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Surto do coronavírus em terras da Camorra desata uma rebelião de trabalhadores rurais

O confinamento de uma área perto de Nápoles, onde foram detectados 43 casos de covid-19, provoca uma revolta e leva o Exército a intervir

Trabalhador atira una cadeira em protesto contra o confinamento, em Mondragone (Itália).
Trabalhador atira una cadeira em protesto contra o confinamento, em Mondragone (Itália).STRINGER (AFP)
Daniel Verdú
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Cadeiras e móveis velhos começaram a voar pelas janelas. Centenas de trabalhadores temporários da área rural, muitos deles de origem búlgara, rebelaram-se contra a zona vermelha decretada pelo governador da região italiana da Campânia (sul), Vincenzo De Luca, na última segunda-feira. Funcionários da saúde fizeram 789 testes de covid-19 e constataram que 43 imigrantes que moram aglomerados em cinco prédios abandonados na cidade de Mondragone (28.500 habitantes) deram positivo.

Esta é uma das principais áreas de produção de tomate na Itália e a força de trabalho é quase toda ilegal. O novo confinamento é letal para eles. Se não trabalham, não comem. Um efeito dominó que deixa vazio o caixa da Camorra, a máfia que costuma explorá-los. Esse é um dos problemas, afirmam fontes do Ministério Público napolitano, por trás da revolta violenta que explodiu em Mondragone nesta quinta-feira e que forçou o Ministério do Interior a enviar o Exército a uma das áreas mais deprimidas da Itália.

La Domiziana é uma antiga estrada costeira que liga Nápoles a Caserta, território historicamente controlado pelo clã dos Casaleses. Uma estrada desconjuntada que atravessa uma paisagem que, de um lado e do outro, se torna sombria e decadente à medida que atravessa as cidades. Há poucos lugares na Itália que ilustram melhor o abandono e a traição do Estado para com seus cidadãos: corrupção, máfia, exploração, construção ilegal e tráfico de resíduos. Uma inquietante viagem que culmina em Mondragone, cenário cinematográfico dos filmes de Matteo Garrone sobre a Camorra e a tempestade social. Esse foi por muitos anos o território de trabalhadores temporários italianos recrutados para a colheita de tomates da empresa de conservas Cirio. A empresa construiu em 1957 cinco edifícios, que ainda têm seu nome, para abrigar trabalhadores de sua fábrica. Mas fechou e, quando ficaram vazios, os imigrantes chegaram. São trabalhadores volantes, não têm direitos sociais, pagam cerca de 100 euros (cerca de 600 reais) aos clãs por cada quarto nas casas ocupadas e se esfolam 13 horas por dia no campo para receber cerca de 25 euros (150 reais). São indispensáveis para a economia agrícola da região, mas, também, vítimas da Camorra, uma relação que já custou muitas vidas.

O primeiro trabalhador temporário morto pela máfia na Itália se chamava Jerry Masslo. Era sul-africano, havia escapado da perseguição do apartheid. Foi morto por quatro garotos em Villa Literno (Campânia) na noite de 23 de agosto de 1989, porque queriam roubar o seu salário semanal. Não esperavam que reagisse, sacaram as armas e atiraram nele três vezes. Foi o ponto de inflexão e a primeira vez que o Estado se deu conta do enorme problema que tinha no campo.

Mas houve mais assassinatos, mais revoltas —a de 2010 em Rosarno (Calábria) já faz parte da história da Itália— e nenhuma solução real. A ministra da Agricultura, Teresa Bellanova, anunciou há algumas semanas uma regularização maciça desse tipo de trabalhador para resolver esses problemas. Mas, no momento, o baixo número de solicitações recebido pelo Ministério do Interior aponta para o fracasso da medida.

A zona vermelha de Mondragone, que permanecerá fechada pelo menos por mais dez dias, é um barril de pólvora que agora ameaça a pobre economia da região. Nesta quinta-feira, moradores italianos da região foram até lá para condenar os imigrantes. Atacaram com pedras e bastões alguns veículos com placas búlgaras, gritaram ofensas racistas. Ao amanhecer, com o Exército já posicionado, jogaram um coquetel molotov no furgão de um trabalhador.

O prefeito da cidade pediu ajuda ao Estado e, em vez disso, quem apareceu foi Matteo Salvini, líder da Liga, que fazia meses estava órfão de munição anti-imigração. As eleições na Campânia, um feudo governado por muitos anos pela esquerda e atualmente comandada por um dos maiores antagonistas do líder da Liga, Vincenzo De Luca, serão cruciais no equilíbrio de forças nacional. “Talvez agora, depois de meses de insultos de bufão contra mim e contra a Liga, De Luca tenha acordado”, acusou o ultradireitista, colocando-se a reboque do conflito.

O sindicato majoritário na região, CGIL, tem estado presente todos os dias nos edifícios Cirio. Igor Prata, secretário-geral da delegação de Caserta, denuncia que “a exploração econômica e trabalhista só se torna uma emergência social no momento em que esses  invisíveis, em quem ninguém repara, ficam doentes e não têm proteção à saúde”. “Eles não podem se dar ao luxo de ficar doentes porque não têm nenhum apoio do Estado. O problema é que, nos últimos anos, vimos como a Camorra também usava esses trabalhadores diurnos. Usava capatazes de seu próprio grupo étnico para tirar proveito deles. E nos edifícios Cirio, é claro, também se vendem drogas. Há um tráfico de seres humanos para transformá-los em mão de obra da qual diversos mundos criminosos se aproveitam.” 

A batalha está apenas começando e a impressão é que para muitos convém que continue inflamada. Os contagiados, todos assintomáticos, estão sendo transferidos para o hospital Maddaloni, dedicado a pacientes com covid-19, mas 13 imigrantes búlgaros que tiveram resultado positivo não foram localizados. “Se chegamos a cem positivos após fazer 3.000 testes, fecharemos toda Mondragone. Fui claro?”, advertiu o goverrnador de Luca.

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