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Trump “sem dúvida” causou invasão do Capitólio, diz advogado do ‘xamã do QAnon’

Albert Watkins alega que “há uma culpabilidade do presidente”, que inocenta seu cliente. Depoimentos dos detidos dão argumentos aos democratas para o julgamento do ‘impeachment’ no Senado

Jacob Chansley, mais conhecido como ‘xamã do QAnon’.
Jacob Chansley, mais conhecido como ‘xamã do QAnon’.STEPHANIE KEITH (Reuters)
Pablo Guimón

“Meu cliente, como muitos norte-americanos, sentia que sua voz não era ouvida”, alega pelo telefone o advogado Albert Watkins. “Quando Donald Trump chegou, ele sentiu que sua voz por fim era ouvida. Era relevante. Por isso, tinha um carinho apaixonado, inclusive um amor por Trump. Acreditava que as palavras do seu presidente eram para ele. Estamos falando de um fenômeno como o dos seguidores do Grateful Dead. Como os que seguiam a banda de show em show, meu cliente seguia o presidente de comício em comício. Lá era reconhecido, era parte de um grupo. Quando o presidente, em 6 de janeiro, lhes pede que caminhem com ele pela avenida Pensilvânia, eles sentiam não só que o presidente estava falando com eles, e sim que os estava convidando. Se nosso presidente teve um papel? Teve uma influência? Causou pelo menos em parte o que ocorreu em 6 de janeiro? Sim. Categoricamente. Sem dúvida alguma.”

O cliente de Watkins é Jacob Chansley, de 33 anos, morador de Phoenix, mais conhecido como Jake Angeli, o Bisão ou o xamã do QAnon. Sua imagem invadindo o Capitólio de peito nu, armado com uma lança e usando um cocar de pele de urso com chifres deu a volta ao mundo. Detido no dia seguinte à invasão, está arrependido, segundo seu advogado. Sente-se “traído” por Trump, “o homem a quem deu a Lua e que lhe virou as costas”. “Há uma culpabilidade por parte do presidente, que inocenta o meu cliente”, argumenta Watkins. Uma tese de defesa que é ouro para os democratas, empenhados em condenar Trump no julgamento político a ser realizado no Senado depois do seu impeachment na Câmara de Representantes por “incitação à insurreição”.

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A máquina trumpista de paranoias conspiratórias já fabricou rebuscadas teorias para tentar atribuir o ataque ao Capitólio à extrema esquerda ou a ativistas do Black Lives Matter camuflados de direitistas. O próprio presidente afirmou que suas palavras inflamando os manifestantes foram “totalmente apropriadas”. Mas os democratas contam com poderosos aliados em sua tese de que o presidente incitou à insurreição: os próprios invasores.

No relatório elaborado na semana passada pelo Comitê de Justiça da Câmara para embasar o impeachment, destaca-se que numerosos manifestantes consideravam que estavam obedecendo às ordens do presidente quando invadiram o Capitólio. Cita especificamente Derrick Evans, deputado estadual da Virgínia Ocidental até ser detido pelo ataque ao Congresso, que no próprio dia 6 de janeiro escreveu em suas redes sociais que havia viajado a Washington a impedir o suposto roubo da eleição, “em resposta a um tuíte do presidente”. O relatório menciona também Chansley, que declarou à polícia que vinha “como parte de um esforço grupal a pedido do presidente”.

Mas há outras provas além de depoimentos colhidos no dia da invasão. À medida que os insurgentes detidos desfilam perante a Justiça e seus advogados armam sua defesa, vários deles optam por envolver diretamente o presidente, conforme se conclui de documentos judiciais e entrevistas. Pelo menos quatro deles, segundo uma contagem do The New York Times, alegaram ter aderido à marcha contra o Congresso porque o presidente incentivou. “Estavam apaixonados por um líder. Ele os motivava. Acreditavam nele. Achavam que estavam salvando nossa nação a pedido específico do nosso presidente”, insiste Watkins.

Na documentação judicial de um bombeiro aposentado da Pensilvânia, acusado de atirar um extintor em um policial, consta que ele foi ao Capitólio “seguindo as instruções do presidente”. Jenna Ryan, corretora imobiliária do Texas, que atravessou meio país em um jato particular para participar da revolta, afirmou depois, em uma entrevista televisiva, que tinha agido “seguindo o apelo do presidente”.

Watkins foi ainda mais longe e se pôs em contato com o chefe de Gabinete de Donald Trump para solicitar que seu cliente fosse incluído na rodada de indultos presidenciais de última hora. “Não pense que estou prendendo a respiração por causa disso”, admite. “Acho que vai indultá-lo? Não. Tem menos chances que um rato no inferno. Mas a imprevisibilidade do nosso presidente é tanta que... vai saber.”

O Ministério Público do Distrito de Colúmbia (onde fica Washington) informou na semana passada que mais de 70 pessoas já haviam sido denunciadas à Justiça por diversos crimes e contravenções cometidos durante o ataque ao Capitólio, mas acrescentou que a cifra subirá para centenas ao final da investigação, que ainda está em sua etapa inicial. Estes primeiros depoimentos judiciais dos envolvidos já mostram um filão valioso para os argumentos da acusação quando o Senado julgar o segundo impeachment de Donald Trump, acusado de incitação à insurreição pelo discurso inflamado que fez a seus seguidores horas antes da invasão do Capitólio, que deixou cinco mortos, além de pôr em perigo a integridade física dos legisladores e do seu próprio vice-presidente. Não é provável que os detidos sejam chamados a depor como testemunhas no Congresso que invadiram, mas sim que suas declarações públicas ou depoimentos à Justiça sejam esgrimidos pelos senadores democratas encarregados da acusação.

No final da manhã de 6 de janeiro, o presidente Trump se dirigiu a milhares de seguidores que haviam atendido à sua convocação diante da Casa Branca e os incentivou a “caminhar até o Capitólio”, onde o Congresso, sob a supervisão do vice-presidente Pence, estava certificando o resultado eleitoral que Trump considera fraudulento. “Vocês nunca recuperarão nosso país se forem fracos”, disse, conclamando os seguidores a “lutarem como o demônio”. Segundo uma pesquisa divulgada nesta segunda pela rádio pública NPR, 58% dos eleitores norte-americanos consideram que Trump é culpado pela insurreição violenta no Capitólio.

É o que defende o advogado Watkins, que recorre novamente ao amour fou do xamã do QAnon por Trump para explicar seu comportamento. “Alguma vez você já foi enganado pela sua cara-metade? É uma traição. E leva tempo para aceitar. Em última instância, o traído chega a um ponto em que precisa assumir sua própria responsabilidade por uma parte disso. Meu cliente chegou até aí. Claro que está arrependido. Meu cliente foi traído e assume que teve um papel nessa traição, ao permitir que acontecesse.”

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