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Há um juiz nos Estados Unidos que decide tudo

O presidente do Supremo, o conservador John Roberts, inclinou a balança nas decisões judiciais apertadas dos últimos anos. Recentemente, ele se juntou à minoria progressiva em questões sobre o coletivo LGBT, imigrantes e aborto

FILE PHOTO: Supreme Court Chief Justice of the United States John G. Roberts, Jr. waits for the arrival of Former president George H.W. Bush to lie in State at the U.S. Capitol Rotunda on Capitol Hill on Monday, Dec. 03, 2018 in Washington, DC. Jabin Botsford/Pool via Reuters/File Photo
FILE PHOTO: Supreme Court Chief Justice of the United States John G. Roberts, Jr. waits for the arrival of Former president George H.W. Bush to lie in State at the U.S. Capitol Rotunda on Capitol Hill on Monday, Dec. 03, 2018 in Washington, DC. Jabin Botsford/Pool via Reuters/File PhotoPOOL New (Reuters)
Amanda Mars

Se a bandeira nacional pode ser queimada nos Estados Unidos, como se viu nas últimas semanas em algumas partes do país durante os protestos contra o racismo, é porque a Suprema Corte determinou há 31 anos que esse é um ato protegido pela primeira emenda à Constituição, que estabelece o direito à liberdade de expressão. Se duas pessoas do mesmo sexo podem se casar em todo o território, é porque essa mesma instituição deu essa garantia há cinco anos, como também consagrou o direito ao aborto em 1973 ou terminou com a segregação racial nas escolas públicas em 1954. A mais alta autoridade judicial moldou a sociedade norte-americana ao longo da história com base em sentenças de aplicação geral, a partir de ações particulares.

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Um corpo de nove juízes de cargo vitalício faz a mediação dos conflitos de uma nação com uma estrutura federal e extraordinariamente diversa, estabelecendo um mínimo constitucional comum nas regras do jogo. Em tempos de tanta polarização política, muitas divergências políticas terminam em suas mesas. Nesse tribunal há um juiz que nos últimos anos —e especialmente nas decisões das últimas semanas— se tornou o árbitro final da política e da vida norte-americana, o voto de desempate, o verso solto: John Glover Roberts. Nascido em Buffalo, Nova York, em 1955, e criado em Indiana, graduado cum laude na Escola de Direito de Harvard, chegou ao Supremo em 2005, por indicação do presidente George W. Bush.

O presidente republicano escolheu esse jurista conservador e experiente (era assistente do então presidente do órgão, a quem substituiu) e que, além disso, acabara de lhe dar uma alegria: fez parte do tribunal que legitimou Guantánamo ao anular a decisão judicial que tinha considerado ilegais as comissões militares do Pentágono para julgar os detidos naquela base. Assim se consolidou a maioria conservadora do órgão, que tem cinco juízes considerados como tais e nomeados pelos Governos republicanos (além de Roberts, Clarence Thomas, Samuel Alito e os dois mais recentes: Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh) e quatro progressistas nomeados por democratas (Ruth Bader Ginsburg, Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan).

No mês passado, no entanto, todos os olhares se voltaram para Roberts, que em três batalhas decisivas havia acompanhado os juízes liberais e inclinado a balança. Ele se manifestou contra uma tentativa do Estado da Louisiana de restringir o direito ao aborto, o que na semana passada levou à anulação da lei, após o resultado de 5x4. Poucos dias antes viera a sentença sobre os chamados dreamers (sonhadores), os imigrantes que entraram nos Estados Unidos ilegalmente quando crianças) e estavam protegidos da deportação por um programa especial do Governo Barack Obama que Donald Trump queria tornar sem efeito. Roberts se uniu de novo à minoria progressista e outro placar 5x4 freou a ação do Governo atual. Roberts considerou a ação arbitrária, embora não tenha blindado a legalidade do referido programa. E, semanas atrás, ele e Neil Gorsuch foram os conservadores que consideraram que um trabalhador não pode ser demitido por ser gay ou trans, em uma votação histórica de 6x4.

Agora, atribui-se a John Roberts, em parte, o papel de fiel da balança que antes cabia a Anthony Kennedy, um conservador moderado que se aposentou em 2018 e cuja opinião foi crucial para que em 2005 esse mesmo tribunal de maioria conservadora legalizasse o casamento gay em todo o país. Mas Roberts é muito mais decisivo do que foi Kennedy, e não só pelo poder que a presidência do tribunal lhe confere (foi isso que fez dele, portanto, o juiz que presidiu o julgamento político, o impeachment, de Trump no Senado no início do ano). O histórico das sentenças da Suprema Corte mostra que ele fez parte da maioria nas 11 decisões que a mais alta autoridade judicial adotou pelo placar mínimo (de 5 a 4) desde que entrou nessa corte em meados de 2000. Ele esteve com a maioria praticamente em nove de cada dez vezes.

O professor de direito Lee Epstein disse na semana passada no The New York Times que o juiz nomeado por Bush filho "não é apenas o ator mais importante do tribunal, mas o mais poderoso desde pelo menos 1937". Naquela época, o Supremo era presidido por Charles E. Hughes, que foi fundamental para acalmar a crise com a Administração de Roosevelt quando seus programas do New Deal foram derrubados.

Que um juiz não vote alinhado com os juízes que se supõe sejam de seu perfil ideológico deveria ser normal. Eles juram defender a Constituição, sobrepondo-a às suas ideias ou credos, mas, na prática, a leitura de trechos abstratos nas leis abre a porta a interpretações pessoais. Pelo menos três juízes conservadores consideraram que a Lei dos Direitos Civis não protege os gays da discriminação no trabalho. “Hoje precisamos decidir se uma empresa pode demitir alguém simplesmente por ser gay ou transgênero. A resposta é clara”, escreveu o conservador Gorsuch.

Roberts, que havia decidido a favor de restrições em um caso semelhante no Texas em 2016, se alinhou ao outro lado desta vez, após o caso da Louisiana, considerando que, se o tribunal já se havia pronunciado a respeito anos atrás, deveria manter aquele critério, embora ele na época fosse contra. "O resultado neste caso obedece à nossa decisão de quatro anos atrás de invalidar uma lei quase idêntica do Texas", explicou ele em seu arrazoado. Dias depois, sentenciou que as escolas religiosas deveriam ter os mesmos direitos aos auxílios estatais que outras escolas particulares. E em 2013 foi ele quem redigiu a opinião que anulou um artigo da Lei de Voto elaborado nos anos 60 para evitar a discriminação das minorias.

A condição vitalícia dos membros da Suprema Corte garante sua independência diante dos Governos, embora também lhes outorgue um poder avassalador e sua seleção seja, portanto, uma das grandes decisões dos presidentes, mesmo considerando que a nomeação tem que ser aprovada em seguida pelo Senado. Isso explica o medo em metade do país, desde que Trump chegou ao poder, quando a juíza e ícone progressista Ruth Bader Ginsburg, 87 anos, sofreu problemas de saúde.

O presidente republicano já conseguiu nomear dois juízes em menos de quatro anos de Governo (Gorsuch e Kavanaugh), consolidando a maioria conservadora do tribunal, e nomeou outros 200 juízes federais. Entre os progressistas, além de Ginsburg, há outro octogenário, Breyer, 81 anos. É por isso que o futuro do Supremo está tão presente na campanha eleitoral. No momento, há um juiz que dá o tom.

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