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Reconstrução da noite em que um adolescente matou duas pessoas em Wisconsin

K. R., de 17 anos, tinha abandonado a escola e queria ser policial. Foi a Kenosha para pôr fim aos protestos antirracistas. A polícia não o obrigou a se identificar, apesar de estar com um fuzil

Fotograma de um vídeo de K. R., durante a noite do tiroteio.
Fotograma de um vídeo de K. R., durante a noite do tiroteio.
Pablo Guimón

“O segredo mais bem guardado de Antioch, Illinois”. A frase, um slogan publicitário deste “bonito e agradável condomínio de apartamentos ajardinados”, em uma cidade a meio caminho entre Chicago e Milwaukee, ganhou um novo significado dramático na terça-feira. Em um desses seis blocos de prédios marrons de dois andares, em um apartamento de dois cômodos, morava com sua mãe K. R., um garoto de 17 anos que conseguiu chegar armado à cidade vizinha com o objetivo de restabelecer a ordem e abriu fogo com seu fuzil de assalto, ao se sentir acuado, matando duas pessoas e ferindo outra que estava de pé, com as mãos ao alto.

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KENOSHA, WISCONSIN - AUGUST 26: Demonstrators protest the shooting of Jacob Blake on August 26, 2020 in Kenosha, Wisconsin. A police officer shot Blake seven times in the back in front of his three children. The shooting sparked three consecutive days of rioting in the city.   Scott Olson/Getty Images/AFP
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O adolescente foi preso às 5h da quarta-feira em seu apartamento em Antioch e levado para o centro de detenção juvenil do condado de Lake, Illinois, onde aguarda transferência para Wisconsin. Será julgado por seis crimes, incluindo um de homicídio culposo de primeiro grau, um homicídio doloso de primeiro grau e ainda uma tentativa de homicídio de primeiro grau.

Nesta quinta-feira foi retirado o cordão policial que o protegia na véspera, “o segredo mais bem guardado de Antioch” estava deserto. Um homem saiu de um carro para pedir ao visitante que fosse embora: “Deixem-nos viver em paz”. “Este país enlouqueceu e desta vez a loucura nos atingiu no nosso quintal”, resumia uma mulher, que não quis dizer seu nome, enquanto se afastava com uma amiga para um parque ao lado, vestida com roupa esportiva.

“Cidadãos armados” eram necessários. “A polícia está em menor número e nosso prefeito fracassou. Peguemos em armas e defendamos nossa cidade!”, escreveu nas redes sociais um grupo autodenominado Guarda de Kenosha. A cidade, a apenas 25 quilômetros de Antioch, estava repleta de incêndios na terceira noite de protestos depois que um policial branco atirou no afro-americano Jacob Blake sete vezes nas costas, enquanto três de seus filhos viam tudo do carro.

Na terça-feira o adolescente atendeu ao chamado. O rapaz adora a polícia. Ele se inscreveu como cadete em um programa para adolescentes que querem ser policiais. Em uma foto de seu perfil do Facebook aparecia sorrindo, segurando seu fuzil semiautomático ao lado de um amigo também armado, cercados pela legenda: “Dever. Honra. Coragem. As vidas azuis importam”. É um slogan que surgiu em resposta ao movimento contra a injustiça racial Black Lives Matter e que muda a cor preta para o azul do uniforme policial.

Assim, quando ele leu que a polícia precisava de ajuda, colocou no carro seu fuzil de assalto e um kit de primeiros socorros e se dirigiu para Kenosha. Passou pelos distritos industriais de Antioch. Deixou para trás a escola que abandonou, a Lakes Community High School, em cuja entrada quatro grandes bandeiras norte-americanas tremulavam a meio mastro nesta quinta-feira, e onde sua mãe, uma auxiliar de enfermagem, pediu uma ordem de proteção para ele em janeiro de 2017 porque um colega de classe o chamava de “babaca” e “estúpido” e ameaçava feri-lo.

O seu primeiro destino quando chegou a Kenosha na terça-feira foi outra escola, no centro da cidade, na qual foi visto limpando os destroços causados na parte da frente pelos distúrbios na noite anterior. O que acontece depois disso pôde ser reconstituído pelo Ministério Público graças a dezenas de vídeos de testemunhas que vieram à luz. Nas gravações se vê adolescente limpando pichações, atendendo pessoas, integrado com membros de vários grupos armados. Não está comprovada a relação do jovem com alguma das milícias que foram para o local agir contra a desordem e que a polícia permitiu que continuassem armadas na rua, apesar do toque de recolher.

Em um vídeo, veem-se policiais em um blindado agradecendo ao adolescente e outros milicianos armados, perguntando se precisam de água e jogando uma garrafa para eles. Em seguida, os mesmos agentes mandam outros civis saírem do local porque “a área é fechada a todos”. Apesar de sua aparência infantil, ninguém lhe pediu a documentação do volumoso fuzil de assalto que carregava, nem se interessou em saber se tinha 18 anos, a idade mínima exigida pelo Estado para a aquisição desse tipo de arma.

Em outro dos vídeos, gravado na parte externa de um estabelecimento vandalizado no dia anterior, adolescente explica em que consiste seu “trabalho”. “As pessoas estão feridas e nosso trabalho é proteger este negócio. Parte do meu trabalho também é proteger as pessoas. Se alguém ficar ferido, correrei o perigo. É por isso que estou com meu fuzil. Também para me proteger, obviamente. Mas também tenho meu kit médico”, diz ele.

A apenas duas quadras de distância fica a Car Source, uma loja de carros usados, que nesta quinta-feira era um dantesco canteiro com dezenas de veículos reduzidos a pedaços de ferro calcinado. Lá, pouco antes da meia-noite, o adolescente entrou em confronto com os manifestantes. Um deles, Joseph Rosenbaum, de 36 anos, jogou um objeto nele. Lutaram. Ouviram-se disparos e Rosenbaum caiu estatelado no chão.

O atirador pegou o telefone e, como se vê em outro vídeo, fez uma ligação. “Acabo de matar alguém”, diz ele. Um grupo de manifestantes foi atrás dele, que saiu correndo pela rua, até que tropeçou e caiu no asfalto. Dessa posição, voltou a abrir fogo. Anthony Huber, de 26 anos, saltou sobre ele, acertou-o com o skate e tentou arrancar-lhe o fuzil. Mas K.R. conseguiu fugir e atirou no peito dele. Huber mal conseguiu dar alguns passos e caiu morto.

Então, K.R., sentado no chão, aponta o fuzil para outro jovem, Gaige Grosskreutz, 26, que também tinha ido atrás dele, mas que ao ver como K.R. tinha matado Huber, deu alguns passos para longe e ficou paralisado, com as mãos ao alto. Apesar disso, o adolescente atirou nele, ferindo-o no braço direito.

K.R. saiu do lugar caminhando de costas e apontando seu fuzil para as pessoas que permaneciam na rua. Outro vídeo o mostra passando, com os braços erguidos e a arma pendurada no ombro, ao lado de um grupo de viaturas da polícia. Acaba de matar duas pessoas, mas ninguém o prende. Só se ouve um agente que fala para ele, pelo megafone: “Você, o do fuzil, não venha por aqui abaixo, está fechado”. K.R. sai caminhando da zona quente de Kenosha e volta em seu carro para casa.

O xerife do condado declarou aos repórteres que o fato de terem dado água aos milicianos armados não implicava uma permissão tácita para agir. “Damos água a todo mundo”, afirmou. “Não precisamos de mais armas nas ruas de nossa comunidade”, disse o prefeito da cidade, John Antaramian. O chefe da Polícia, Dan Miskinis, defendeu que os civis armados estavam lá “exercendo seu direito constitucional”. Alguns grupos de milicianos iniciaram uma arrecadação de fundos online para ajudar na defesa legal de K.R.

Em suas redes sociais, além das armas e da polícia, o jovem mostrou uma terceira paixão: Donald Trump. Ele compartilhou no TikTok imagens em que aparece na primeira fila de um comício de presidente em Iowa em janeiro. “Não somos responsáveis pela conduta privada das pessoas que vêm aos nossos comícios, assim como Obama e Joe Biden não são responsáveis pela dos loucos que vão aos seus”, disse aos repórteres Kellyanne Conway, a conselheira do presidente.

Entre aqueles que continuaram a se reunir para protestar pacificamente nesta quinta-feira, os tiros proferidos pelo adolescente na terça-feira se somaram à revolta pelos disparos de um policial contra Jacob Blake. “Minha mãe não deveria temer pela minha vida”, dizia a faixa carregada por Jane, uma jovem afro-americana da mesma idade do atirador. “Ele não tinha o direito de estar aqui, ninguém pediu para ele vir”, explicou. “Que tipo de país permite que um garoto da minha idade saia com aquela arma na rua? Pense no que teria acontecido se um garoto negro tivesse caminhado naquela noite com aquele fuzil.”

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