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A jovem que se infiltra dentro das redes dos grupos de extrema direita na Europa

A investigadora Julia Ebner, de 29 anos, relata em seu livro ‘Going Dark: The Secret Social Lives of Extremists’ as suas incursões secretas e alerta para os grupos extremistas e jihadistas

Um partidário do presidente Donald Trump ergue uma bandeira com referência ao movimento extremista QAnon, durante manifestação este ano.
Um partidário do presidente Donald Trump ergue uma bandeira com referência ao movimento extremista QAnon, durante manifestação este ano.CARLOS BARRIA (REUTERS)
Guillermo Altares

No maior festival de música neonazista da Europa, chamado Schild & Schwert (Escudo & Espada), que acontece na fronteira entre a Alemanha e a Polônia, usar o calçado errado pode representar um problema muito sério. Esperando na fila para entrar, Julia Ebner, uma investigadora especializada em se infiltrar em grupos radicais, olhou para seus pés e percebeu que era a única sem o logotipo N da New Balance, uma marca de tênis norte-americana cujo dono apoiou Donald Trump em 2016 e que, desde então, tornou-se o calçado preferido dos extremistas de direita de meio mundo - com direito a todo o tipo de lendas urbanas, completamente alheias à empresa. Ela estava usando Adidas branco. Felizmente, ninguém reparou neles.

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O trabalho de Ebner requer não só coragem e paciência, necessária para para escutar durante um fim de semana bandas como Burning Hate, Painful Life e Terrorsphära, com suas letras delirantes dedicadas à luta do povo ariano pela sobrevivência. Também é necessário um profundo conhecimento de códigos sutis compartilhados por grupos radicais em todo o mundo, sejam da extrema direita ou jihadistas. Uma palavra, um sapato, até mesmo um gesto pode denunciar o estranho e destruir toda a operação. Ou pior. Em seu primeiro livro, Going Dark: The Secret Social Lives of Extremists, Julia Ebner relata essa aventura do outro lado do espelho do radicalismo. O livro, que inclui no prólogo o partido espanhol Vox como membro dessa galáxia conspiratória e paranoica, narra vários anos de monitoramento desses grupos, dentro e fora da rede, um período em que os ultradireitistas e neonazistas de todos os tipos cresceram em número de apoiadores e periculosidade.

“Passo muitas horas monitorando seus canais, estudando que tipo de códigos e linguagem eles usam e a maneira como se comunicam”, explica Ebner (nascida em Viena, em 1991), falando de Londres por videoconferência. “Aquele festival neonazista é um exemplo muito claro, porque eles compartilham códigos culturais bem estabelecidos, que dizem respeito não só à maneira de se vestir, mas também à música de que gostam, os hobbies. Eles veem os mesmos vídeos do YouTube. Os tênis eram um exemplo, mas eu também sabia que precisava citar certos livros e filmes e não mencionar outros que eles consideram que fazem parte da conspiração de Hollywood para controlar o mundo. É muito importante que as forças de segurança venham a controlar essas linguagens e compreender os sinais de que pode ocorrer um ataque, de que algo é realmente perigoso.”


A investigadora austríaca Julia Ebner, em Londres
A investigadora austríaca Julia Ebner, em LondresRafa de Miguel

Quase sempre pela Internet ― embora outras vezes ao vivo, como naquele festival neonazista na Alemanha ―, a profissão de Ebner consiste em monitorar para o Instituto para o Diálogo Estratégico, com sede em Londres, todo tipo de grupos radicais, e esquadrinhar seus chats e suas páginas na Internet sem ser detectada, para escrever relatórios e também alertar governos e instituições internacionais sobre o que está sendo tramado ali.

No início, ela se concentrava principalmente nos jihadistas, mas seu trabalho se voltou para grupos de extrema direita, cada vez mais ativos e ameaçadores, que são o foco de seu livro. Os massacres em Utoya (Noruega) em 2011 e Christchurch (Nova Zelândia) em 2019 demonstraram que os assassinos usavam a mesma linguagem, os mesmos mitos e delírios antissemitas e islamofóbicos, como a teoria da grande substituição, que as pessoas que se envolvem no movimento mas que nunca recorreriam à violência física.

Essa é precisamente a parte mais difícil de suas investigações: distinguir um fanfarrão asqueroso de um possível terrorista. “Nem sempre é fácil separar o trolling do possível terrorismo, o que representa algo como um jogo da ideologia extremista que pode levar ao terrorismo ou a incitação à violência”, observa Ebner. "A alt-right (a extrema direita dos EUA) se especializou em esconder perigosas campanhas de radicalização por trás do que parecem ser piadas quase inocentes. É preciso entender as pequenas nuances.

O mesmo aconteceu no caso do Estado Islâmico, e também quando a Al Qaeda começou a atacar: os serviços de segurança passaram a entender a linguagem dos jihadistas, a entender quando a ameaça era grave. Descobrir, por exemplo, quais citações do Alcorão indicavam um possível uso da violência. O mesmo tem que ser feito com a alt- right. E esse perigo só começou a ser levado a sério depois dos ataques em Christchurch, em El Paso e Halle.

No livro de Ebner aparecem conversas em chats com pessoas obcecadas em confinar as mulheres em papéis tradicionais, obcecadas com o perigo representado pelo feminismo (um dos muitos pontos em que os islamistas radicais e os de extrema direita concordam), com a suposta conspiração judaica mundial, com os direitos LGTBI ou com a já citada “grande substituição”, que Ebner define como “uma ideia que surgiu na França e que sustenta que as populações brancas estão sendo substituídas por imigrantes”.

“Um dos maiores perigos é que se trata de uma teoria da conspiração que assume que existe uma ameaça existencial contra a população ocidental e que é iminente”, acrescenta. O outro perigo dessas teorias é que muitas vezes são citadas por fanáticos perigosos, mas também por partidos políticos com representação parlamentar - como o Vox, Governos como os da Hungria e Polônia e o presidente dos EUA, Donald Trump. “Eu diria que algumas das ideias extremistas que vemos hoje estavam à margem da sociedade alguns anos atrás e agora são moeda comum, até no espaço político, nos parlamentos e nos Governos. Políticos do Vox, por exemplo, tuitaram sobre a grande substituição. Eles ecoam as mesmas teorias da conspiração que alguns meses depois alimentaram ataques contra muçulmanos. Enfrentamos dois perigos: há uma ameaça contra nossas democracias porque essas ideias entraram em nosso espaço político e podem influenciar o futuro de nossas sociedades; e com tanto incentivo por parte de alguns grupos políticos, tiveram uma enorme difusão em públicos que antes não alcançavam.”

Um exemplo claro, explica a pesquisadora, é tudo o que está acontecendo com a pandemia em torno do chamado QAnon, uma teoria da conspiração que mistura supostas orgias de pedófilos, com a covid-19, o 5G e o controle mental, que inundou as redes sociais nos últimos meses. E esse é precisamente o outro grande problema que seu livro aponta: grande parte desse material repugnante e perigoso é preparado nas redes sociais antes de saltar para os chats privados e para as profundezas da internet.

A grande vitrine de tudo isso é pública, sem que os responsáveis por essas redes façam grandes esforços para detê-la. “A forma como o Facebook funciona e o modo como a plataforma está desenhada prioriza conteúdos mais extremos, mais radicais e mais incríveis, teorias de conspiração ou conteúdos violentos ou de ódio, porque o objetivo é captar a nossa atenção e aumentar tanto quanto possível o tempo que passamos na plataforma. E, infelizmente, os conteúdos violentos e radicais atraem muito a atenção.”

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