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A realidade paralela em que Trump venceu

Um mês após a eleição, o presidente dos EUA continua sem reconhecer sua derrota, alimentando uma perigosa narrativa compartilhada por seus seguidores na mídia e nas redes sociais

Apoiadora de Donald Trump em um protesto contra os resultados das eleições, no mês passado, em Las Vegas.
Apoiadora de Donald Trump em um protesto contra os resultados das eleições, no mês passado, em Las Vegas.John Locher (AP)
Pablo Guimón

“Ganharemos.” “Eleição manipulada.” “Esta eleição foi um escândalo (fraude!) maior do que qualquer um poderia ter imaginado.” Estes são fragmentos de tuítes disparados nesta quarta-feira, um mês depois das eleições, pelo presidente dos Estados Unidos. Existem numerosas explicações possíveis para o fato de Donald Trump continuar dizendo que ganhou as eleições de 3 de novembro. Há quem as busque no terreno psicológico, apelando a uma incapacidade de assumir uma derrota num mundo que, como deixou claro o seu despótico pai, se divide entre vencedores e perdedores. E há também sólidos motivos de ordem financeira. Especificamente, os 170 milhões de dólares (887 milhões de reais) que arrecadou entre seus seguidores desde o dia das eleições. Na última terça-feira, por exemplo, qualquer pessoa que estivesse na base de dados da campanha de Trump recebeu quatro mensagens de texto (“Precisamos de você para defender a eleição!”) e dois e-mails solicitando doações para prolongar uma luta que poucos no entorno dele ― ou talvez nem ele mesmo ― acreditem que levará a alguma parte.

Também é fácil ver uma explicação no silêncio cúmplice de seu partido, temeroso de que rechaçar as fantasias de Trump leve a um enfrentamento que ponha em risco os dois assentos do Senado que serão disputados em janeiro na Geórgia e determinarão o controle da Câmara Alta. Os caciques republicanos sabem muito bem: o trumpismo é o culto a uma pessoa. E essa circunstância convida também a se perguntar até que ponto sua recusa a aceitar o resultado eleitoral se transfere aos seus 74 milhões de eleitores.

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A maioria das pesquisas indica que esses seguidores compartilham o discurso do presidente. Em uma da empresa YouGov para a revista The Economist, na semana seguinte às eleições, 86% dos eleitores de Trump responderam que não acreditavam que Joe Biden havia vencido legitimamente as eleições. Três em cada quatro eleitores de Trump, segundo o mesmo levantamento, consideram que o resultado real nunca será conhecido. Em outra pesquisa da NBC e Change Research, publicada em 21 de novembro, apenas 3% dos eleitores de Trump declaravam que Biden ganhou legitimamente. Isso significa que 72 milhões de norte-americanos acreditam que as eleições foram fraudadas.

Alguns especialistas observam que, nestas pesquisas, quem responde tende a simplesmente repetir o discurso do seu líder, sem que signifique necessariamente sua adesão literal. Também apontam que essa desconfiança no sistema não é tão incomum, e que tende a desaparecer quando o ciclo político devolve o seu próprio lado ao poder. Mas a ninguém escapa como é inquietante que metade do país declare publicamente que o próximo presidente será ilegítimo. Sobretudo quando o atual inquilino da Casa Branca alimentou durante todo o seu mandato essa realidade paralela impermeável às notícias verificadas.

Não convém esquecer que inclusive a ofensiva de Trump sobre a ilegitimidade das eleições começou bem antes da votação propriamente dita. O presidente passou meses convencendo suas bases de que só uma fraude impediria sua vitória. “A única maneira pela qual podemos perder estas eleições é se forem forjadas, lembrem-se disto”, afirmou já em agosto a seus seguidores em Wisconsin.

A difusão dessa narrativa falsa de fraude eleitoral, segundo um estudo recente da organização de direitos humanos Avaaz, com Elections Integrity Partnership e The New York Times, está concentrada em um reduzido grupo de personalidades da direita com muita influência nas redes sociais, o que inclui Donald Trump Jr., filho mais velho do presidente. Um núcleo de 25 pessoas, segundo o estudo, está relacionado com quase uma em cada três interações sobre desinformação relativa à fraude eleitoral. “Frequentemente se assume que a desinformação ou os rumores surgem espontaneamente. Mas estes superdifusores mostram que há um esforço intencional de definir a narrativa pública”, dizia Fadi Quran, diretor do Avaaz, no The New York Times.

Acima de todos eles está o próprio presidente, no papel de superdifusor-em-chefe. As 20 publicações do Facebook com a palavra “eleição” que geraram mais interação nas duas semanas posteriores ao pleito foram todas do presidente. E todas eram falsas ou enganosas, segundo pessoas que verificam a informação de maneira independente citadas pelo Times. Um só tuíte do presidente acusando o Dominion, um software de tabulação, de apagar 2,7 milhões de votos foi compartilhado 185.000 vezes e teve 600.000 curtidas. Como com tantas outras mensagens do presidente, o Twitter acrescentou uma etiqueta advertindo que a informação não era precisa ― uma prova do escasso impacto sobre as bases trumpistas destas advertências das redes sociais, cujo suposto viés progressista o presidente vem há anos denunciando.

Veículo midiático

Essas bases são igualmente impermeáveis aos esforços jornalísticos dos veículos de maior prestígio. Nos Estados Unidos, metade da população se sente alheia à mídia mainstream, por considerá-la, na melhor das hipóteses, elitista e tendenciosa à esquerda. Essa metade da população é um suculento bolo que a Fox News vem devorando de forma quase exclusiva. Mas mesmo no canal de Rupert Murdoch, entre os desavergonhados aduladores do presidente, surgiram nas últimas semanas vozes críticas que, rendendo-se às evidências, se negam a seguir o presidente em seus delírios. Isto produziu um aberto desencontro entre Trump e a Fox, que empresários mais atentos souberam capitalizar.

É o caso de Christopher Ruddy, parte do entorno social de Trump na Flórida e executivo-chefe do canal Newsmax, transformado nas últimas semanas no mais relevante veículo midiático das fantasias trumpistas. Segundo as suas manchetes desta quarta-feira, “a investigação da fraude eleitoral não terminou”, “há suficientes provas para uma ação no Arizona”, “os abusos do voto não presencial em Wisconsin afetaram 220.000 cédulas” e “o FBI está reunindo dados sobre a fraude eleitoral”.

Graças a isso, sua audiência no horário nobre passou da média de 58.000 antes da eleição para 1,1 milhão agora. O próprio Trump contribuiu para sua decolagem, elogiando o canal e compartilhando suas reportagens. Disponível por cabo na maioria de lares, além de online, a Newsmax virou o flagelo da Fox à direita.

Ruddy não é movido por fanatismo. Trata-se de um homem de negócios explorando uma mina de dinheiro e poder. “Nestes tempos”, disse recentemente ao The New York Times, “as pessoas querem algo que tenda a afirmar seus pontos de vista e opiniões”. E é isso que encontram nesse universo alternativo de suposta informação onde, apesar de toda a evidência em contrário e do potencial nocivo à democracia norte-americana, a luta continua.

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