_
_
_
_
_

Em golpe a Piñera, Chile aprova saque de 10% das aposentadorias contra a crise do coronavírus

Derrota do Governo foi vista como um primeiro passo para enterrar o sistema previdenciário baseado na capitalização individual, criado na ditadura de Pinochet

Chile: miembros de la Cámara de Diputados y Diputadas en Valparaíso, 2020
Deputados chilenos comemoram no plenário do Congresso a aprovação da lei que permite o saque antecipado de 10% do valor depositado nos fundos de previdência, nesta quinta-feira.FRANCESCO DEGASPERI (AFP)
Rocío Montes
Mais informações
Firefighters try to put out a fire on a car dealer business,  after protests over the possible approval of a bill in congress that seeks to authorize withdrawals from pension funds in Santiago, Chile, early July 15, 2020. - The Chamber of Deputies will discuss Wednesday a bill that seeks to authorize, for the first time in Chile, affiliates of the AFP system to withdraw up to 10% of the funds due to the COVID-19 pandemic. (Photo by JAVIER TORRES / AFP)
Chile retoma protestos contra sistema privado de pensões criado na ditadura de Pinochet
21 July 2020, Brazil, Sao Paulo: A homeless man washes his face mask while taking a shower himself in the street amid the Coronavirus outbreak. Photo: Andre Lucas/dpa
21/07/2020 ONLY FOR USE IN SPAIN
ONU propõe renda básica temporária para frear pandemia de coronavírus
Un hombre llora junto al féretro de su padre, fallecido por coronavirus, en el cementerio de Vila Formosa, en São Paulo (Brasil). La pandemia se propaga implacable por América Latina, con Brasil y México al frente, marcando nuevos récords diarios de contagios, mientras el mundo mira con preocupación los nuevos brotes que surgen en pleno desconfinamiento.
América não vê a saída para o drama da pandemia

O Congresso chileno aprovou nesta quinta-feira uma reforma constitucional que permitirá aos afiliados das Administradoras de Fundos de Pensões (AFPs) sacar até 10% dos valores depositados para a aposentadoria, como forma de enfrentar a crise econômica causada pela pandemia da covid-19. A iniciativa, que tem o apoio de 8 em cada 10 cidadãos, tornou-se um fato político decisivo. O debate foi marcado pela rebelião de parte da bancada governista de direita, que apoiou o projeto na Câmara dos Deputados e no Senado, apesar da recomendação em contrário do Executivo de Sebastián Piñera, que sofreu uma derrota histórica. Para boa parte da oposição, a aprovação foi vista como o primeiro passo para enterrar um sistema previdenciário baseado na capitalização individual, criado nos anos oitenta pelo regime de Augusto Pinochet, e que muitos consideram deslegitimado.

“Não sinto que alguém experimente uma derrota quando luta com convicção e com força pelo que acredita ser o melhor para o Chile e os chilenos”, afirmou Piñera nesta manhã. O Governo tentou frear a reforma através de sucessivos planos focados em ajudas à classe média, que não foram suficientes para convencer os parlamentares. Embora técnicos ligados a diferentes setores políticos tenham alertado para as consequências negativas do saque antecipado dos recursos dos fundos de pensão, a iniciativa foi apoiada na quarta-feira por 29 dos 43 senadores —incluindo cinco da bancada governista—. Nesta quinta-feira, votaram a favor 116 deputados, sendo 35 da coalizão Chile Vamos, de Piñera.

O economista José de Gregorio, ex-presidente do Banco Central e diretor da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile, lamentava na manhã de quinta o triunfo de medidas “pouco pensadas, atabalhoadas e populistas”. “Com um Governo que anda sempre atrasado e uma oposição que está, de certa forma, coberta pelo populismo, fica muito difícil chegar a acordos”, afirmou em entrevista a uma rádio.

A discussão no Parlamento foi acompanhada com amplo interesse pelos chilenos, não só por considerarem que o saque de 10% de suas economias os ajudará a suportar melhor este tempo de crise —há cerca de dois milhões de desempregados atualmente no Chile—, mas porque o problema das baixas pensões se tornou uma prioridade nacional, sobretudo depois das revoltas de outubro passado. Embora exista consenso sobre a necessidade de mudanças profundas no sistema, as transformações não se concretizaram até agora, e as aposentadorias continuam sendo muito inferiores ao que seria necessário para manter o nível de vida desfrutado pelos cidadãos em sua etapa ativa. O Chile tem, além disso, uma distribuição do renda muito deficiente.

A empregada doméstica María Bravo, de 58 anos, moradora no populoso e carente município de Maipú, parte de Santiago, está decidida a sacar 10% da sua poupança previdenciária, que no seu caso alcançaria o equivalente a 14.850 reais (aproximadamente quatro vezes o seu salário mensal). A dois anos da idade prevista para se aposentar, pretende usar o dinheiro para fazer uma cirurgia nas costas pela rede privada de saúde, “para não ter que esperar o hospital” onde aguarda na fila há vários anos. Conta que seu marido, de 57 anos, sem trabalho fixo, poderia tirar até o equivalente a 27.100 reais, com os quais pretende saldar dívidas. É um padrão que se repete, porque, de acordo com o Banco Central, a dívida total dos lares, calculada como percentagem da renda anual disponível, se manteve em níveis máximos históricos, subindo a 75,4% quando são contabilizadas as hipotecas.

Ambiente polarizado

O debate entre os parlamentares foi inflamado, refletindo o ambiente polarizado em diferentes esferas do país. No Senado, na quarta-feira, o governista Andrés Allamand, do Renovação Nacional, justificou sua rejeição ao projeto por considerar que “segue a receita clássica do populismo: pagar a ajuda presente com a pobreza futura”. O senador ofereceu alguns dados, como o que quase 800.000 pessoas poderão sacar menos de 700 reais em duas parcelas, que ninguém vai repor o valor resgatado, pois “é materialmente impossível para o Estado fazê-lo”, e que “a venda às pressas dos investimentos fará cair o preço dos ativos, castigando todos os afiliados”.

Para o senador socialista Carlos Montes, porém, “a cidadania vê o atraso e a insensibilidade do Governo frente à realidade, propondo programas limitados para pessoas que sofrem” e que precisam se alimentar, pagar dívidas e se proteger, com medo de perder o que já têm. “Dizem a eles que a retirada de parte dos fundos previdenciários afetaria as aposentadorias, mas o juízo está formado: o sistema de AFPs é ruim porque as aposentadorias são ruins, e se afeta aposentadorias ruins o impacto é muito específico. As necessidades são agora, porque se luta por uma sobrevivência com dignidade”, afirmou Montes em sua intervenção.

Logo depois de o Congresso aprovar a iniciativa, o Executivo anunciou que já nesta sexta o presidente promulgará a lei, ou seja, não recorrerá ao Tribunal Constitucional, como se chegou a cogitar. Com este fracasso do Executivo no Parlamento, fica aberto o cenário para que Piñera realize uma nova mudança de gabinete, como solicitado há semanas inclusive por partidos governistas, que enfrentam suas próprias guerras internas. Em todo caso, o ministro da Fazenda, Ignacio Briones, antecipou que esta Administração convocará uma “prioridade nacional de longa data” para promover uma reforma estrutural no sistema previdenciário: “Não podemos continuar nos fazendo de tontos”, indicou o economista depois da votação desta quinta-feira.

A Associação das AFPs reagiu às decisões adotadas pelo Parlamento. Embora a organização se diga convencida de que “as consequências econômicas da crise sanitária que vive o país serão pagas pelos trabalhadores e trabalhadoras ao fazer uso de suas economias previdenciárias”, deu garantias ao processo que virá: “Poremos toda a nossa energia para que quem precisar sacar parte de seus recursos o faça de maneira simples, informada e ágil”, declarou o gerente-geral da entidade, Fernando Larraín.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_