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A vida é bela, mas nem tanto

As brincadeiras de Abdalla com a filha para contornar os estrondos das bombas na Síria conquistaram as redes sociais e abriram as portas da Turquia para eles. Três meses depois, a fuga traz outras dificuldades

Óscar Gutiérrez
Abdalla Mohamed, com a mulher e a filha, na passagem fronteiriça de Cilvegozu, em Idlib, em fevereiro.
Abdalla Mohamed, com a mulher e a filha, na passagem fronteiriça de Cilvegozu, em Idlib, em fevereiro.M. BURAK KARACAOGLU (GETTY)
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A conversa foi retomada na madrugada de 24 de abril. Depois disso, as coisas não melhoraram para a família do sírio Abdalla Mohamed. Pelo contrário. “Eu me livrei de um pesadelo”, contou naquele contato, “e outro pesadelo começou”. A conversa continuou nas semanas seguintes, pouco a pouco. Estão com a água no pescoço. Abdalla e sua família protagonizaram em fevereiro uma das poucas histórias com um final claramente feliz na guerra da Síria. Um vídeo em que esse homem de 32 anos arrancava gargalhadas da filha Salwa, de três anos, fazendo-a a creditar que as bombas eram apenas fogos de artifício, varreu as redes. Em poucos dias, essa cena ––que tanto lembrava o filme A Vida é Bela, de Roberto Benigni―, mais a mediação da Turquia, permitiu que fugissem de seu país. Do outro lado da esquina, aguardava o estrondo da crise da covid-19.

Abdalla não é o primeiro pai a brincar de esconder a guerra de um filho usando a imaginação. Mas aqueles risos, dele e da menina, contagiantes, seduziram meio mundo ―a mãe não é de aparecer muito diante das câmeras. “É um avião ou um projétil?”, perguntava Abdalla à filha no vídeo. “Um projétil”, dizia Salwa. “Quando cair, você tem que rir”, dizia o pai. “Caiu!”. E eles morriam de rir. Aquelas imagens foram postadas na Internet em 15 de fevereiro. Apenas 11 dias depois, a família, natural de Saraqib, uma das áreas mais castigadas pela ofensiva do regime sírio na província de Idlib, estava atravessando a fronteira para a Turquia com o beneplácito do ministro do Interior turco, Süleyman Soylu. Um sucesso.

Mais de três meses se passaram. “Desde que entrei na Turquia”, diz Abdalla, “estou sentado em casa por causa do coronavírus”. Este ex-provedor de serviços de Internet não conseguiu encontrar um emprego, e está mais difícil ainda desde que a emergência na saúde o obrigou a ficar confinado também na Turquia. A família paga 200 dólares (cerca de mil reais) por mês pela casa em que mora com um amigo, na cidade fronteiriça de Reyhanli ―a maioria dos quase quatro milhões de sírios que fugiram para a Turquia vive fora dos acampamentos de refugiados. Sua mulher e filha estão bem.

Salwa continua estrelando os vídeos e fotos que Abdalla posta na Internet. Brinca com bonecas, dança, faz desenhos, ri, mas ... "Estou enfrentando dificuldades financeiras", Abdalla diz em uma mensagem: "o dinheiro que tenho está acabando, é uma situação realmente difícil”.

A Turquia, apesar de tudo, não é um Eldorado. Os refugiados que entram e são cadastrados têm acesso a saúde e educação. Os que trabalham estão no setor informal, e era isso que Abdalla pretendia. No que fosse. Mas veio o confinamento e esse “o que fosse” não apareceu. Uma opção seria recorrer ao programa do Crescente Vermelho para os mais vulneráveis (equivalente a 100 reais por mês por pessoa). “Mas é para famílias de três filhos ou mais, e aí não estou incluído, porque só tenho uma menina”, diz Abdalla com certa ironia e um emoticon simpático. Com 1,7 milhão de beneficiários, é efetivamente um programa que alcança famílias numerosas, mas também idosos, mulheres sozinhas, deficientes…

– Como vocês pagam a comida, Abdalla?

– Alguns amigos nos ajudam.

– Que tipo de trabalho você procura?

– Qualquer trabalho, não importa.

Segundo um relatório recente da Federação Internacional do Crescente Vermelho (IFRC, na sigla em inglês), 70% dos refugiados na Turquia perderam o emprego com a chegada da pandemia. Ficaram sem trabalho, com menos renda, ao mesmo tempo em que aumentavam seus gastos em artigos de higiene e saúde. “Estes refugiados”, diz Rubén Cano, diretor do escritório da IFRC na Turquia, “têm muita dificuldade para chegar ao fim do mês, e temo que esteja piorando”.

“Tem um amigo turco que está me ajudando, mas o vírus parou tudo”, diz Abdalla em outra conversa. Esse turco se chama Mehmet Algan, de 34 anos. Foi ele quem publicou na Internet aquele vídeo de pai e filha em 15 de fevereiro, o dia em que tudo começou. E é ele quem lhe dá uma mão com os problemas de dinheiro e a busca por emprego. “Depois de chegar à Turquia dei a eles algumas semanas para que descansassem”, conta Mehmet em uma troca de mensagens, “e depois falei com o diretor de uma ONG, mas não houve oportunidade [de trabalho] com o início da pandemia”. Continuará tentando, diz, agora que a emergência sanitária se abranda um pouco. E pode ser do que for. “Infelizmente”, prossegue Mehmet, “para refugiados só há empregos não qualificados”.

Voltemos a Abdalla:

– Salwa, a sua filha, sabe por que está fora de casa?

– Sim, sabe que o Exército da Rússia e Bashar al Assad roubaram nossa terra.

– Você lhe disse a verdade sobre as bombas?

– É pequena, quando crescer entenderá.

– Achou alguma vez que escapar da guerra seria tão difícil?

– Qualquer coisa é mais fácil que a guerra.

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