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China enfrenta quase todos, apesar da pandemia

Governo de Xi Jinping acumula tensões internacionais e lida com a crescente hostilidade de países da região, dos EUA e da União Europeia

Macarena Vidal Liy
Los delegados aplauden al presidente chino, Xi Jinping, y el primer ministro Li Keqiang en la sesión de clausura de la Asamblea Popular Nacional de China, el 28 de mayo en Pekín.
O presidente chinês, Xi Jinping, na abertura da sessão legislativa que iniciou a tramitação da nova lei de segurança de Hong Kong, em 22 de maio, em Pequim.Kevin Frayer (Getty Images)

“A China não tem medo de ninguém. Os tempos em que o povo chinês estava subordinado a outros e vivia dependente dos caprichos de outros acabaram para não voltar nunca mais.” Assim alardeava Zhang Xiaoming, subdiretor do Escritório de Assuntos de Hong Kong do Governo chinês, durante uma entrevista coletiva, na quarta-feira, sobre a draconiana lei de Segurança Nacional para o território autônomo. Nesse dia entrou em vigor a norma, que agravou de imediato as já importantes tensões entre Pequim e o Ocidente. Mais uma na série de disputas internacionais que a China protagonizou recentemente, com uma assertividade cada vez maior apesar da pandemia da covid-19.

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hong Há duas semanas, o Exército chinês enfrentou o da Índia no incidente fronteiriço mais sangrento em 50 anos. No Mar da China Meridional, colidiu com as Filipinas e o Vietnã: esta semana, ambos os países denunciaram manobras militares chinesas “enormemente provocadoras”. Os Estados Unidos enviaram neste fim de semana dois porta-aviões à zona para apoiar “uma região Indo-Pacífico livre e aberta”, em meio a recriminações mútuas de Washington e Pequim quanto ao incentivo de tensões na área. Previamente, Pequim teve atritos com o Japão em torno das ilhas que ambos disputam no mar da China Oriental; seus caças sobrevoaram os céus perto de Taiwan em várias ocasiões.

Além de suas fronteiras imediatas, Pequim avivou uma disputa com a Austrália sobre a investigação das origens da covid-19; com o Canadá, está mergulhada num amargo entrevero após acusar de espionagem dois canadenses detidos em aparente represália pela prisão, em Vancouver, da diretora financeira da Huawei, Meng Wanzhou. A diplomacia das máscaras e as tentativas de politizar a ajuda humanitária chinesa causaram forte irritação em diversos países. As diferenças com a União Europeia (UE) em relação a Hong Kong, aos direitos humanos e à política comercial ficaram em evidência durante a reunião por videoconferência realizada há duas semanas. E as relações com os Estados Unidos vão de mal a pior.

Frases similares à de Zhang, o alto funcionário do Governo chinês em Hong Kong, são ouvidas cada vez com mais frequência e contundência, da boca dos wolf warriors (lobos guerreiros), a nova geração de diplomatas chineses liderados pelo porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Zhao Lijian, que defendem com dura linguagem as posições de Pequim nas redes sociais —sobretudo no Twitter, embora esteja proibido em seu país— e em qualquer outro palanque.

A China afirma que seus movimentos são puramente defensivos e que se limita a reagir à pressão de outros. Nenhum tipo de pressão “pode solapar sua determinação e vontade de salvaguardar a soberania nacional”, enfatizava Zhao nesta semana sobre Hong Kong. Que Pequim exerça pressão sobre outros países não é novidade, nem algo que outros Estados tampouco façam. Mas é uma velha tendência que cresce à medida que seu poder aumenta. Segundo os dados de Ketian Zhang, professora adjunta da Universidade George Mason na Virgínia (EUA) e especialista em relações internacionais da China, na década de noventa houve nove episódios de coerção, a maioria de caráter militar. Entre 2010 e 2017 foram mais de 20, quase todos de natureza econômica e diplomática.

Segundo alguns especialistas, esta fase mais recente de assertividade chinesa pode se dever, em parte, à pandemia do coronavírus. Ao desejo de aproveitar a oportunidade enquanto o mundo está distraído com a luta contra a doença, mas também de responder à situação interna que criou a doença.

Dentro da China, “Xi [Jinping] enfrenta muita pressão por causa da pandemia, da economia e da gestão inicial do surto”, afirma Taylor Fravel, especialista em política de defesa chinesa no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). A atitude mais agressiva de Pequim buscaria “dissipar qualquer sensação de que a China seja fraca” neste momento.

E, em parte, essa renovada afirmação de sua posição chega devido ao clima de crescentes tensões globais. E ao convencimento dentro do Governo chinês de que o decoupling (a separação dos laços econômicos e tecnológicos com os EUA) é não apenas inevitável, mas também aconselhável, para evitar dependências que ponham em perigo seus interesses.

“Embora os laços com os EUA tenham se deteriorado —algo que se acelerou durante a pandemia—, isso não significará moderação nas questões que importam à China de verdade”, afirma Fravel. Mais propriamente, será o contrário: “Quando a China perceba que é desafiada em alguma de suas disputas de soberania nesta era, responderá de forma muito dura”, diz o especialista.

Enquanto a China se mostra mais assertiva, cresce a resposta ao seu comportamento internacional. A Austrália anunciou um gasto militar de 186 bilhões de dólares (cerca de 985 bilhões de reais) para a próxima década, um aumento de 40%. O primeiro-ministro, Scott Morrison, advertiu que a região indo-pacífica será o foco de “disputa global dominante de nossa era”. O Japão, segundo o jornal Nikkei, aprofundará sua colaboração de inteligência com a Austrália, a Índia, o Reino Unido e a França para, entre outras coisas, compartilhar dados sobre movimentos de tropas chinesas. Taiwan reabre seus escritórios no território norte-americano de Guam. O Quad, a associação informal para questões de segurança formada por Japão, Austrália, EUA e Índia, ganha mais força após a contenda fronteiriça no Himalaia. Este último país acaba de adiar a compra de material militar russo no valor de 4,6 bilhões de euros (cerca de 27,6 bilhões de reais).

A desconfiança abrange também o plano econômico. Entre outras medidas, Nova Déli proibiu nesta semana 59 aplicativos chineses, incluindo o popularíssimo TikTok —o que o app de vídeos curtos calcula que poderia lhe custar 6 bilhões de dólares (25,8 bilhões de reais). O Reino Unido mudou de opinião sobre a participação da Huawei em sua rede 5G. O Japão e a Tailândia anunciaram incentivos para que suas empresas abandonem a China, e os EUA pedem um novo traçado nas linhas de fornecimento.

Além disso, os EUA e a UE percebem que, apesar das divergências transatlânticas da era Trump, suas posturas são cada vez mais próximas no que diz respeito a Pequim. O representante europeu para Política Exterior, Josep Borrell, propôs no mês passado um diálogo bilateral sobre o gigante asiático. “As opiniões norte-americanas e europeias sobre a China —tanto seu comportamento como sua resposta política— estão convergindo. O Estado-Partido chinês que os EUA e a UE encaram agora é muito diferente daquele com o qual ambos buscaram colaborar durante as últimas quatro décadas”, afirma o relatório Dealing with the Dragon: China as a Transatlantic Challenge (Lidar com o dragão: a China como desafio transatlântico), publicado nesta semana e elaborado pela Asia Society norte-americana, a Universidade George Washington e a alemã Bertelsmann Stiftung.

Não por ser maior ou mais óbvia, a pressão que a China pode exercer agora deixa de ser estritamente calculada. Segundo Ketian Zhang, “é mais provável que exerça coerção quando perceber uma grande necessidade de estabelecer uma reputação de país que se mostra firme e decidido na defesa de seus interesses nacionais de segurança.” Ou também como gesto de advertência: “Matar um frango para assustar o macaco”, como diz a expressão chinesa. Ou seja, pressionar um país para que os demais sejam advertidos.

Essa pressão tem alguns limites. A China exerce coerção “desde que não ponha em perigo algo que queira ou necessite, se o Estado (pressionado) tiver algo que a China quer”. Se o custo econômico for alto, é menos provável que Pequim se mostre tão assertivo. E, mesmo que por um lado deseje construir uma reputação de país firme em seus interesses, por outro “não deseja uma aliança contrária e aspira a um clima econômico estável e próspero. As duas coisas estão em tensão, e não há maneira de conjugá-las”, diz a especialista.

Daqui para frente, se a tendência de desconexão (decoupling) continuar no longo prazo, e “se a China não depender economicamente, tanto como antes, dos EUA, do Japão e da UE, então terá menos restrições e preocupações, e poderíamos ver mais desse comportamento coercitivo”, considera Zhang.

Nesse sentido, o ex-embaixador alemão na China e atual vice-presidente do Conselho de Relações Exteriores, Volker Stanzel, um dos autores de Dealing with the Dragon, pondera: “A desconexão não beneficiará ninguém. Temos que defender o sistema e convencer a China de que isso não ocorra.”

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