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Eleições dos EUA empurram Bolsonaro para dilema entre pragmatismo e radicalização na política externa

Vitória de Joe Biden pode isolar o país ao mesmo tempo em que reforça base mais radical do bolsonarismo. Vitória de Trump representaria continuidade de relação tida como de submissão

Donald Trump recebe o presidente Jair Bolsonaro para um jantar em Palm Beach, Flórida, em março deste ano.
Donald Trump recebe o presidente Jair Bolsonaro para um jantar em Palm Beach, Flórida, em março deste ano.Tom Brenner (Reuters)
Felipe Betim

Terça-feira, 29 de setembro. Noite de debate nos Estados Unidos entre o presidente Donald Trump, que busca a reeleição no próximo 3 de novembro, e o ex-vice-presidente centrista Joe Biden. Ao falar sobre meio ambiente, o democrata disse que mobilizaria "o hemisfério e o mundo para prover 20 bilhões de dólares para o Brasil não queimar mais a Amazônia”, sob o risco de que o país “enfrente consequências econômicas significativas”. A resposta do presidente Jair Bolsonaro veio ainda naquela madrugada via Twitter: “O que alguns ainda não entenderam é que o Brasil mudou. Hoje, seu presidente, diferentemente da esquerda, não mais aceita subornos, criminosas demarcações ou infundadas ameaças. NOSSA SOBERANIA É INEGOCIÁVEL”, afirmou em uma das postagens. “Custo entender, como chefe de Estado que reabriu plenamente a sua diplomacia com os Estados Unidos, depois de décadas de governos hostis, tão desastrosa e gratuita declaração. Lamentável, sr. Joe Biden, sob todos os aspectos, lamentável”.

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O embate à distância entre Bolsonaro e Biden é um ensaio sobre os dilemas que o Governo brasileiro terá de enfrentar em caso de vitória do democrata. Bolsonaro inaugurou uma política externa baseada num alinhamento automático e submisso aos Estados Unidos de Trump, algo não visto sequer quando os militares tomaram o poder com respaldo norte-americano em 1964. O presidente brasileiro aposta publicamente suas fichas na reeleição do republicano e na continuidade dessa relação tida como submissa. O cenário que se desenha como mais provável neste momento, porém, é o de vitória de Biden, que abriu vantagem nas últimas pesquisas em Estados-chave como Flórida e Pensilvânia. De acordo com três especialistas consultados pelo EL PAÍS, Bolsonaro deverá optar por uma relação de pragmatismo com Biden ou elevar o tom contra a sua administração, levando o Brasil ao completo isolamento na comunidade internacional.

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Os especialistas concordam que, por um lado, existe o interesse tanto de Biden como de Bolsonaro em preservar os interesses empresariais e comerciais entre os dois países —os EUA são o segundo maior importador de produtos brasileiros, atrás apenas da China. Ao mesmo tempo, do ponto de vista geopolítico, o Brasil é um importante ator para frear a influência chinesa na América Latina. “Independentemente do vencedor, é plausível que Bolsonaro tentará usar a licitação do 5G para ter uma alavancagem na Casa Branca, como deu a entender em seu discurso na ONU”, explica Matias Spektor, especialista em política externa brasileira e professor de Relações Internacionais da FGV São Paulo. Ele lembra, porém, que setores agronegócio e da indústria que formam parte da base bolsonarista sofreriam caso as relações com o gigante asiático acabem estremecidas. O ponto de equilíbrio não é simples de ser encontrado.

Os pesquisadores consultados também concordam que uma vitória de Biden levará para o centro da diplomacia e da política doméstica a pauta ambiental, com a provável volta dos Estados Unidos para o Acordo de Paris. Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV São Paulo e colunista do EL PAÍS, recorda que Bolsonaro “atua de maneira estridente” quando o assunto é meio ambiente e queimadas na Amazônia. E que a pressão do partido democrata sobre Biden será muito grande. “Conversei com assessores de política externa de Biden. Eles desejam uma relação pragmática, mas dizem não está em suas mãos por causa da forma de agir de Bolsonaro. Podemos entrar num cenário de embate parecido com o que ocorreu com [o presidente francês Emmanuel] Macron”.

O negacionismo e a retórica agressiva de Bolsonaro com relação às queimadas da Amazônia levaram o Brasil a um inédito isolamento na comunidade internacional, coroado pela recente revés do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul ―o Parlamento europeu aprovou uma resolução que rejeita o pacto a menos que haja mudanças na agenda ambiental de países do Mercosul. Porém, Carlos Gustavo Poggio, americanista e professor de Relações Internacionais da FAAP, opina que o presidente acabará cedendo e moderando o discurso. “A curto prazo acredito que uma vitória de Biden geraria atrito, sim, mas a longo prazo é provável que o Brasil tenha um surto de pragmatismo também na arena internacional”, explica Poggio. Ele afirma que em Brasília já se discute a substituição do chanceler Ernesto Araújo. “Internamente temos indícios de certa reorientação do Governo, com sua aproximação com o Centrão. Acho que uma vitória de Biden sacramenta essa reorientação”.

O presidente brasileiro também vem se alinhando a ditaduras, como a da Arábia Saudita, nos fóruns de Direitos Humanos, além de ser alvo de várias denúncias. Até já se desentendeu com países como França, Alemanha e Argentina. Spektor e Stuenkel não descartam uma guinada ainda mais radical, o que certamente elevará o isolamento do Brasil. “Se Biden, pelo motivo que for, sair batendo em Bolsonaro, sua reação vai ser se defender. E ele não vai se defender mudando a política ambiental, vai se defender atacando”, explica Spektor.

Além disso, existe a necessidade de manter uma base bolsonarista radical, e cada vez mais insatisfeita com o pragmatismo do presidente na política interna, coesa. “A política externa brasileira existe, hoje, para animar essa base. Mesmo o custo sendo alto para o Brasil, internamente não é ruim para Bolsonaro ficar isolado na arena internacional”, explica Stuenkel. Ele destaca que, na Turquia, impera a retórica do Governo Recep Erdogan de que existe uma conspiração internacional contra o país. Ao mesmo tempo, mesmo se Trump perder, o trumpismo deve se manter como movimento político forte nos EUA, havendo pressão dos radicais para que o Brasil se alinhe à oposição norte-americana. “A narrativa de que o mundo é perigoso, que os globalistas tomaram a Casa Branca, é muito atraente em termos eleitorais. Infelizmente a gente precisa se preparar pra esse cenário de isolamento bem mais amplo do Brasil”, acrescenta.

Seja como for, com Trump ou Biden ganhando, com Bolsonaro sendo mais pragmático ou mais radical, levará anos para que o Brasil reconstrua sua imagem na comunidade internacional. “Reputação dos países segue a lógica da reputação das pessoas. Leva décadas pra construir, e um instante para destruir. E o tema ambiental ganhou muita importância. Os efeitos das mudanças climáticas estão mais vivos, e o Brasil mudou uma agenda de mais de 30 anos no pior momento possível”, argumenta Spektor. “Nossa imagem já está queimada no mundo, isso já não tem volta. A ideia de um chefe de Estado mitômano já está consolidada no resto do planeta”.

Vitória de Trump e resultados contestados na Justiça

Caso Trump ganhe, os especialistas acreditam que o Brasil poderia continuar fazendo proselitismo na arena internacional enquanto se escuda nos Estados Unidos. “O mundo vai estar muito preocupado com os Estados Unidos e o Brasil não vai estar no holofote”, opina Stuenkel. O problema é que mesmo essa relação aparentemente fluída com o republicano tem suas armadilhas. “É uma relação assimétrica, o chanceler Ernesto Araújo já disse a diplomatas norte-americanos que o Brasil fará tudo o que eles quiserem. O Brasil se colocou numa situação muito frágil de conseguir negociar”, afirma.

Para Poggio, a aproximação com os Estados Unidos é legítima, "mas foi feita de forma equivocada e amadora, dando as costas para o Partido Democrata”. As promessas de Trump de assinar um acordo comercial com o Brasil precisam necessariamente passar pelo Congresso norte-americano, e tudo indica que os democratas sairão fortalecidos das próximas eleições. “O Brasil não construiu pontes suficientes com a sociedade americana nem com o Congresso, incluindo republicanos e democratas”, acrescenta o professor.

No horizonte das eleições está ainda a possibilidade de que Biden ganhe em número de votos, mas perca nos colégios eleitorais. Ou de que, diante de um resultado apertado, Trump não reconheça sua derrota, como já deu a entender, e entre na Justiça para anular os votos por correio. Analistas acreditam que as instituições norte-americanas podem sair arranhadas e questionadas pela população de todo esse processo. Poderia abrir o caminho para que Bolsonaro e outros movimentos de extrema direita radicalizem ainda mais no âmbito doméstico?

Apesar dos impactos negativos no cenário internacional, com a normalização da política trumpista, os impactos ainda não estão claros. Em primeiro lugar, os atuais autoritarismos de extrema direita seguem lógicas e dinâmicas locais, explica Spektor. E, apesar das semelhanças táticas entre esse líderes populistas, a ideia de uma coalizão transnacional aventada pelo ideólogo norte-americano Steve Bannon não saiu do papel. “Trump nunca apostou nisso, ele não hesita em jogar aliados no caldeirão", argumenta o professor, para quem também não está claro que o republicano faria um segundo mandato ainda mais radical, como preveem analistas. Seu foco, explica, deverá ser nomear aliados para cargos da Justiça norte-americana. Uma vez fora da presidência, precisa escapar de processos judiciais. “Trump e Bolsonaro começaram radicais já no primeiro mandato. Eles não precisam de moderação no início, moderação é o que os enfraquece”.

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