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UE examinará situação do Estado de direito em cada um dos seus países

Bruxelas eleva o padrão de exigência na esperança de frear os rumos antidemocráticos de alguns sócios e evitar a adesão de países com comportamentos duvidosos

O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán (esquerda), com seu homólogo polonês, Mateusz Morawiecki, em um encontro do Grupo de Visegrado em Lublin (Polônia), em 11 de setembro.
O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán (esquerda), com seu homólogo polonês, Mateusz Morawiecki, em um encontro do Grupo de Visegrado em Lublin (Polônia), em 11 de setembro.Czarek Sokolowski (AP)

A defesa do Estado de direito e das liberdades e valores fundamentais se transformou na nova fronteira da integração europeia. A União Europeia iniciará nesta terça-feira a primeira revisão, país por país, sobre a qualidade democrática, a pluralidade política, a independência judicial, o respeito às minorias e a liberdade de imprensa. Trata-se de um exercício de fiscalização sem precedentes na história da União. E Bruxelas quer fazer dele um marco de vigilância similar ao chamado semestre europeu, que obriga os Estados a prestarem contas anualmente sobre seus planos orçamentários e permite à União prevenir ou punir derrapadas contábeis que ponham em perigo a estabilidade financeira do clube. O novo semestre tentará evitar os rumos antiliberais e a regressão de certas liberdades, tendências já presentes em países como a Hungria e a Polônia, que podem pôr em perigo a sobrevivência da própria UE.

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Esse escrutínio começa nesta terça-feira por cinco países (Bélgica, Bulgária, República Tcheca, Dinamarca e Estônia). A avaliação será feita a portas fechadas na reunião ministerial de Assuntos Gerais da UE, da qual costumam participar os ministros de Relações Exteriores ou Assuntos Europeus de todos os 27 sócios comunitários. Os demais países do grupo serão avaliados nos próximos meses, normalmente por ordem alfabética em inglês.

“A supervisão de uns pelos outros terá um caráter preventivo e permitirá à Comissão [Poder Executivo da UE] reagir de maneira muito mais imediata”, prevê uma fonte diplomática. E essa fonte aponta o recente precedente da reforma do Conselho Geral do Poder Judiciário na Espanha, suspensa depois de uma crítica fulminante do comissário (ministro) europeu de Justiça, Didier Reynders.

A revisão que se inicia agora parte do recente relatório elaborado pela Comissão Europeia sobre a situação do Estado de direito em cada país, um documento redigido com muita cautela por se tratar da primeira vez que Bruxelas avalia assuntos tão internos e sensíveis como, conforme detalha o relatório, “o sistema judicial, o marco de luta contra a corrupção, o pluralismo dos meios de comunicação e outras questões institucionais relacionadas a controles e equilíbrios”.

Apesar de sua cuidada assepsia, o documento oferece munição suficiente para que a sessão de escrutínio se torne um fogo cruzado ressaltando as disparidades existentes, segundo a Comissão, na qualidade do Estado de direito entre os diversos sócios comunitários. O escrutínio de cada país se prolongará por meia hora. A sessão permitirá ao ministro da vez apresentar seus argumentos, para depois responder aos dardos lançados por seus colegas de outros países.

A Comissão está convencida de que a repetição periódica desta fiscalização – somada ao novo instrumento que a partir de 2021 permitirá suspender os recursos estruturais quando se detectar em um país um risco de rumos antidemocráticos que ponham em perigo os interesses financeiros da União – representará um antes e um depois na defesa do Estado de direito. “Em dois ou três anos estaremos em uma situação completamente diversa”, prognosticava na sexta-feira passada Renate Nikolay, chefa de gabinete da vice-presidenta da Comissão Europeia, Vera Jourova, durante uma conferência organizada pelo European Movement International.

A vigilância reforçada se deve também a motivos econômicos. Bruxelas teme que a falta de segurança jurídica em alguns países ou os ataques à independência judicial em outros ponham em perigo a integridade do mercado interno. “As empresas começam a operar com inquietação em alguns mercados porque não têm garantias de um trato equitativo e justo”, aponta uma fonte comunitária.

A decisão de Bruxelas de elevar o padrão nas exigências com relação ao Estado de direito pôs a Hungria e a Polônia em pé de guerra, acusando a Comissão de extrapolar suas competências e invadir a soberania nacional. Os primeiros-ministros húngaro, Viktor Orbán, e polonês, Mateusz Morawiecki, ameaçaram bloquear os orçamentos da UE para 2021-2027, o que frearia não só os recursos de coesão mas também o recém-criado fundo de recuperação pós-pandemia. A decisão de realizar esse bloqueio pode ameaçar o lançamento da ajuda europeia para aliviar a crise econômica provocada pelo covid-19. Este acordo, que inclui subsídios e empréstimos, é fundamental para países como Espanha e Itália.

Bruxelas não parece se dar por aludida com o revide de Budapeste e Varsóvia. Na semana passada a Comissão subiu a baliza em mais um degrau ao aprovar uma inédita estratégia europeia de garantias da liberdade, igualdade e segurança das pessoas da comunidade LGTBIQ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, não binárias, intersexuais e queer). E nos próximos meses o organismo presidido por Ursula von der Leyen deve apresentar iniciativas para prevenir e combater a violência de gênero; proteger os direitos da infância; garantir a igualdade de trato com independência do gênero, religião, deficiência, idade e orientação sexual de cada pessoa; melhorar a transparência no financiamento dos partidos políticos; e impedir os litígios abusivos contra jornalistas e ativistas de direitos humanos.

Compromisso com o Tratado da UE

“Não estamos invadindo as competências de nenhum país”, defende Nikolay. “Só queremos garantir que cumprem aquilo com que se comprometeram ao assinar o Tratado da União Europeia”, acrescenta a alta funcionária.

Eulalia Rubio, pesquisadora-sênior do Instituto Delors em Paris, acredita que “o respeito ao Estado de direito será o assunto principal da UE porque é o problema mais grave que temos”. Na opinião dela, o diálogo que começa nesta semana com base nos relatórios da Comissão “é importante para mudar a narrativa e demonstrar à opinião pública de países como a Hungria e a Polônia que não há nenhuma discriminação e que todos os sócios são vigiados”.

Rubio adverte, entretanto, que o processo de escrutínio por si só não basta. “É crucial também o novo mecanismo que permite suspender os fundos”. A pesquisadora acredita que a combinação desses dois instrumentos não será a solução definitiva. “Mas ao menos permitirá que a UE deixe de financiar um regime como o de Orban.”

Uma fonte diplomática observa que “o novo semestre europeu do Estado de direito marcará um ponto de inflexão na vigilância sobre o cumprimento de valores fundamentais que até agora eram dados como assegurados entre os sócios comunitários, mas que foram postos em dúvida pelos rumos iliberais em vários países”. Essa e outras fontes prognosticam que a crescente exigência afetará também o processo de ampliação da UE e “levará a um exame mais duro dos países dos Bálcãs que aspiram ao ingresso”.

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