_
_
_
_
_

“Parte dos jovens no Chile não tem consciência de como é fácil perder a democracia”

Em meio ao referendo constitucional, a historiadora chilena Sol Serrano analisa as razões das revoltas sociais e vê o país em uma encruzilhada

Mural em Santigo mostra vítimas da ditadura chilena de Augusto Pinochet
Mural em Santigo mostra vítimas da ditadura chilena de Augusto PinochetMARTIN BERNETTI (AFP)
Rocío Montes

A historiadora chilena Sol Serrano (Santiago, 1954), Prêmio Nacional de História 2018 ―foi a primeira mulher a recebê-lo ―reflete sobre as causas das revoltas sociais que explodiram em seu país em outubro de 2019, o valor da democracia na complexa sociedade chilena e a atualidade da tragédia do golpe de Estado de 1973. “A polarização, a tensões e a raiva renasceram dos nossos esgotos”, diz ela nesta entrevista, realizada no mesmo dia do referendo que definirá o futuro da Constituição redigida em 1980, no regime de Augusto Pinochet.

Aviso aos leitores: o EL PAÍS mantém abertas as informações essenciais sobre o coronavírus durante a crise. Se você quer apoiar nosso jornalismo, clique aqui para assinar.

Pergunta. O que foi que explodiu no Chile com as revoltas sociais de 2019?

Resposta. Cada dia parecia explodir algo, a começar pelos jovens estudantes que pularam as catracas do metrô para não pagar o aumento de 30 pesos (0,04 dólar); depois o incêndio simultâneo de muitas estações na capital, Santiago; manifestações em todo o país; a violência dirigida contra lojas e bens públicos; as barras bravas (torcidas organizadas violentas) do futebol mostrando que as ruas podiam ser delas; um Governo sem Governo; forças públicas não apenas ineficazes, mas repressivas como nos piores tempos; e, em meio ao caos, aparece a cenografia de fundo: 1,5 milhão de pessoas muito diversas, de coletivos que dançam com fantasias criativas até famílias de três ou quatro gerações. A sociedade parecia um campo minado com tantas explosões diversas. Algumas violentas, outras pacíficas, outras silenciosas.

Mais informações
Workers of the Electoral Service of Chile (Servel) set up a polling station on the eve of a nationwide constitutional referendum voting in Santiago, on October 24, 2020 amid the COVID-19 coronavirus pandemic. - A year after the start of a mass wave of social unrest, Chileans vote Sunday in a referendum to change a dictatorship-era constitution seen as the bedrock of the nation's glaring inequalities. (Photo by MARTIN BERNETTI / AFP)
Chile decide nas urnas o futuro da Constituição de Pinochet
Un hombre en bicicleta pasa este viernes 23 de octubre delante de una pintada callejera que llama a votar en el plebiscito constitucional del domingo.
A participação eleitoral é a grande incógnita do plebiscito constitucional no Chile
Un manifestante ondea una bandera chilena frente a una iglesia incendiada en Santiago, este domingo.
Duas igrejas são incendiadas no primeiro aniversário das revoltas no Chile

P. Foi a explosão de um descontentamento?

R. Um descontentamento que não admitia “surdez” e que todos tivemos que escutar onde quer que estivéssemos. Como escutar tantas vozes? Não só isso: assim como todo momento de ruptura, a revolta adquiria rapidamente sua própria dinâmica. O sentimento de crise já estava instalado havia muito tempo. E, embora hoje vários analistas afirmem que a explosão fosse óbvia, nenhuma é.

P. Foi a rejeição a um único fenômeno – como a desigualdade –, ou as revoltas responderam a múltiplas causas?

R. Foram muitas, e é cedo – ao menos para os historiadores – para fazer delas um todo inteligível. O Chile sempre foi uma sociedade desigual, mas a vivência dessa desigualdade é agora totalmente diferente. O Chile arrasta um passado antigo de relações hierárquicas que nossos processos de modernização mudaram, mas que voltam. No final, o desenvolvimento não foi suficientemente estável para mudar de forma mais profunda nossas relações, não apenas econômica e socialmente, mas também culturalmente.

P. Fala-se do paradoxo chileno...

R. O paradoxal é que as profundas mudanças das últimas décadas claramente empoderaram muitos setores que já não precisavam dos sindicatos e dos partidos para serem escutados. Haviam tido voz própria por duas gerações que surgiram por seu próprio esforço, movidas pela promessa de que, nesse esforço, não havia passagem de volta. Mas havia. Não seria (a passagem) dramaticamente pobre dos anos cinquenta, talvez não. A passagem de volta, no fundo, era que fossem fechadas as próximas estações.

A historiadora chilena Sol Serrano, em uma fotografia de 2019
A historiadora chilena Sol Serrano, em uma fotografia de 2019UC

P. Foi uma farsa a promessa de prosperidade da transição e dos governos de centro-esquerda?

R. A promessa não foi nenhuma farsa. A pobreza no Chile caiu de 39% em 1990 para 9% para 2019. No período, o PIB (per capita) passou de cerca de 4.000 dólares para 15.000 dólares. Mas o progresso não é linear. Gerou novas demandas e novas frustrações. "E para mim, o quê?, podem com justiça se perguntar aqueles que, como indicam as pesquisas, sentem que estão melhor que seus pais, mas menos do que esperavam. A resposta é difícil. Mais claro é que os pais sentem que seus filhos estão muito melhor que eles quando tinham a mesma idade. A sociologia tipificou isso com diversos nomes: síndrome do crescimento médio, mal-estar da modernidade... Essa é uma história com várias faces, que num momento parecem se estrangular. Porque uma delas é irrefutável: os últimos 30 anos foram os mais prósperos e democráticos de toda a história do Chile. Não é uma grande comparação, mas não é pouco.

P. Entre as diferentes rupturas que o Chile teve, há uma peculiar: a de 1957, quando estudantes protestaram no centro de Santiago contra o aumento da passagem de ônibus e a cidade foi arrasada. Como interpreta a semelhança com outubro de 2019?

R. Uma vez mais na história do Chile, os vagões saem do trilho entre expectativas de desenvolvimento. Em 1957, tratava-se de uma rebelião da pobreza urbana e um Estado quase em falência. Hoje é diferente. Há uma desconexão entre a individualização dos filhos e netos de 57. Trata-se de uma geração que envelhece acreditando que fez a sua parte do trato, de uma geração com alta formação que poderá não ter encontrado o emprego que julgava merecer, mas que sabe muito bem que fez para merecê-lo.

P. Nas suas palavras, aquelas revoltas de 1957 foram premonitórias da ruptura democrática de 1973. Do que poderia ser premonitória a crise de 2019?

R. 1957 foi premonitório de uma crise que não se conseguiu resolver. O projeto desenvolvimentista da revolução em liberdade, em plena Guerra Fria, pretendia integrar os marginalizados ao sistema por meio da ampliação do mercado com a reforma agrária e a participação. O projeto precisaria de várias décadas para ter sucesso, mas foi totalmente superado. O reformismo já não cabia nos esquemas revolucionários, mas a revolução socialista tampouco cabia e terminou na tragédia do golpe de Estado de 1973. Não vou me alongar sobre as mudanças globais que vieram depois. Esta é outra sociedade e outro mundo.

P. Vislumbra outro 1973?

P. Não vejo nem de longe outro 1973 no Chile. Mas estamos numa encruzilhada. A crise de 2019 pode ser premonitória de um populismo de qualquer matiz ou de uma sociedade que, em democracia, encontra os acordos para um modelo de desenvolvimento que assuma as mudanças de época. Tendo a acreditar que, apesar da polarização atual, a maioria da sociedade é a favor desse tipo de mudança.

P. Como entende a violência? O que há por trás dela? É uma desvalorização da democracia?

R. Sem dúvida. A valorização da democracia, sobretudo depois da horrorosa ditadura que vivemos, tem sido menos profunda do que eu pessoalmente acreditava que seria. Não sei até que ponto ela prevalece em certos setores da direita e da esquerda. Parte da esquerda tem sido ambígua, para dizer o mínimo, sobre a condenação da violência. A democracia parece instrumental, não substantiva. O Partido Comunista deu provas disso, assim como certos setores da Frente Ampla. Quando se aceita um tipo de violência, e não toda forma de violência, é porque não se acredita na democracia substantiva.

P. A força fundamental por trás das revoltas é uma evidente fratura geracional...

R. Parte dos jovens chilenos nasceu durante a democracia. Não tem medo e não tem muita consciência de como é fácil perdê-la. É impressionante o quanto a democracia foi depreciada nos protestos do Chile. Um lema tão eloquente quanto dramático, na minha opinião, foi: “Não são 30 pesos, são 30 anos”. Certamente a democracia representativa vive uma crise, mas desqualificá-la não parece ser a forma mais segura de melhorá-la.

P. A violência era a única forma de conseguir mudanças políticas?

R. Essa é uma falácia horrorosa. (A manifestação) não teria sido mais forte se tivesse sido pacífica? Os movimentos de mulheres têm sido mil vezes mais eficazes.

P. As pessoas saíram às ruas por uma nova Constituição?

R. Não. A lógica dos acontecimentos adquiriu sua própria autonomia. Ante a total ingovernabilidade, uma classe política desprestigiada conseguiu finalmente fazer política e canalizar esse fenômeno multifacetado através de um processo constituinte, que significa transformar em palavras o gás lacrimogêneo, as balas de borracha, o incêndio de museus e igrejas. A violência pode continuar, mas cada vez mais reduzida e condenada por todos. Durará pouco.

P. Que marco este plebiscito constitucional representa para o Chile?

R. O mais importante: se antes um plebiscito nos devolveu a democracia, este poderia nos devolver a política. A política em democracia, que só pode se sustentar na palavra. Esse é o marco: o valor da palavra diante do silêncio e diante do grito.

P. Quantas gerações deverão passar para que o Chile se desvincule da ditadura de Pinochet?

R. Tremenda e dolorosa pergunta. A polarização, as tensões e a raiva renasceram dos nossos esgotos como se fosse 1973. É o 73 que está profundamente vivo. Nas manifestações vemos de volta a mesma música, as mesmas palavras de ordem ressignificadas. O 73 é a memória histórica desses jovens que representa a derrota que os poderosos impuseram aos sem poder. É um ícone da memória mais que da história.

P. Se a opção dos que aprovam a mudança da Constituição ganhar, como parece provável, qual ciclo histórico termina? E qual se inicia?

R. Sabemos o que começa, mas não o que termina. Isto abre a possibilidade de uma discussão em que ninguém é como antes, não só por causa da revolta social, mas por causa da pandemia e da crise econômica.

P. Será uma refundação do Chile?

R. Não, de forma alguma. Não acredito que será uma Constituição populista ou caudilhista.

P. Uma nova Constituição trará a paz social ao Chile? Ou o país deverá aprender a conviver com conflito e violência?

R. Com conflito se vive sempre, mas não com violência. A violência terminará, não com o plebiscito, mas por seu evidente desgaste. Considero que o problema é como lidar com a tensão social e a polarização política. Às vezes penso que só o medo de perder tudo nos obriga a defender algo. A democracia e sua capacidade de processar o conflito para que não fiquemos estancados e desperdicemos energia e criatividade apenas lutando. Observo com muito interesse a nova geração política da direita e da esquerda. Observo com otimismo essa mesma geração no empresariado. E observo com franco entusiasmo a incorporação das mulheres ao mundo dos negócios e da inovação. Há sinais de mudança.

P. Que caminhos restam se não for o processo constituinte?

R. A violência. Então, em algum ponto, alguém se perguntará: quem pode acabar com a violência? E, assim como os que afirmam que não haveria mudanças sem violência, os outros dirão que a violência só termina com uma violência maior. É preciso dizer mais?

P. É otimista em relação ao que está por vir?

R. Muito. Sou otimista em relação ao retorno da política. Ou a política democrática se sustenta na palavra ou entrega sua única arma (a palavra) às armas.

Siga a cobertura em tempo real da crise da covid-19 e acompanhe a evolução da pandemia no Brasil. Assine nossa newsletter diária para receber as últimas notícias e análises no e-mail.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_