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Vitória de Biden dinamita pilar de Bolsonaro no exterior e obriga reacomodação do Planalto

Relações com presidente democrata devem ser mais frias, e Brasil será obrigado a repensar estratégia em momento que se vê isolado e pressionado a avançar em proposta ambiental

Apoiadora de Bolsonaro carrega cartaz que saúda também Trump no 7 de Setembro em Brasília.
Apoiadora de Bolsonaro carrega cartaz que saúda também Trump no 7 de Setembro em Brasília.Myke Sena/ Getty Images
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Um balde de água fria para a torcida da família presidencial. A vitória de Joe Biden, anunciada neste sábado, é indigesta para o presidente Jair Bolsonaro e seus filhos, que já vestiam a camisa de Trump 2020 desde antes de o patriarca assumir o Governo. O mandatário brasileiro perde um aliado decisivo no poder nos Estados Unidos, num momento em que abriu uma caixinha de maldades em sua relação com a China. Até a a tarde deste domingo, o presidente brasileiro não havia se manifestado sobre a vitória do democrata, tornando-se um dos poucos chefes de Estado a silenciar num momento tão simbólico para o planeta. Preferiu a cautela até entender se a contestação de Trump reverbera, apontam os jornalistas que cobrem o Palácio do Planalto.

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É um momento difícil para Bolsonaro, que tinha em Trump um trunfo e uma aval do seu estilo de Governar. O republicano, e sua posição central na geopolítica, ajudou a normalizar o diversionismo histriônico de Bolsonaro com ataque a instituições, a jornalistas e a avanços na pauta de costumes, uma ruptura inédita no pacto democrático que o Brasil selou em 1988. “É inegável que o ambiente global que o presidente Trump criou é muito benéfico para o projeto de Jair Bolsonaro”, diz Oliver Stuenkel, coordenador do programa de pós-graduação da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. Tanto Trump quando Bolsonaro seguem o discurso anticiência, conservador e de confronto, que agora fica em suspenso.

Com Biden na presidência, o Governo se vê obrigado a reinventar sua política externa diante da relação comercial com os Estados Unidos, segundo maior parceiro do Brasil. Biden já começou a marcar seu estilo, pedindo, neste sábado, para esfriar a temperatura que dominou o seu país sob a liderança de Donald Trump. No discurso em que reconhece sua vitória, enumerou as batalhas que tem pela frente, como o controle da covid-19, a retomada da economia, e a “batalha para salvar o clima”, disse ele, sublinhado de preocupação em refazer o tecido social, e defender a democracia. “É tempo de deixar de lado a retórica dura. Baixar a temperatura, ver-nos uns aos outros”, disse Biden. “É tempo de curar a América."

Na última sexta, o presidente do Brasil chegou sinalizar que havia captado o clima de mudanças. Em evento em Florianópolis, no sul do país, citou o nome de Trump. “Eu não sou a pessoa mais importante do Brasil, assim como Trump não é a pessoa mais importante do mundo, como ele mesmo diz. A pessoa mais importante é Deus, a humildade tem que se fazer presente entre nós", disse. Mas o silêncio deste sábado deu a entender que a transição de poder americano ainda está sendo assimilada no interior do Governo. “Com a mudança do poder, Bolsonaro perde a coluna mestra da sua política externa”, diz Rubens Ricupero, ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos. “Essa coluna desaba agora”, explica.

A nova interlocução é um cavalo de pau para o Governo Bolsonaro, refém do seu próprio discurso junto à base. Baixar a guarda para Biden significa aceitar a necessidade de dar marcha a ré em posturas que o sustentaram até aqui. A começar pela política ambiental, extremamente cara ao democrata. Embora a agenda prioritária de Biden seja a pandemia e a economia no seu país, o meio ambiente é um interesse do democrata que alcança o Brasil. Nesse caso, o brasileiro não consegue escapar de uma cobrança de alinhamento. “O Brasil não é a China, mas é um cartão de visita para Biden mostrar mudança de alinhamento global”, diz Fabricio Pontin, doutor em filosofia política.

A aproximação, porém, vai precisar superar um ruído na relação com o democrata desde que ele falou em debate com Trump no final de setembro sobre a Amazônia. “A floresta tropical do Brasil está sendo devastada”, disse Biden, afirmando que, se eleito, iria reunir outros países para garantir 20 bilhões de dólares para a preservação da Amazônia. “Parem de destruir a floresta e se não pararem, então enfrentarão consequências econômicas significativas”, acrescentou. Depois, em outro evento, falou novamente do assunto, comentando inclusive que poderiam haver “sanções”.

Bolsonaro não gostou e reclamou na ocasião. Nesta quarta (4), mencionou o episódio. “O candidato democrata falou duas vezes sobre a Amazônia. É isso que vocês querem para o Brasil? Aí sim é uma interferência de fora para dentro”, diz. Bolsonaro ironizou a imprensa com as projeções favoráveis a Biden, o que indica a falta de um cenário que apostasse na vitória dele. “O Governo não sabe atuar com diplomacia, é beligerante”, diz Ricupero, que aponta o Itamaraty como um dos instrumentos de uma política que contraria a diplomacia. “É um grupo péssimo, e infelizmente o chanceler [Ernesto Araújo] é ainda pior”, diz Ricupero, que menciona um evento recente no instituto Rio Branco em que o ministro das Relações Exteriores chegou a dizer se orgulhar de ser tratado como “pária do mundo” e estar isolado.

É neste cenário que o Governo Bolsonaro precisa construir pontes, e restaurar a reputação do país. O Brasil está em baixa na comunidade internacional depois do avanço do desmatamento na Amazônia e no Pantanal, a hostilidade contínua com a China e o comando errático do presidente na gestão da pandemia de covid-19. Mas se o mundo chamava o Brasil de “pária”, estava lá Trump para fazer um afago ou elogiar o presidente brasileiro no Twitter. Era um rebote importante para momentos difíceis, como em agosto de 2019, quando o planeta apontava o dedo para Bolsonaro pelos incêndios na Amazônia. “Eu conheci bem o presidente Jair Bolsonaro em negociações com o Brasil. Ele está realizando um trabalho muito duro para combater os incêndios na Amazônia e está fazendo um ótimo trabalho para o povo do Brasil”, escreveu Trump, lembrando que “ele [Bolsonaro] e seu país têm o apoio completo e total dos Estados Unidos!”

Com a vitória de Biden, o presidente brasileiro vê esse apoio ostensivo evaporar e fica sem um respaldo poderoso para sua narrativa antissistema e anticomunista, que incendeia seus seguidores e mantém os bolsonaristas unidos.“Ou ele [Bolsonaro] se adapta a esta nova situação, e isso o alienará da sua base de extrema direita no Brasil e a de fora, ou ele entrará em conflito com Biden. O que também não é impossível”, diz Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores do governo Lula e da Defesa no Governo Dilma.

Entrar em rota de colisão com os Estados Unidos seria um tiro no pé neste momento em que o Brasil precisa de crédito e investimentos do mercado internacional. Para Ricupero, há uma oportunidade de rever a posição adotada pelo Governo Bolsonaro na política externa até aqui. “Pelo lado do Biden não haverá antagonismo ou hostilidade com o Brasil. Ele valoriza alianças e conhece muito bem a América Latina”, diz lembrando que ele foi duas vezes presidente de Comissão de Relações Exteriores do Senado americano. A dúvida é se o o presidente vai entender o recado. “Esta era uma oportunidade para [o Governo] reexaminar as coisas e haver uma evolução. Mas não sei se vai acontecer”, diz Rubens Ricupero.

Bolsonarismo abalado

Enquanto o bolsonarismo se vê abalado com o resultado da eleição nos EUA, a vitória de Biden traz uma injeção de ânimo aos adversários do presidente. “Campo mais progressista do Partido Democrata executou tática de frente ampla ao fazer campanha para Biden. Viram o tamanho do perigo que Trump representa e avaliaram a sua enorme força. Lições para interpretação da realidade brasileira e para definições sobre como transformá-la”, escreveu o governador do Maranhão, Flavio Dino (PCdoB-MA), em seu twitter nesta sexta.

O ex-embaixador Rubens Ricupero enxerga um refluxo importante para o populismo, acentuado pela pandemia. “De maneira geral a pandemia não favoreceu os populistas”, embora reconheça que a vitória foi apertada e o trumpismo vai continuar. “Não há dúvidas que o movimento populista sai enfraquecido, leva um golpe”, diz ele. “Não significa que eles vão acabar da noite para o dia”, conclui.

O cientista político Andrei Roman, da Atlas Político, observa, entretanto, que o trumpismo está longe de se tornar invisível na sociedade americana, um alerta para quem imagina que o bolsonarismo pode refluir a partir de agora. “Este é um processo cultural, não somente um fenômeno eleitoral. É típico do populismo de direita que explica a resiliência de vários líderes tanto na Hungria, como no Brasil”, afirma. “Havia uma expectativa que Trump perdesse feio e ele quase ganhou”, completa Roman, lembrando que o republicano ganhou mais votos de negros, latinos e pobres na história do Partido Republicano.

Mas se a ascensão de Trump inspirou populistas, sua derrota vai inspirar muita gente que pretende derrotar candidatos e políticos parecidos com ele, observa Oliver Stuenkel, caso do mesmo Bolsonaro, ou Erdogan, na Turquia. “Há muitas lições úteis. Vamos aprender muito como governar um país depois de um populista ter feito um estrago. Biden vai reinventar o centro”, projeta.

Christopher Garman, diretor da consultoria de análise de riscos Eurasia, assinala que tanto Bolsonaro quanto Trump são fruto de uma estratégia eleitoral e política vencedora que explora um sentimento antissistema no mundo. “Se você olha as pesquisas de opinião no Brasil ou nos Estados Unidos você vê que o que permite essa política é o grau de desconfiança tremenda [das pessoas] nas instituições vigentes do chamado sistema: mídia, Judiciário, partidos políticos, lideranças e raiva das regras do jogo”, observa. Personagens como Bolsonaro e Trump, explica Garman, só conseguem se eleger por essa desconfiança crônica do eleitorado. “Não é o Trump perdendo que vai tirar a força desse movimento no Brasil. As bases do bolsonarismo permanecem”, completa.

Fabricio Pontin, também especialista em relações internacionais, vai na mesma linha. “Não podemos achar que é uma onda que vem bate e vai embora. Não vai acabar o bolsonarismo, nem com [o senador] Flavio [Bolsonaro, denunciado por rachadinha na Assembleia do Rio esta semana], nem com um impeachment. Esses sentimentos [antissistema] vão continuar”, afirma.

O quadro agora, porém, requer cálculos mais precisos, uma vez que a economia do país está cambaleante em função da pandemia. “A posição do Brasil está longe de ser confortável, com a economia periclitante”, diz Ricupero. O diplomata lembra que o Brasil precisa de investimento, crédito e mercado para seus produtos. “O isolamento faz com que tudo isso se perca”, alerta. Num momento em que o mundo dá cambalhotas com a mudança de poder nos Estados Unidos, o Brasil procura o seu lugar.


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