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Visita de Trump a Kenosha agita o conflito racial

Presidente viaja à cidade que foi palco dos protestos raciais apesar das objeções das autoridades locais

Pablo Guimón
Manifestantes em Kenosha durante a visita de Trump.
Manifestantes em Kenosha durante a visita de Trump.MANDEL NGAN (AFP)

Apesar das objeções das autoridades locais, Donald Trump decidiu levar nesta terça-feira sua mensagem de “lei e ordem” à cidade de Kenosha, em Wisconsin, palco da última erupção de protestos por justiça racial que desembocaram em violentos distúrbios durante três noites na semana passada. Mas sua recusa a condenar a violência de seus seguidores e o contra-ataque contundente de seu adversário democrata semeiam dúvidas na estratégia de sedução do eleitor moderado por parte de um presidente que, diante de episódios violentos, renuncia ao tradicional papel de chamar à unidade e curar as feridas.

“Irei lá pela polícia e pela Guarda Nacional, porque fizeram um ótimo trabalho em Kenosha. Apagaram a chama imediatamente”, disse Trump antes de embarcar no Air Force One e seguir para Wisconsin. Ao chegar à cidade de 100.000 habitantes às margens do Lago Michigan, visitou as ruínas de um edifício incendiado durante os tumultos e se reuniu com os proprietários de uma loja de móveis vandalizada. Também se encontrou com xerifes locais e políticos republicanos, diante dos quais insistiu nas críticas aos seus adversários democratas. “Os temerários políticos de extrema esquerda continuam apoiando a mensagem destrutiva de que nossa nação e nossa polícia são opressoras e racistas”, disse.

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U.S. President Donald Trump responds to questions from members of the news media during a news conference at the White House in Washington, U.S., August 31, 2020. REUTERS/Leah Millis
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Em 23 de agosto, em Kenosha, um policial disparou sete vezes pelas costas no afro-americano Jacob Blake, que continua hospitalizado. O acontecimento reacendeu a chama dos protestos por justiça racial que varreram o país durante o verão [no hemisfério norte], depois da morte de George Floyd nas mãos da polícia. Durante as primeiras noites, as cenas de vandalismo e pilhagem se repetiram. Na terça-feira, depois do chamado das milícias cidadãs pedindo pessoas armadas para por ordem na cidade, um jovem de 17 anos, apoiador de Trump, apresentou-se com um fuzil de assalto e acabou acusado de seis crimes, entre eles dois homicídios. Na véspera de sua visita a Kenosha, o presidente defendeu o jovem, sugerindo que agiu em legítima defesa.

Nas últimas semanas, o presidente transformou a mão dura contra os distúrbios na mensagem central de sua campanha. Desejoso de desviar a atenção da crise do coronavírus, Trump confia que o alarme sobre o suposto caos que reinaria nas cidades se vencer em novembro o democrata Joe Biden, a quem acusou sem base na semana passada de se alinhar com os “anarquistas” e os “desordeiros”, repercutirá em um eleitorado moderado que parecia escapar-lhe nos últimos meses.

Para o governador democrata de Wisconsin, Tony Evers, que mobilizou a Guarda Nacional para sufocar os tumultos, a visita de Trump só pode alimentar tensões que já estavam em vias de diminuir. “Estou preocupado que sua presença só prejudique nosso processo de cura”, escreveu ao presidente em uma carta na segunda-feira. “Estou preocupado que sua presença só atrase nosso trabalho para superar as divisões e avançar juntos.”

O prefeito de Kenosha, o também democrata John Antaramian, se pronunciou na mesma linha. “O senhor tem uma comunidade que está no processo de tentar se curar”, disse em uma entrevista coletiva na segunda-feira. “Muitas coisas aconteceram nesta comunidade. Simplesmente me parece, assim como a outros, que seria melhor para nós poder unir esforços, permitir que a comunidade se una e realmente curar as feridas.”

Mas o presidente Trump ignorou os pedidos e negou que sua visita pudesse recrudescer as tensões. “Bem, também poderia aumentar o entusiasmo, o amor e o respeito pelo nosso país”, disse em uma entrevista coletiva na segunda-feira. À noite, em entrevista à Fox News, aumentando ainda mais a temperatura da visita, o presidente comparou os policiais que atiram nos cidadãos com golfistas que ficam nervosos e erram uma tacada fácil. “Podem fazer 10.000 boas ações, que é o que fazem, e um erro”, disse. “Ficam nervosos, como em um campeonato de golfe, e erram uma tacada de um metro.”

Coincidindo com a visita do presidente, aconteceu uma “celebração comunitária”, organizada pela família de Blake no lugar onde foi baleado, que prometia “música, comida, cortes de cabelo grátis, convidados famosos e limpeza da comunidade”. O presidente não tinha previsto se reunir com os familiares de Blake. A celebração rivalizou com o ruído dos helicópteros que sobrevoaram Kenosha durante a manhã. Os veículos blindados da polícia voltaram às ruas. A visita do presidente acarretou o fechamento de ruas e a interrupção do serviço de trens que liga a cidade a Chicago.

A visita de Trump a Kenosha foi uma jogada política arriscada, que alguns republicanos temem que possa acabar tendo um efeito negativo em sua campanha. Sua defesa de um adolescente acusado de homicídio e sua recusa em condenar atos violentos perpetrados pela extrema direita enfraquecem sua posição no debate sobre segurança, no qual o presidente apostou sua reeleição. Tradicionalmente, os presidentes que visitam cidades atingidas por violência e conflito assumem um papel de conforto e fazem apelos à unidade. Mas as ações de Trump nas horas anteriores à visita indicam, pelo contrário, sua intenção de transformar os acontecimentos de Kenosha em uma arma de divisão política.

A mensagem de alarme e o retrato de Biden como radical anti-polícia que conseguiu transmitir com quase nenhuma contestação na semana passada, com a cidade ainda abalada pelos tumultos, não só está perdendo eficácia ao fazer aflorar seu componente divisor, como também está sendo respondida com força. Depois de condenar claramente os violentos distúrbios, seu adversário democrata, Joe Biden, acusou Trump de não conseguir deter uma violência que “fomentou durante anos”. Depois da visita do presidente Biden divulgou um comunicado no qual arremeteu novamente contra seu adversário por se recusar a condenar a violência de seus seguidores. “Ele não está apto para ser presidente e sua preferência por mais violência, em vez de menos, é clara”, disse Biden. Na terça-feira, o presidente do Comitê Nacional Democrata, Tom Perez, afirmou que Biden planeja visitar Kenosha “assim que for possível” e criticou a viagem do presidente à cidade, que qualificou de tentativa de alimentar o ódio.

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