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Um presidente linguarudo como Trump, um jornalista ganhador do Pulitzer e 18 conversas explosivas

‘Rage’, novo livro de Bob Woodward, em que o líder republicano admite ter mentido sobre a pandemia, provocou uma tempestade que não poupou nem o autor

O presidente Donald Trump se dirige à imprensa antes de embarcar no ‘Air Force One’, na base aérea Andrews, em Maryland, na quinta-feira passada.
O presidente Donald Trump se dirige à imprensa antes de embarcar no ‘Air Force One’, na base aérea Andrews, em Maryland, na quinta-feira passada.MANDEL NGAN (AFP)
Amanda Mars
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Se juntarmos um presidente narcisista e linguarudo com uma lenda do jornalismo em 18 conversas sem meias palavras, teremos um reboliço monumental, como o causado nesta semana pela divulgação de trechos do novo livro de Bob Woodward. Rage (“raiva”), a segunda obra sobre a Administração de Donald Trump escrita pelo duas vezes ganhador do prêmio Pulitzer, relata episódios alarmantes do Governo norte-americano, desta vez em meio à pior crise econômica e sanitária em 100 anos. E com o testemunho direto do próprio Trump. A principal bomba informativa de suas páginas tem a ver com uma pandemia que já matou mais de 193.000 pessoas nos Estados Unidos. Nem o famoso repórter se livrou da tempestade de críticas.

O livro de Woodward revela que Trump sabia que o coronavírus era letal e passou semanas enganando a população deliberadamente a respeito disso. Ao mesmo tempo em que o presidente dizia nas entrevistas coletivas coisas como “praticamente o paramos” (2 de fevereiro), “um dia desaparecerá, como por milagre” (27 de fevereiro) e “nada fecha por causa da gripe” (9 de março), revelava uma verdadeira preocupação em suas conversas com o jornalista.

“Você simplesmente respira e se contagia”, disse Trump a Woodward num diálogo em 7 de fevereiro. “E isso é muito complicado. É muito delicado. É mais fatal inclusive que uma gripe intensa. É algo letal.” Em outra, em 19 de março, admitiu que minimizava o problema: “Sempre quis minimizar a importância. Ainda gosto de minimizar a importância, porque não quero criar pânico”. Já em 28 de janeiro, segundo o livro, o assessor de Segurança Nacional Robert O’Brien tinha advertido ao presidente de que esta seria “a maior ameaça de segurança nacional” da sua presidência.

O ambíguo discurso do mandatário – conhecido além do mais de forma impactante, pessoalmente da boca do presidente, pois o The Washington Post publicou trechos gravados das entrevistas – causou estupor a menos de dois meses das eleições presidenciais. O republicano se defendeu tentando desviar a atenção para o jornalista: “Bob Woodward teve minhas declarações durante meses. Se ele achava que eram tão más ou perigosas, por que não informou sobre elas imediatamente a fim de salvar vidas? Não tinha obrigação? Não, porque ele sabia que eram respostas corretas. Calma, nada de pânico!”, escreveu em sua conta do Twitter.

O autor, de 77 anos, elevado ao Olimpo do ofício desde muito jovem por revelar o caso Watergate junto a Carl Bernstein, recebeu as mesmas críticas vindas de outros âmbitos. Jeff Jarvis, consultor de mídia e professor de Jornalismo da City University de Nova York, foi muito duro em uma mensagem na mesma rede social: “Bob Woodward violou o primeiro dever do jornalismo: servir ao público. Em seu silêncio, é cúmplice dos assassinatos de Trump. Deveria renunciar aos seus Pulitzer. Já não é um jornalista. O jornalismo é um serviço público, não uma fábrica de livros ou jornais”. David Boardman, chefe do Departamento de Jornalismo da Universidade Temple, e ex-diretor do Seattle Times, refletiu por sua vez que “esta questão surgiu com frequência ultimamente, já que os jornalistas guardam informações importantes para seus livros. Na situação de vida e morte de hoje, esta prática tradicional ainda é ética?”.

Woodward respondeu em declarações a Margaret Sullivan, a analista de Mídia do The Washington Post, que sua missão no livro era oferecer um contexto mais amplo que o das notícias habituais e, sobretudo, que informar naquele momento sobre o que o presidente lhe dizia acarretaria dois problemas. Primeiro, que levou meses para saber de onde procedia a informação que este lhe dava (a reunião de inteligência de alto escalão) e, segundo, que em se tratando de Trump achava difícil saber se o que ele diz é verdade.

Por volta do mês de fevereiro, recorda o jornalista, o próprio infectologista Anthony Fauci, especialista de referência na Casa Branca, também dizia ao público que não era preciso modificar hábitos.

Tampouco publicou essas conservações mais adiante ― há três ou quatro meses, por exemplo ― porque procurava oferecer uma fotografia mais completa, conforme alega, e o limite, em todo caso, eram as eleições presidenciais de 3 de novembro, pois as pessoas precisam tirar suas conclusões antes de votar. “Sabia que podia escrever o segundo rascunho da história”, disse no Post, parafraseando o ex-editor Phil Graham, que chamou o jornalismo de “o primeiro rascunho da história”.

A mesma polêmica surgiu também com as recentes memórias de John Bolton, ex-assessor de Segurança Nacional, e com um livro de um repórter do The New York Times, Michael Schmit, como resultado das investigações da trama russa.

David Remnick, diretor da revista The New Yorker, salienta que “o ocupante de um cargo executivo com a função de salvar vidas era e é Donald Trump, não Bob Woodward”. Margaret Sullivan, por sua vez, aponta que não está clara a diferença que faria a publicação da informação meses atrás, pois elas poderiam perfeitamente ser desmentidas e esquecidas na voragem de notícias e escândalos que caracterizam a era Trump. “Mesmo assim”, conclui, “a mínima possibilidade de que essas revelações tivessem podido salvar vidas é um poderoso argumento contra esta espera”.

As gravações serão munição de primeira para os democratas durante a campanha. O candidato presidencial Joe Biden acusou Trump de “traição ao povo norte-americano em uma questão de vida ou morte”.

Rage, que começa a ser vendido na terça-feira, revela outros aspectos difíceis, como os comentários degradantes de Trump aos seus generais ou como um destes, o ex-chefe do Pentágono Jim Mattis, considerava-o “perigoso” para os Estados Unidos.

A outra grande pergunta de fundo trazida por este episódio é como o mandatário se prestou a falar tanto com um jornalista famoso por invadir as intimidades dos Governos e fazer descrições microscópicas. A resposta se encontra na vulcânica personalidade de Trump, seu amor e ódio pela imprensa, seu vício nos holofotes, a vaidade de falar com alguém tão respeitado como Woodward. Assim haviam feito Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama. O magnata não só respondeu às perguntas do veterano repórter como também lhe deu um número telefônico direto para que o autor pudesse deixar mensagens, que o presidente responderia. Em pelo menos uma ocasião essa resposta chegou à noite, quando provavelmente não havia assessores por perto.

Bob Woodward é alguém que respeito de ter ouvido seu nome por muitos anos, não conheço muito seu trabalho”, disse na quinta-feira na Casa Branca, “Fiz [as entrevistas] por curiosidade… Fico me perguntando se alguém assim pode escrever bem. Não acredito que possa, mas veremos o que acontece”. Assim surgiu este “segundo rascunho da história” que Woodward estava procurando.

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