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Morre George Blake, o famoso agente duplo britânico que espionou para a URSS na Guerra Fria

O notório espião foi descoberto e condenado no Reino Unido em 1961, realizou uma fuga lendária e viajou para Moscou, onde foi aclamado como herói

O agente duplo George Blake em fotos da prisão britânica de Wormwood Scrubs, onde passou cinco anos até fugir, em 1966, e ir para Moscou.
O agente duplo George Blake em fotos da prisão britânica de Wormwood Scrubs, onde passou cinco anos até fugir, em 1966, e ir para Moscou.Mirrorpix
María R. Sahuquillo
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Belarus President Alexander Lukashenko, second left, stands on the field as he visits the Novaya Zhizn (New Life) agricultural enterprise in the Nesvizh district, Belarus, Monday, July 27, 2020. The presidential election in Belarus is scheduled for Aug. 9, 2020. (Andrei Stasevich/BelTA Pool Photo via AP)
Aleksandr Lukashenko, o líder autoritário ancorado na era soviética

George Blake, o famoso oficial da inteligência britânica que trabalhou como agente duplo para a União Soviética em uma das épocas mais conturbadas da Guerra Fria, morreu na Rússia aos 98 anos. Blake, que foi descoberto como espião e condenado em 1961 no Reino Unido, realizou uma fuga legendária de uma prisão britânica, humilhando os serviços de inteligência ingleses. Conseguiu cruzar a Cortina de Ferro e chegar até Moscou, onde a KGB lhe deu a patente de coronel. Foi recebido como herói e aclamado como tal até hoje. Durante seus anos como agente duplo, Blake transmitiu aos oficiais da URSS segredos de importância estratégica que levaram à captura e execução de vários espiões infiltrados nos serviços soviéticos. Nunca se considerou um traidor.

O presidente russo, Vladimir Putin, ex-oficial da KGB, lamentou neste sábado a morte do mítico agente duplo, definindo-o como um homem “brilhante” de “coragem especial”. Seu trabalho contribuiu para “garantir a paridade estratégica e manter a paz no planeta”, disse o líder russo em um telegrama de condolências.

Filho de um judeu sefardita de nacionalidade britânica nascido em Constantinopla e de uma holandesa protestante, Blake nasceu em 1922 em Roterdã e recebeu o nome de George Behar. Durante a ocupação nazista da Holanda, colaborou com a resistência e atuou como mensageiro durante dois anos, antes de emigrar para o Reino Unido. Lá, mudou seu sobrenome para Blake, uniu-se à Marinha Real e treinou para trabalhar em submarinos. Falava holandês, alemão, inglês, árabe e hebraico, e foi recrutado pelo serviço de inteligência britânico MI6 no final da Segunda Guerra Mundial.

Depois da guerra, estudou russo em Cambridge. Em 1948, sob cobertura diplomática, foi enviado a Seul com a missão de montar uma rede de espionagem contra as forças comunistas, a China e o extremo leste soviético. Em 1950, quando começou a Guerra da Coreia, foi capturado, juntamente com vários diplomatas britânicos, pelas forças comunistas norte-coreanas. Ficou detido durante três anos. Durante seu cativeiro, foi submetido a torturas e doutrinação comunista. Alguns analistas refletiram depois sobre se foi uma lavagem cerebral que o levou a se tornar um agente duplo. Embora Blake sempre tenha dito que o que o levou a abraçar o comunismo foi a ação militar dos EUA na Coreia.

“Assisti aos implacáveis bombardeios de pequenas aldeias coreanas pela aviação dos EUA. Morreram mulheres, crianças, idosos; os homens estavam no Exército. Nós mesmos poderíamos ter sido as vítimas. Aquilo me fez sentir uma grande vergonha”, comentou em 1999. “Senti que estava do lado errado.”

Durante esse tempo, Blake se reuniu com um oficial da KGB e aceitou espionar para a URSS. Ele começou imediatamente a revelar segredos britânicos. Para evitar suspeitas, não recebeu nenhum privilégio e foi libertado juntamente com outros diplomatas em 1953. No Reino Unido, foi recebido como um herói nacional.

George Blake ao chegar ao Reino Unido após sua libertação, em 1953, depois de passar três anos detido pelos norte-coreanos.
George Blake ao chegar ao Reino Unido após sua libertação, em 1953, depois de passar três anos detido pelos norte-coreanos. Central Press (Getty Images)

Em 1955, o MI6 o enviou a Berlim para recrutar oficiais soviéticos como agentes duplos. Lá, começou a passar para a URSS segredos britânicos e americanos, entre eles as identidades de 400 espiões e detalhes de várias missões ocidentais. Em algumas de suas entrevistas, contou que pelo menos uma vez por mês, e com extremo cuidado, ia para Berlim Oriental, onde se encontrava com seu contato soviético em um apartamento. Lá, compartilhando uma garrafa de vinho espumante de fabricação soviética, entregava-lhe informações. Algumas tão valiosas como a localização e os detalhes de um túnel estratégico em Viena e de outro, ainda mais longo e importante, dentro de Berlim ―que a espionagem anglo-americana usava, entre outras coisas, para interceptar conversas telefônicas dos soviéticos. Dados tão importantes que os soviéticos esperaram 11 meses para destruir o túnel.

Em 1961, a informação de um desertor da inteligência polonesa expôs a vida dupla de Blake, que naquela ocasião já estava casado e tinha três filhos. Foi julgado a portas fechadas e condenado a 42 anos da prisão. A investigação determinou que fazia anos que ele espionava, com o codinome de Diomid, para Moscou, onde só seu controlador conhecia sua verdadeira identidade e sabia que ele era um oficial do serviço secreto britânico.

Blake foi enviado para a prisão de Wormwood Scrubs, onde, apesar da ordem de que fosse mantido sob estreita vigilância devido a seus contatos e à sua periculosidade, protagonizou uma fuga cinematográfica em 1966. Com ajuda de alguns de seus colegas ―entre eles, vários ativistas antinucleares que tinham passado alguns meses com ele na prisão e consideravam injusta sua condenação― e colaboração externa, o agente duplo escalou os muros da prisão com uma escada de corda, cujos degraus eram feitos com agulhas de tricô. Depois de passar uma semana escondido, ocultou-se debaixo do banco traseiro do veículo de um dos ativistas, que o levou assim em uma falsa viagem familiar com esposa e filhos, atravessando o Canal da Mancha e chegando até um posto de controle fronteiriço da Alemanha Oriental, onde o controlador de Blake na KGB, que já havia organizado sua transferência para Moscou, os esperava.

Blake durante uma conferência em Moscou em 1992.
Blake durante uma conferência em Moscou em 1992. Boris Yurchenko (AP)

Já na URSS, o notável agente foi condecorado com a Ordem Lenin e recebeu uma moradia e uma casa de campo. Divorciou-se de sua primeira esposa, que ainda vive, casou-se novamente e teve outro filho. Assumiu a identidade de Georgi Ivanovich e começou a dar aulas para outros agentes. Na URSS, era visto frequentemente com outros conhecidos agentes duplos britânicos. Principalmente com Kim Philby ―o espião que recebeu ordem de Stálin para matar Franco― e Donald MacLean, membros do chamado “grupo dos cinco de Cambridge”. Também com Lona e Morris Cohen, o casal de espiões americanos que revelou o programa nuclear de Washington conhecido como Projeto Manhattan.

Conhecendo as vidas e façanhas de todos eles, o escritor John Le Carré comentou que a autobiografia de Blake, No Other Choice (“sem outra escolha”), foi o melhor livro de espionagem que leu. “De todos os agentes duplos que trabalharam para a KGB, sem dúvida o mais interessante e o grande traidor foi Blake”, comentou o escritor em uma entrevista ao EL PAÍS em 2009. Le Carré faleceu poucas semanas atrás.

Blake, também condecorado várias vezes pelo presidente Vladimir Putin, nunca se viu como um traidor. “Para trair, você primeiro tem de pertencer”, disse ele em entrevista a uma rede americana em 1991, na qual se apresentou como um cosmopolita que se transformou em um comunista comprometido que aspirava à igualdade e à justiça social, e contou que nunca se sentiu britânico: “Nunca pertenci”.

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