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Governo da Bolívia acusa Evo Morales de estupro por relacionamento com jovem, agora acossada pela imprensa

Segundo a imputação apresentada pelo Governo interino, o ex-presidente iniciou um relacionamento com uma adolescente, hoje com 19 anos, quando ela era menor de idade, o que ambos negam. A jovem vive o assédio da mídia após o vazamento de sua identidade pela polícia. Morales aponta "guerra suja"

Imagem de arquivo do ex-presidente boliviano Evo Morales.
Imagem de arquivo do ex-presidente boliviano Evo Morales.Mario De Fina (Reuters)
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BRA.01 RECIFE (BRASIL), 17/08/2020.- Vista de la fachada del Centro Integrado de Salud Amaury de Medeiros (CISAM) de Recife, una clínica materna pública de referencia en el país para procedimientos de interrupción de embarazo, hoy en Recife (Brasil). La interrupción del embarazo de una niña de 10 años, fruto de supuestos abusos familiares, ha reavivado la polémica sobre el aborto en Brasil, un país con una restrictiva legislación para esa prácticaEFE/Waldheim Montoya
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O embate do Governo interino da Bolívia contra Evo Morales passou das acusações por terrorismo e rebelião para outras envolvendo a vida sexual do ex-presidente boliviano. Há duas semanas, circulam nos meios de comunicação do país as fotos, mensagens de texto e até passagens aéreas supostamente usadas por uma adolescente de 19 anos, Noemí M., para visitar Evo Morales tanto no México como na Argentina, onde o ex-presidente permanece exilado. Na quinta-feira, depois de praticamente toda a Bolívia já ter visto o rosto da jovem, o Governo de Jeanine Áñez abriu um processo contra o ex-presidente por estupro, abuso sexual e tráfico de pessoas. Evo Morales, que nega as acusações de estupro, classificou as acusações de “guerra suja” com fins eleitorais.

A ação alega que o relacionamento começou há um número indeterminado de anos, quando ela era menor de idade. A adolescente se tornou uma vítima colateral do ataque político e judicial contra o ex-mandatário. O ministro da Justiça, Álvaro Coímbra, havia antecipado que abriria novos processos contra o ex-presidente por fatos similares. Nesta segunda-feira, o Governo interino anunciou a apresentação de uma nova denúncia de estupro contra Morales por um suposto relacionamento que ele manteve em 2015 com uma jovem de 15 anos, a qual teria tido uma filha do ex-mandatário.

Após dias com o rosto de Noemí nos meios de comunicação da Bolívia, na quinta-feira vazou à imprensa o depoimento prestado pela jovem à Força Especial de Luta Contra o Crime, o braço inquiridor da polícia boliviana, em que admite manter um relacionamento afetivo com Morales, de 60 anos, desde 24 de maio de 2020, quando ela já era maior de idade. A acusação alega que as fotos da adolescente com o ex-mandatário indicam que o relacionamento começou algum tempo antes do que ela declarou.

Segundo a informação oficial, a jovem foi detida com a irmã mais velha e outra pessoa de mesmo sobrenome em 12 de julho, quando saíam de carro da sede de Governo do departamento de Cochabamba, controlado pelo partido de Morales. Este veículo, segundo as autoridades, havia sido cedido à família de Noemí dois anos atrás. O Governo afirma que a detenção ocorreu quando os investigadores procuravam a irmã da adolescente, Gladys, por outro caso, em que Evo Morales é acusado de ter organizado por telefone os bloqueios rodoviários de novembro passado. Gladys era procurada por estar entre os contatos de um dirigente camponês que supostamente coordenou esse protesto. Em seu celular, afirma-se, estavam as fotos de Noemí com o ex-presidente. Ao vê-las, a Polícia interrogou a última e obteve a declaração assinada de que se tornou namorada do ex-presidente após alcançar a maioridade, embora sua amizade com ele já remonte a 2015, quando ela tinha 14 anos.

As datas citadas pelas autoridades foram postas em dúvida. Entre os conteúdos da investigação que vieram a público aparece um registro dos telefonemas de Noemí a um número identificado como o de Evo Morales. Este registro data de 8 de julho, ou seja, quatro dias antes do momento em que, oficialmente, as irmãs foram detidas. Ocorre que ainda antes, em 6 de julho, Noemí escreve a este mesmo telefone: “Estamos detidas”. Nos registros, a pessoa do telefone atribuído a Morales nunca responde por escrito, mas chama insistentemente sem obter resposta.

Logo depois destes fatos, a irmã mais velha foi mandada a uma penitenciária de La Paz, e Noemí foi posta sob prisão domiciliar, da qual escapou para fugir com seus pais para a Argentina. Neste momento, o Governo investiga um militar que foi parte da segurança do ex-mandatário por tê-la ajudado a fugir. Numa carta à Defensoria do Povo da Bolívia, Noemí pediu ajuda nesta sexta-feira por estar “em uma situação muito delicada psicológica e emocionalmente”. Afirma que a detenção ocorreu em sua própria casa, que a polícia a manteve sem comer por dois dias e a obrigou, sob insultos e ameaças, a afirmar que Evo Morales era seu namorado. “Um jornalista com sotaque estrangeiro ameaçou publicar um material que a polícia lhe deu, fotografias e conversas que supostamente teriam encontrado em meu celular, mas meu celular está com a polícia”, escreve. O Governo negou que tenha pressionado Noemí, mas não explicou como o conteúdo da investigação vazou.

“Guerra suja”

A assessoria de imprensa de Morales em Buenos Aires, onde ele reside depois de ter inicialmente se refugiado no México, em novembro do ano passado, respondeu aos pedidos dos jornalistas com um comunicado de uma só frase: “O ex-presidente Evo Morales não opinará sobre a guerra suja do Governo de fato criada com fins eleitorais”. No sábado, o ex-mandatário rompeu seu silêncio em uma entrevista à rádio Kawsachun Coca dizendo que não compartilhava do “uso de companheiras em questões políticas”. O escândalo ocorre a dois meses da data da eleição presidencial, já adiada em três ocasiões em meio à pandemia e num país que está há quase um ano mergulhado numa profunda crise, com manifestações populares frequentes e acusações de várias organizações internacionais sobre violações de direitos humanos.

As acusações legais contra Morales também estão em debate. O advogado Luis Vásquez foi à imprensa esclarecer que a acusação por estupro (neste caso, uma relação consentida de um adulto com um adolescente de entre 14 e 18 anos), punida com entre três e seis anos de prisão, só procede quando apresentada pela vítima ou seus pais, por isso o Governo está agido erroneamente. O advogado Gustavo Camacho Pérez disse a este jornal que a denúncia apresentada pelo Governo de Áñez é pouco técnica e carece de um elemento fundamental. “Não a estão conduzindo corretamente. Com as provas que têm, não podem levar a cabo um processo sério, pelo simples fato de que o Código Penal Processual obriga a que haja uma instância de parte, ou seja, que a vítima deve atuar positivamente na perseguição penal.” O Ministério de Justiça acrescentou as acusações de “abuso sexual” e “tráfico de pessoas”, que elevam a sanção possível a 15 anos de prisão. A pertinência destas imputações também está sendo discutida pelos juristas bolivianos.

O vazamento do caso

A maior parte dos vazamentos foi publicada por um site espanhol, e rapidamente todos os meios de comunicação do país andino repercutiram os conteúdos íntimos da jovem, sem proteger sua identidade. Os vazamentos de imagens e vídeos por parte da polícia preocupam María Galindo, proeminente ativista feminista, porque violam os protocolos de atendimento às vítimas de violência machista e o direito a preservar a identidade dos menores. “Temos que ter claro que à frente da polícia se encontra o Ministério de Governo [Casa Civil]”, afirma. “Esta é uma questão construída de lá. Não quer dizer que este delito não exista, mas sim que o vazamento chega diretamente do ministério. E isso é um crime, porque esses processos, na Espanha como na Bolívia, devem ser tratados com cuidado para proteger a identidade da vítima.”

“A situação se tornou um botim eleitoral. Estamos vendo o processo de destruição da vida de uma jovem pelo simples fato de que serve para destruir Evo Morales”, afirma Galindo. Entretanto, também acredita que os precedentes do ex-presidente oferecem um pano de fundo para pensar que há elementos corretos na denúncia: “Há filmagens de discursos de Morales em que ele afirma seu gosto pelas menores, em contextos como os conselhos populares onde sempre atuou com total impunidade e cinismo”.

Esta não é a primeira vez que Evo Morales se vê envolvido em um escândalo relacionado à sua vida pessoal. Seus dois filhos, nascidos de mães diferentes em 1994 e 1995, enfrentaram uma longa luta para que o ex-presidente reconhecesse sua paternidade. Além disso, as piadas sobre sua vida sexual foram uma constante durante seus 14 anos no poder e lhe valeram fortes críticas de organizações feministas. Certa vez, chegou a dizer numa entrevista que, após sua passagem pela vida pública, queria se recolher com seu provo (plantação de coca), seu charango (um instrumento típico) e uma menina de 15 anos.

Sua primeira derrota eleitoral como presidente, a do referendo de 2016, onde procurava a reeleição, também esteve relacionada com uma dessas polêmicas, depois de revelado seu relacionamento com Gabriela Zapata, uma jovem que chegou a ser gerente comercial na Bolívia de uma empresa chinesa que obteve vários contratos de obras públicas no país. A mulher, que atualmente cumpre pena por enriquecimento ilícito, foi namorada de Morales quando tinha 19 anos, conforme revelou o próprio ex-presidente. Seus críticos então também alegaram que a relação tinha começado três anos antes, quando ela era menor de idade.

O advogado Gustavo Camacho Pérez, doutor em Direito Penal e Constitucional, acredita que fazer uma análise sobre Evo Morales como possível autor do crime do qual é acusado agora seria irresponsável sem conhecer os pormenores. Mas acredita haver elementos que sugerem o “contexto de uma possível sedução”. “O poder social, o poder político e econômico e a fama certamente têm efeitos sobre a vítima”, afirma. “Um chefe de Estado chama a atenção de todos, crianças, jovens e adultos. Evo Morales, sem dúvida, é um personagem público e isto já é um elemento a considerar na relação de poder entre o autor e a vítima.”

Para Galindo, este caso não gerou indignação, e sim zombaria machista sobre a vida de uma jovem. “Somos uma sociedade que celebra a sexualidade no âmbito da festa, do álcool, mas ao mesmo tempo nega, reprime e censura a sexualidade das mulheres. Este país, além de ser absolutamente conservador, é tremendamente hipócrita. E a vergonha precisa mudar de lado”, lamenta.

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