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Congresso argentino inicia debate sobre a legalização do aborto com apoio do presidente

Câmara dos Deputados vota, dois anos depois da última tentativa, a livre interrupção da gravidez até a 14ª semana

Mobilização em frente ao Congresso argentino a favor da legalização do direito ao aborto, em novembro.
Mobilização em frente ao Congresso argentino a favor da legalização do direito ao aborto, em novembro.Servicio Ilustrado (Automático) (Europa Press)

É a nona vez que um projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez tramita no Congresso argentino, mas possivelmente será a última. Diferentemente das vezes anteriores, desta vez a iniciativa é impulsionada pelo Governo e conta com o respaldo do presidente Alberto Fernández. Os partidários da legalização do aborto negociaram mudanças de última hora para reunir adesões, conscientes da acirrada votação que se aproxima a partir desta quinta-feira na Câmara, e depois no Senado. Em 2018, o projeto foi aprovado pelos deputados, mas derrotado na Câmara Alta.

A proposta que começará a ser debatida no final da manhã desta quinta ― prolongando-se provavelmente até a madrugada de sexta ― determina que as mulheres e “outras identidades com capacidade de gerar” possam interromper sua gestação até a 14ª semana. Não podem transcorrer mais de 10 dias entre a solicitação do aborto e sua realização, uma regra que busca evitar calvários com a da menina Lucía, estuprada aos 11 anos por um avô de criação, e que passou quase um mês internada até que uma ordem judicial obrigou o hospital a cumprir a vontade dela de abortar.

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A legalização do aborto é acompanhada de outro projeto, o Plano dos Mil Dias, que pretende acompanhar, proteger e apoiar a maternidade e os três primeiros anos de vida do recém-nascido. Essa iniciativa, junto com emendas no projeto do Executivo sobre a legalização do aborto ― como a flexibilização da objeção de consciência por parte dos profissionais envolvidos ―, busca tornar a reforma mais palatável para os legisladores ainda indecisos.

“A legalização do aborto salva vidas de mulheres, não aumenta a quantidade de abortos nem os promove. Só resolve um problema que afeta a saúde pública”, disse o presidente argentino ao anunciar o envio do projeto ao Congresso, em meados de novembro. Desde a volta da Argentina à democracia, em 1983, mais de 3.000 mulheres morreram por causa de abortos inseguros. A cada ano, quase 40.000 mulheres são hospitalizadas por complicações derivadas de interrupções de gestações.

“O debate não quer dizer o sim ou não ao aborto. Os abortos ocorrem de forma clandestina e põem em risco a saúde e a vida das mulheres que a eles se submetem. Portanto, o dilema que devemos superar é se os abortos são praticados na clandestinidade ou no sistema de saúde argentino”, salientou Fernández. A maioria das vítimas fatais era de mulheres que abortaram em condições inseguras, às vezes com métodos perigosos como cabides, maços de salsinha ou sondas. Nesses casos, frequentemente a busca por atendimento médico foi adiada por medo das consequências: a atual lei argentina pune o aborto com penas de até quatro anos de prisão, exceto se a gravidez foi resultado de estupro ou se houver risco à saúde da mãe.

Ameaça penal

“A ameaça penal impacta sobretudo as pessoas que interrompem uma gravidez. Mas só prende e castiga quem carece das ferramentas simbólicas ou materiais para ter acesso a um aborto seguro, dentro ou fora do sistema de saúde”, observa o Centro de Estudos Sociais e Legais em uma pesquisa feita com a Universidade de San Martín sobre a perseguição judicial a quem aborta na Argentina. Segundo o CELS, pelo menos 73 mulheres foram criminalizadas por abortos ou outros eventos obstétricos desde 2012.

O caso mais famoso foi o de uma mulher conhecida como Belén, que passou 29 meses presa por um aborto espontâneo em Tucumán, no norte do país, em 2014. Outra é Gimena, de 26 anos e mãe de dois filhos, que desde 2016 está detida em uma unidade penitenciária de Salta. Uma das provas que a Justiça aceitou para condená-la foi ter procurado na internet como fazer abortos caseiros. Patricia, mãe de duas filhas, morreu em 2019, aos 40 anos, na prisão onde estava detida desde 2015, condenada por ter abortado aos cinco meses de gravidez e se livrado do feto em um descampado.

Em 2018, o então presidente Mauricio Macri abriu caminho pela primeira vez para o debate legislativo sobre a interrupção legal da gravidez e anunciou que, se o projeto fosse aprovado, não o vetaria. Não teve como cumprir sua promessa: os 38 votos contrários no Senado ― contra 31 a favor ― enterraram a iniciativa que a Câmara baixa havia aprovado.

Os meses de debate no Congresso e as mobilizações nas ruas a favor e contra o aborto legal polarizaram a sociedade argentina, mas também permitiram que a interrupção da gravidez deixasse de ser um tabu. Centenas de mulheres tornaram públicos seus casos de aborto desde então, entre elas a deputada governista Cecilia Moreau.

“Ninguém encara o aborto como um método anticoncepcional. Ninguém promove o aborto. Ninguém quer chegar a um aborto. Mas sabem o quê? Acontece”, disse Moreau a seus colegas na semana passada. “Aconteceu aos 16 anos com esta mulher que hoje está presidindo esta comissão. Meu método anticoncepcional falhou. Eu era uma menina e queria ter uma vida. Sonhava em ser médica, em militar, viajar. Tive a sorte de poder conversar com a minha mãe, e com minha decisão consciente e responsável minha mãe me acompanhou, mas também tive a sorte de que tinha os meios econômicos para chegar a um consultório na Recoleta”, continuou, ao relatar seu aborto nas condições mais seguras naquele momento, em um bairro nobre de Buenos Aires, quando as intervenções exigiam intervenção médica e não eram feitas com comprimidos, a opção majoritária hoje em dia.

Um debate na rua

Partidários e adversários do aborto legal ― identificados pela cor verde no primeiro caso e o azul-celeste no segundo ― pretendem se mobilizar nesta quinta em frente ao Congresso, apesar da pandemia de covid-19 que já causou mais de 40.000 mortes no país. Católicos e evangélicos lideram a ofensiva contra a aprovação da lei por considerar que a vida começa na concepção. Os deputados contrários à lei respaldam o Plano dos Mil Dias, a ser votado logo após o projeto de interrupção voluntária da gestação, mas destacam que não pode servir como compensação. “A resposta a uma gravidez indesejada tem que ser um Estado que acompanhe essa mulher. Que a criança nasça e que em último caso seja dada em adoção se a mulher não quiser tê-la. Este Governo acredita que dando um pouco de grana resolve tudo”, critica a deputada celeste Cynthia Hotton.

Uma multidão fará uma vigília nas ruas à espera dos resultados. Se aprovado, passará ao Senado, a câmara mais conservadora. Em 2018, os senadores fecharam as portas a que a Argentina se tornasse o quarto país da América Latina a legalizar o aborto, depois dos passos de Uruguai, Cuba, Guiana e de cidades como a capital mexicana.

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