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Trump deixa um campo minado na política externa dos EUA como herança para Biden

Republicano tumultua a transição com medidas de última hora que complicam a agenda multilateralista do democrata

Militares norte-americanos em Nínive (Iraque), em março de 2020.
Militares norte-americanos em Nínive (Iraque), em março de 2020.ABDULLAH RASHID (Reuters)
María Antonia Sánchez-Vallejo

Os primeiros passos da Administração de Joe Biden na política externa terão que esquivar as numerosas minas plantadas por Donald Trump durante seu mandato. Nas últimas semanas, e a um ritmo vertiginoso, o atual secretário de Estado, Mike Pompeo, montou quatro endiabradas armadilhas para o seu sucessor no cargo, Antony Blinken: a inclusão de Cuba na lista de países patrocinadores do terrorismo; a declaração dos rebeldes huthis do Iêmen como organização terrorista, a revogação das restrições aos contatos com o Taiwan e a declaração sobre o papel do Irã como base de operações do Qaeda ― inconteste segundo Pompeo, embora não haja provas.

A primeira dessas medidas motiva os anticastristas da Flórida, em sua maioria trumpistas, e atravanca o caminho do degelo com Havana que Biden pretende retomar. O aceno a Taiwan só pode incomodar ainda mais a China, após quatro anos de guerra comercial e diplomática. Os outros dois anúncios apontam diretamente para o Irã, quando o democrata propõe retornar ao pacto nuclear assinado em 2015, do qual Trump se retirou em 2018, além de fortalecer a Arábia Saudita no Iêmen (Biden propõe reavaliar a relação com Riad) e selar seu antagonismo com o regime dos aiatolás. Pura dinamite diplomática para um início de mandato.

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Para um presidente como Biden, que pretende restabelecer alianças internacionais congeladas pelo isolamento de Trump e retomar a liderança mundial tradicionalmente exercida pelos EUA, o panorama não poderia ser mais conturbado. Além disso, as iniciativas de Pompeo nos estertores do mandato coincidem com um rearranjo do tabuleiro no mundo árabe-islâmico e em Israel, com o estabelecimento de relações e um crescente reconhecimento do Estado hebraico por outros governos da região, complicando ainda mais o panorama.

Por obra e graça dos ofícios do genro e conselheiro palaciano de Trump, Jared Kushner, vários países da região, de Marrocos a Sudão, Bahrein e Emirados Árabes Unidos, estabeleceram relações diplomáticas com Israel, deixando na mão os independentistas do Saara Ocidental, no caso de Marrocos, e os palestinos, ao abrir uma fissura no tradicional apoio árabe à sua causa. Nada disso pareceu importar: os acordos foram apresentados pela Administração que termina nesta quarta como um grande êxito que permitia pronunciar a palavra paz com maiúsculas em uma região convulsionada. Eles derivam do chamado acordo do século, outro trunfo da diplomacia trumpista que tem mais de ruído que de substância, e que deixa os palestinos de joelhos.

Assim como na composição de seu Gabinete, Biden seguirá na política externa o caminho traçado por Obama, por exemplo com Cuba e Irã. Mas a insistência do Governo Trump em atrapalhá-lo, pulverizando décadas de diplomacia profissional, não tem comparação em nenhuma outra transição. Nos últimos dias do republicano na Casa Branca, os EUA completaram a redução de suas tropas no Iraque e Afeganistão, onde só restam contingentes de 2.500 soldados em cada país. A situação nesses dois lugares está longe de estável, e as forças norte-americanas continuam sendo um alvo. Cabe recordar que Biden se opôs à ampliação do contingente no Afeganistão em 2010 e à intervenção na Líbia, e durante a campanha se mostrou contrário a participar de “guerras desnecessárias”.

Embora sempre possa aparecer um cisne negro, Blinken, liberal intervencionista no aspecto ideológico, chega ao Departamento de Estado com a lição aprendida. Consciente das consequências da negativa de Obama a intervir na Síria, sabe também que foi um erro ter apoiado inicialmente a Arábia Saudita na guerra do Iêmen. Sua nomeação foi bem recebida em Israel, de cuja segurança foi sempre um grande defensor, e que também se beneficiará de um reforço da colaboração militar após o Pentágono ―a outra perna da política externa dos EUA, junto com o Departamento de Estado― decidir na última hora colocar Israel sob a égide do Comando Central dos EUA, e não mais do Comando Europeu. O objetivo é tratar o Irã com rédea cada vez mais curta, fomentando a colaboração entre todos os países da região, embora a nova Administração defenda uma política de mão estendida, com a possibilidade de aliviar sanções se Teerã recuar em seu programa de enriquecimento de urânio. Uma prova do protagonismo iraniano na política externa do futuro Governo democrata foi a nomeação, neste sábado, de Wendy Sherman como número dois do Departamento de Estado. Veterana diplomata de carreira, Sherman liderou as negociações do pacto nuclear com o Irã por parte dos EUA.

Tanto Blinken como Jake Sullivan, futuro assessor de Segurança Nacional ―e também participante das negociações com o Irã no Governo Obama―, defendem uma maior dureza em relação à China, embora ao mesmo tempo estejam conscientes do custo e do desgaste desse encarniçado conflito pelo cetro de maior superpotência global, especialmente em meio a uma situação excepcional como a pandemia. Também parece clara a aposta em melhorar a relação com a UE depois da saída do Reino Unido, e com a OTAN depois de quatro anos de pressão ―ou chantagem, para alguns, ao exigir um aumento do gasto em defesa― por parte de Trump.

O provável ânimo conciliador com o Irã aparentemente não terá equivalente nas relações com a Venezuela e Cuba, pois Sullivan defende forçar diplomaticamente a queda de Nicolás Maduro e uma renovada pressão sobre Havana para isolar o líder chavista. Com os demais aliados de Maduro (China e Rússia), espera-se também uma volta de parafuso para isolar seus interesses das necessidades de Caracas.

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