalhadora e a classe média baixa dos Estados Unidos”, conclui Blyth.

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