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Chile decide nas urnas o futuro da Constituição de Pinochet

Na votação mais importante desde 1988, chilenos escolhem se haverá uma nova Constituição e qual será o caminho para construir a Carta do país. Pesquisas mostram vantagem da opção pela mudança

Membros do Serviço Eleitoral chileno preparam um ponto de votação em Santiago, horas antes do início do plebiscito deste domingo.
Membros do Serviço Eleitoral chileno preparam um ponto de votação em Santiago, horas antes do início do plebiscito deste domingo.MARTIN BERNETTI (AFP)
Rocío Montes

O Chile realiza neste domingo um plebiscito histórico. Depois de 40 anos, 30 deles em democracia, 14,7 milhões de cidadãos irão decidir o futuro da Constituição em vigor, redigida em 1980, durante a ditadura de Augusto Pinochet. É a saída institucional proposta pelas principais forças políticas chilenas e pelo Governo de direita de Sebastián Piñera para canalizar as revoltas que, em outubro de 2019, colocaram em risco a estabilidade democrática. Marcados por níveis inéditos de mobilização e violência, os protestos se repetiram há uma semana, quando a explosão social completou um ano. A porcentagem de participação é uma das principais incógnitas da jornada, num país com voto voluntário e recordes de abstenção na região. O referendo ocorre quando a primeira onda da pandemia de covid-19 ainda não foi controlada e em meio a uma profunda crise de confiança em relação ao Congresso, aos partidos político e ao Executivo.

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É o processo eleitoral mais importante e simbólico já registrado no Chile desde 1988, quando foi realizado o plebiscito sobre a continuidade de Augusto Pinochet no poder, que preparou terreno para as primeiras eleições democráticas. Haverá duas cédulas. Uma delas é para decidir se será aprovada ou não a ideia de mudar a Carta constitucional vigente desde 1980. Na outra, a população será consultada a respeito do órgão que redigirá a nova Constituição: se deve ser uma convenção constitucional formada por 155 cidadãos especialmente escolhidos para esse fim ou uma convenção mista de 172 membros, integrada em partes iguais por parlamentares e cidadãos (50% e 50%). Se ganhar a opção dos que desejam substituir a Constituição, haverá outra particularidade: a convenção eleita no próximo mês de abril será paritária, ou seja, composta em igual número por homens e mulheres.

Se triunfar a opção dos que rechaçam a substituição da Constituição, no entanto, o texto atual continuará em vigor. Não existiria, nesse caso, nenhum compromisso de reforma, e qualquer mudança seria deixada a critério dos líderes políticos.

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“Tivemos diversas Constituições na história, e todas elas foram escritas depois de algum evento de força militar. Esta será a primeira vez que a Constituição será redigida por um órgão da sociedade chilena, como a Convenção Nacional, se esta opção vencer no plebiscito”, explica Ricardo Lagos, ex-presidente da República entre 2000 e 2006. “Será redigida entre 2021 e 2022, quando estamos em plena revolução digital, que deve consagrar mecanismos que permitam escutar a sociedade de maneira adequada. O que está em questão é como se faz uma Constituição que ajude a recuperar a confiança entre os cidadãos e os poderes do Estado”, diz o socialista.

Embora o voto voluntário enfraqueça o poder de previsão dos institutos, as pesquisas de opinião pública indicam que a opção dos que desejam mudar a Constituição ganhará com 69% a 85% dos votos, segundo o site Tresquintos, que analisa todos os estudos publicados no último ano. Para a convenção constitucional, a faixa de apoio estaria entre 57% e 70%.

Mais de 50 de modificações

A Carta fundamental em vigor no Chile sofreu 53 modificações em sua história. Em 2005, durante o Governo de Lagos, foram eliminados importantes enclaves autoritários, como a figura dos senadores designados, que representavam as Forças Armadas e outros poderes do Estado e que alteraram por 15 anos a maioria da centro-esquerda no Parlamento. A Constituição atual leva a assinatura do socialista. É um dos argumentos que parte da direita utilizou para rechaçar o processo de mudança, porque uma boa parte do Governo apoia a elaboração de um novo texto.

“O ideólogo da Constituição de 1980, Jaime Guzmán, era admirador de Franco e ficou arrasado quando tudo o que estava bem amarrado na Espanha foi desmontado poucos anos a após a morte do ditador. Portanto, a Carta fundamental em vigor defende a instalação de uma democracia autoritária e protegida. Embora durante a democracia o texto tenha sido reformado dezenas de vezes, não há uma única vírgula dessas mudanças que não tenha sido concessão dos partidos herdeiros da ditadura, porque eram necessários quóruns elevados para qualquer reforma”, explica o constitucionalista chileno Javier Couso, professor da Universidade de Utrecht, na Holanda. “Nunca foi possível abordar os aspectos neoliberais e mais ideológicos da Constituição, onde são garantidas as soluções privadas para os problemas públicos na educação, na saúde e inclusive na seguridade social.”

A força fundamental por trás das revoltas é uma evidente fratura geracional. Os protestos têm sido protagonizados pelas gerações jovens, que não viveram a ditadura militar (1973-1990). Os jovens também compõem majoritariamente o eleitorado do plebiscito deste domingo: 57,9% não tinham idade para votar no referendo de 1988 ou nem sequer haviam nascido. “Os que têm entre 18 e 34 anos se sentiram menos assustados que os mais velhos quando começaram as revoltas de outubro, participaram mais dos protestos e consideram em maior medida que a democracia chilena funcional mal ou muito mal, mas são mais otimistas em relação ao futuro”, explica Carmen Le Foulon, do Centro de Estudos Públicos (CEP), que realizou em dezembro uma das pesquisas que melhor retratam as complexidades da explosão social. “[Esses jovens] se informam sobretudo pelas redes sociais e reconhecem mais o uso da violência do que os mais velhos: 15% justificam a participação de barricadas e os destroços.”

Panela de pressão

O sociólogo Manuel Canales, professor da Universidade do Chile, alertou há pelo menos 15 anos, em seus textos, sobre a “panela de pressão” que estava esquentando no Chile. “Era observável que podia haver uma reação popular muito forte, porque percebia-se muita dor em meio ao êxito.” Canales explica que houve um período inicial em que o regime de sociedade iniciado no final dos anos setenta alcançou uma conformidade por sair da pobreza e começar a consumir, o que significou um marco que orientou boa parte da transição.

“Mas essa conformidade por sair da pobreza durou enquanto durou, e em 2005 os filhos dessa geração começaram a manifestar seu cansaço das promessas”, diz o acadêmico chileno. Para Canales, “é uma geração sem medo e um coletivo que não fala a partir da pobreza, e sim em nome de um direito”. “Quando ressoa a frustração do dia a dia, porque esta vida não era a prometida, vem a fome. Os que protagonizam essas revoltas, portanto, são os filhos da promessa da felicidade.” O sociólogo explica que não se trata de um mal-estar de um povo que satisfez suas necessidades básicas e depois se propôs novas necessidades que não pôde realizar. “Trata-se de um povo que fez um projeto e investiu sua vida para alcançá-lo, e que fez isso nos termos institucionais que impusemos, mas a prosperidade não chegou.”

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