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A volta ao mundo para movimentar o petróleo venezuelano

Uma rede liderada por Alex Saab, suposto testa de ferro de Nicolás Maduro, utilizou empresas do México, Rússia e Emirados Árabes para distribuir o produto do país caribenho e burlar as sanções dos EUA, segundo documentos obtidos pelo EL PAÍS e pelo site Armando.info

Instalações da estatal petroleira PDVSA na cidade de Maracaibo, na Venezuela, em 27 de dezembro de 2019.
Instalações da estatal petroleira PDVSA na cidade de Maracaibo, na Venezuela, em 27 de dezembro de 2019.NurPhoto (getty images)
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A rede que intercambiou petróleo venezuelano por alimentos e caminhões-pipa com água potável do México é apenas a ponta do iceberg de um consórcio que movimenta milhões de barris de petróleo bruto da PDVSA por todo o país, em manobras concebidas para burlar as sanções impostas pelo Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. Uma trama opaca em que, segundo documentos obtidos pelo EL PAÍS e pelo site Armando.info como parte de uma investigação conjunta, afloram companhias quase desconhecidas e nas quais se destacam, até o momento, três nomes: o colombiano Alex Saab, suposto testa de ferro do presidente venezuelano, Nicolás Maduro, o empresário mexicano Joaquín Leal e o italiano Alessandro Bazzoni.

A detenção de Alex Saab, ocorrida há sete meses em Cabo Verde, que agora avalia sua extradição para os Estados Unidos, e a quase simultânea sanção do Tesouro às empresas mexicanas Libre Abordo e Schlager Business Group, vinculadas a Leal, de apenas 28 anos e que desde meados de 2019 comercializava parte do petróleo produzido pela Venezuela através de um suposto “intercâmbio humanitário”, não desbaratou o circuito clandestino de exportações petrolíferas venezuelanas. A documentação em poder dos dois veículos mostra que, através de empresas registradas no México, Rússia e Emirados Árabes Unidos, o petróleo venezuelano foi transportado para destinos como Turquia, Malásia, Singapura e territórios palestinos.

Ordem da Libre Abordo S.A. de C.V.  em Singapura.
Ordem da Libre Abordo S.A. de C.V. em Singapura.

Os documentos obtidos também sugerem que, em seu esforço para esquivar as sanções e a vigilância internacionais, a PDVSA e seus intermediários estão reproduzindo fórmulas já utilizadas com sucesso no milionário negócio das CLAPs, as cesta de alimentação subsidiadas que o Governo venezuelano distribui à população. Entre 2016 e 2018, Alex Saab e seu sócio, o também colombiano Álvaro Gentil Vargas, conceberam uma estrutura de sociedades instrumentais em Hong Kong, Turquia e Emirados Árabes Unidos. Depois de obter contratos milionários da estatal Corpovex, adquiriam de fornecedores mexicanos as cestas com produtos de baixíssima qualidade nutricional, que depois enviavam à Venezuela. O esquema se repetiria nos meses seguintes, mas agora deixando a compra e venda de alimentos em segundo plano e apostando em operações que envolviam milhões de barris de petróleo bruto.

O Governo da Venezuela se recusou a fazer comentários para esta reportagem. Em meados de 2020, quando o EL PAÍS e o Armando.info revelaram que a Unidade de Inteligência Financeira (UIF) do Governo mexicano seguia de perto a pista de 200 milhões de euros (1,28 bilhão de reais, pelo câmbio atual) do comércio de petróleo da rede de Saab entre o México e a Venezuela, fontes da Administração de Nicolás Maduro negaram que se tratasse de um negócio clandestino e declararam que a falta de clareza nos contratos é consequência dos problemas que a Venezuela enfrenta para fazer negócios em geral, devido às sanções impostas pelos Estados Unidos. Tampouco Bazzoni e Leal responderam aos contatos da reportagem para que se pronunciassem.

O modus operandi era praticamente o mesmo desde meados de 2019, tanto com as mexicanas Libre Abordo e Schlager Business Group como com empresas russas e emiradenses. As companhias obtêm o petróleo da Venezuela, às vezes a crédito ou com descontos. A Swissoil Trading, corretora de commodities representada pelo italiano Alessandro Bazzoni, o transporta a portos asiáticos ―principalmente em Singapura, China e Malásia―, de acordo com numerosos comprovantes de carga aos quais o EL PAÍS e o Armando.info tiveram acesso. Os documentos de embarque omitiam que se tratava de petróleo venezuelano e citavam como donos do produto as empresas que o revendiam, para que pudesse ser comercializado na Ásia sem as restrições decorrentes do embargo norte-americano. Embora os advogados de Bazzoni tenham negado à agência Reuters sua participação na comercialização de petróleo venezuelano, de acordo com a documentação obtida o empresário italiano também recorreu nessa operação à empresa Elemento LTD, parceira da PDVSA na Petrodelta e que tem entre os sócios Francisco D’Agostino ―cunhado do deputado opositor Henry Ramos Allup― e o recém-falecido Oswaldo Cisneros.

Carta Alessandro Bazzoni
Carta Alessandro Bazzoni

Os documentos e comunicações mostram que tanto as companhias mexicanas como as russas usavam os seguintes navios petroleiros para o frete: Lion King, Delta Kanaris, Delta Harmony, Melody, Perfect, Azimouth, Commodore, Euroforce e Athens Voyager. O Euroforce, de bandeira liberiana, e o Athens Voyager, registrado no Panamá, são algumas das embarcações que Washington já puniu com sanções.

Quando as aquisições de petróleo venezuelano ainda corriam por conta da Libre Abordo, era o próprio Joaquín Leal quem mantinha essa comunicação direta com a PDVSA. “Estimada equipe Libre Abordo S.A. A PDVSA espera a apresentação de sua oferta de petróleo bruto Merey 16, a qual nos interessa avaliar”, diz um email enviado em 28 de agosto de 2019 pelo Departamento de Marketing Internacional a Leal. Como esta, são numerosas as comunicações entre a petroleira estatal venezuelana e o jovem empresário mexicano, às quais o EL PAÍS e Armando.info tiveram acesso. A resposta da Libre Abordo chegaria na forma de uma carta com a confirmação do interesse em adquirir o petróleo. A partir de ali começava a troca de mensagens para fazer os testes de qualidade do produto e coordenar o navio que faria o frete, fosse diretamente dos portos venezuelanos ou sob a modalidade de navio para navio. Nesse momento entrava em ação a Swissoil Trading, companhia suíça encabeçada por Bazzoni, que se encarregava de colocar o petróleo em mercados que estavam a milhares de quilômetros das costas venezuelanas.

Da documentação obtida se depreende que a rede tratava de preencher o vácuo deixado pelos principais sócios estrangeiros da Venezuela depois do embargo norte-americano. São esquemas que vendem o petróleo a preço mais baixo, às margens do mercado energético internacional, mas poucos estavam dispostos a entrar no negócio. “As sanções dos EUA foram um fracasso: geraram maior desigualdade e pobreza, unificaram o chavismo e fortaleceram a uma nova elite econômica que tem feito negócios à margem do embargo”, observa Antulio Rosales, professor da Universidade de New Brunswick, que estudou o efeito político e econômico das sanções. Em meio à queda de braço entre Washington e Caracas, floresceu uma indústria à sombra, com grupos de oligarcas que lucram com as necessidades da população, amparando-se na corrupção e aproveitando seu acesso com grandes descontos a produtos como o ouro e o petróleo, aponta o acadêmico. “Eles são os grandes ganhadores”, afirma. Recorrem a operações primárias como “permuta” ou “transações fora do radar”, mas os lucros são milionários.

Venezulanos sem gasolina pelo colapso da indústria petroleira em dezembro de 2019 na cidade de Maracaibo, Venezuela.
Venezulanos sem gasolina pelo colapso da indústria petroleira em dezembro de 2019 na cidade de Maracaibo, Venezuela. NurPhoto (getty images)

Entre meados de agosto e outubro de 2019, a Libre Abordo adquiriu quase 20 milhões de barris de misturas de petróleos venezuelanos como Merey 16, Hamaca Blend, Boscán e Special Hamaca Blend, assim como óleo combustível, segundo a documentação. Em junho do ano passado, mês em que Alex Saab foi detido e Joaquín Leal recebeu sanções do Departamento do Tesouro, outras empresas do chamado consórcio, como Delta e Proton, levaram pelo menos 15 milhões de barris de portos venezuelanos, em sua maioria do tipo Merey 16.

Os documentos revelam que os descontos da PDVSA oscilavam entre 10% e 15%, dependendo do destino e das condições do mercado. As faturas da PDVSA, por sua vez, revelam que a mexicana Libre Abordo devia pagar à estatal venezuelana em euros, com transferências para contas em bancos russos como Evrofinance e Gazprombank. De acordo com essas faturas, em 19 de junho de 2020, apenas um dia depois de o Departamento do Tesouro ter punido Joaquín Leal e suas companhias mexicanas, a paraestatal venezuelana passou uma fatura de quase 33 milhões de euros (211 milhões de reais) à Libre Abordo por uma carga de um pouco mais de um milhão de barris de petróleo Special Hamaca Blend, e outra carga de um pouco mais de um milhão de barris do mesmo tipo de petróleo bruto por quase 29 milhões de euros (185,4 milhões de reais). Nesse mesmo dia, a PDVSA faturou à Libre Abordo outros 47 milhões de euros (300,5 milhões de reais) por um pouco mais de 1,8 milhão de barris de petróleo Merey 16.

Contrato da PDVSA de 19 de junho de 2020.
Contrato da PDVSA de 19 de junho de 2020.

Não fica claro se finalmente a Libre Abordo pagou por todo o petróleo venezuelano que recebeu da PDVSA, já que a empresa declarou falência quando se soube que autoridades norte-americanas seguiam sua pista, reportando um prejuízo de 90 milhões de dólares. Mas fica claro que o valor do petróleo recebido desde meados de 2019 supera amplamente o suposto “intercâmbio humanitário” que deu início a suas transações com Caracas e que a obrigava a entregar 1.000 caminhões-pipa com água e 200.000 toneladas de milho, num valor total de quase 1,23 bilhão de reais. “Isto não corresponde à quantidade de petróleo entregue pela PDVSA e que foi revendida pela Libre Abordo e pelo Schlager Business Group, avaliado em mais de 300 milhões de dólares”, alertou o Departamento do Tesouro em junho de 2019.

Usuários com domínios russos

Um exemplo dos intercâmbios internacionais e que constam nos documentos obtidos pelo EL PAÍS e Armando.info data de 11 de agosto de 2020. Nesse dia chegou um email ao Departamento de Administração de Contratos da PDVSA. Vinha de um usuário com domínio russo (.ru) e solicitava informações sobre o “estado das contas em 31 de julho” para as empresas do “consórcio” integrado por Proton, Delta, Schlager, Loran, Xiamen, Novosi Solution, Zervekas e Shamrium, todas desconhecidas no mercado petroleiro internacional, registradas na Rússia, mas agora compradoras do petróleo venezuelano. O email é revelador. Não só porque foi enviado um mês depois de o Departamento de Tesouro dos EUA incluir Joaquín Leal na chamada Lista Clinton do Departamento de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC, na sigla em inglês), por considerá-lo o “elo fundamental” entre a Libre Abordo e o Schlager Business Group para fugir das sanções norte-americanas à Venezuela, mas porque revela que um mesmo grupo ―Bazzoni e seus sócios― controlava numerosas companhias para a mesma operação de compra e revenda do petróleo venezuelano.

Embora as cifras de exportações petroleiras da Venezuela em 2020 tenham sido as menores em várias décadas, as mais recentes permitem inferir que a engrenagem de alguma forma segue funcionando. Em novembro passado, por exemplo, 24 carregamentos de petróleo saíram da Venezuela com 639.000 barris de petróleo bruto e derivados. Esses volumes supõem quase o dobro com relação a outubro de 2020, conforme informou a Reuters. Cabe destacar que em ambos os meses já havia sanções contra a PDVSA e diversas companhias de navegação que registram navios petroleiros com rota para portos venezuelanos.

Anteriormente, o Departamento do Tesouro tinha calculado que até abril do ano passado a mexicana Libre Abordo havia recebido 30 milhões de barris da Venezuela e que, antes da sanção, a empresa concentrava 40% das exportações de petróleo da PDVSA.

A Reuters atribuiu o salto de novembro justamente às exportações via “compradores-fantasmas na Rússia”. Várias dessas empresas coincidem com as listadas no email enviado à PDVSA e, segundo a informação da Reuters, foram registradas em Moscou pela OGX Trading, fundada em março por Serguei Basov, um nome que também termina levando a Alex Saab.

Basov é um empresário russo que tem relações comerciais com Betsy Desireé Mata Pereda, uma venezuelana que, como revelou o Armando.info, participa da estrutura corporativa que Saab criou para o comércio das CLAPs. Mata Pereda consta como responsável pela empresa turca Mulberry Proje Yatirim, que substituiu a firma registrada em Hong Kong com a qual Saab e Álvaro Gentil manejaram pelo menos dois contratos milionários para o fornecimento das CLAPs e outros para o suprimento de remédios da Índia.

Há algumas semanas, a Reuters informou da aparição de empresas registradas nos Emirados Árabes Unidos como novos compradores-fantasmas do petróleo venezuelano. Nos documentos aos quais se teve acesso para esta reportagem, uma empresa registrada nessa jurisdição figura como a responsável por exportar petróleo para a Palestina, numa operação triangular marcada pelo secretismo na estatal venezuelana. “O pessoal da Embaixada da Palestina solicitou não utilizar e-mails com a empresa POGC Petroleum and Energy devido às limitações causadas pelas sanções à PDVSA. Até o momento tudo foi de maneira pessoal ou via telefônica, tanto com o embaixador como com a encarregada de negócios”, diz um email de 12 de agosto de 2020 enviado pela vice-presidência de Comércio e Suprimento da PDVSA. De acordo com o contrato, a PDVSA deveria despachar entre julho e agosto do ano passado 1,8 milhão de barris de petróleo das variedades Merey 16 e Boscán. O pagamento da Palestina POGC Petroleum and Energy FZ-LLC à estatal venezuelana seria feito em dirhams, a moeda oficial dos Emirados Árabes Unidos.

Pagamento da palestina POGC Petroleum and Energy FZ-LLC à estatal venezuelana.
Pagamento da palestina POGC Petroleum and Energy FZ-LLC à estatal venezuelana.

Roberto Deniz é repórter do site investigativo venezuelano Armando.info.

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