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Por que os negros dos EUA não respiram

George Floyd havia sido contagiado com coronavírus, despedido do trabalho e morreu sob o joelho de um policial branco. Sua história ilustra a fratura racial que ainda divide a superpotência global

Um protesto em Washington contra a violência dirigida aos afro-americanos.
Um protesto em Washington contra a violência dirigida aos afro-americanos.CHIP SOMODEVILLA (AFP)
Amanda Mars

George Floyd havia sido contagiado com coronavírus, despedido do trabalho como consequência da pandemia e morreu sob o joelho de um policial branco. A história deste homem de 46 anos, cujo nome e agonia deram a volta ao mundo, se perde na selva de estatísticas que contam o que significa ser negro nos Estados Unidos hoje. Meio século depois do ocaso das leis de segregação, mais de 150 anos depois da abolição da escravidão, e alcançados marcos tão simbólicos quanto a eleição de um presidente afro-americano, brancos e negros não vivem a mesma vida e, em muitos casos, literalmente, não habitam o mesmo pedaço de terra.

Os primeiros continuam ganhando mais dinheiro do que os segundos, gozam de melhor saúde e têm muito menos probabilidade de acabar seus dias no chão retidos por quatro policiais durante oito minutos e 46 segundos enquanto gritam em público: “Não consigo respirar”.

Esse foi o fim de Floyd em 25 de maio na cidade de Minneapolis (no estado de Minnesota, no norte do país), um caso de brutalidade policial que desencadeou a onda mais generalizada e intensa de protestos contra o racismo desde o assassinato de Martin Luther King, inclusive atravessando fronteiras. Seu nome é o último de uma longa lista de mortes incompreensíveis nas mãos das forças de segurança, a manifestação extrema de um viés racista que sobrevive no consciente e no inconsciente deste país, um tipo de segregação diferente da jurídica, econômica em boa medida, que se mantém ao longo das décadas.

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Na sexta-feira passada, as Bolsas de Valores comemoraram um número surpreendentemente bom de emprego nos Estados Unidos: a taxa de desemprego caiu de 14,7% para 13,3% em maio graças aos primeiros passos da reabertura do país. Para os negros, por outro lado, foi mais alta e, além disso, continuou subindo, de 16,7% para 16,8%.

“A reforma dos direitos civis fez dos negros cidadãos completos, eliminou a segregação da lei, mas isso não bastou para combater a injustiça social, que é a base dessa situação. Não é uma novidade, Martin Luther King já queria mudar a natureza da luta nessa direção. A Lei dos Direitos Civis mudou muitas coisas, mas os problemas de discriminação racial e injustiça econômica permaneceram. E as forças de segurança serviram de abrigo para os redutos do supremacismo branco”, aponta Kevin Gaines, professor de Direitos Civis e Justiça Social da Cátedra Julian Bond da Universidade de Virgínia.

A fratura aumenta

Os antepassados de Mélisande Short-Colomb chegaram à colônia de Maryland em 1676. Em 1838, os líderes jesuítas da Universidade de Georgetown venderam sua família em um lote de 272 escravos para enfrentar as dificuldades financeiras da instituição, homens, mulheres e crianças que foram embarcados em Washington e entregues aos novos donos na sulista Louisiana. Lá nasceu, quatro gerações depois, em 1954, Mélisande. Três meses depois de chegar ao mundo, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas, mas ela continuou a frequentar uma sala de aula separada dos brancos. Quando tinha 10 anos, em uma manhã de domingo, quatro membros da Ku Klux Klan explodiram uma igreja batista e mataram quatro meninas negras. Quando ela completou 14 anos, Martin Luther King foi assassinado. Em 2016, depois de testes de DNA e da análise de vários documentos, conheceu a verdade sobre suas origens. Naquela época, a mesma Georgetown que havia vendido sua família acertou contas com o passado, reconheceu sua história escravista e a ajudou a se matricular no centro como parte de um programa de apoio aos familiares daqueles escravos.

Agora ela mora em Washington. Na sexta-feira pegou um cartaz e o empunhou até a Casa Branca para protestar por George Floyd e por tudo o mais. “Para começar, não me chame de afro-americana, sou negra americana, minhas raízes estão neste país desde o século XVII e minhas conexões sanguíneas com a África são as mesmas que com a Noruega”, começa a mulher de 66 anos, que antes de se mudar para a capital dos EUA tinha trabalhado toda a vida como chef na Louisiana. “Revendo minha vida, posso dizer que muitas coisas mudaram, é claro, mas não o suficiente para fazer a diferença, esta é a mesma situação, existe um elenco de personagens rotativos que escolhem ser assim, escolhem este paradigma”, afirma.

Um punhado de dados ilustra muito claramente a fratura que ainda separa os negros dos brancos. Em 2018, segundo o Escritório de Estatísticas do Censo dos EUA, a renda média de uma família negra era de 41.361 dólares (cerca de 205.000 reais, na cotação atual) e havia crescido 3,4% em comparação com a década anterior. Para brancos não hispânicos, a renda média atingiu 70.642 dólares (cerca de 350.000 reais), com um aumento de 8,8% no mesmo período, ou seja, em relação aos níveis anteriores à Grande Recessão.

Em relação ao patrimônio, a diferença entre ambos é muito semelhante à que existia em 1968, o ano das grandes revoltas tão lembradas nos últimos dias. Uma família negra de classe média acumulava riqueza de cerca de 6.674 dólares (cerca de 33.000 reais) e uma branca, de cerca de 70.768 dólares (aproximadamente 352.000 reais), de acordo com dados da Pesquisa de Serviços Financeiros citada pelo The Washington Post, que desconta o efeito da inflação, ou seja, do aumento de preços. Em 2016, a família negra possuía cerca de 13.024 dólares (65.000 reais) e a branca 149.703 (746.000 reais). A diferença aumentou.

Essas desigualdades se refletem na saúde. As estatísticas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da Administração (CDC na sigla em inglês) mostram que os negros com idades entre 18 e 49 anos têm duas vezes mais probabilidade de morrer de doenças cardíacas do que os brancos, e os da faixa entre 35 e 64 anos têm 50% mais de possibilidades de sofrer de hipertensão. O mesmo acontece em relação ao diabetes e outras condições pré-existentes, e isso foi fatal na pandemia de coronavírus, que tem sido especialmente feroz entre eles, muitos empregados em postos sem a possibilidade de trabalhar de casa, como os hispânicos.

Na cidade de Chicago, os negros são 30% da população, mas já representavam 52% das infecções confirmadas e sete de cada dez mortos por essa causa no início de abril. Na Louisiana natal de Mélisande Short-Colomb, que também foi uma das regiões mais castigadas pela pandemia, representavam 70% das mortes na mesma época, mas perfaziam apenas 32% da população. No geral, um estudo do grupo de pesquisa Amfar conclui que sofreram a metade dos contágios do país, apesar de representarem 22% da população, e 60% das mortes.

Justin Colomb, filho de Mélisande, nasceu há 36 anos, em um país que havia enterrado juridicamente a segregação. Ele afirma, no entanto, que se sentiu vítima de situações racistas ao longo da vida.

“Tive meu primeiro emprego aos 17 anos em um restaurante em Nova Orleans; era sempre pontual, mas um dia cheguei atrasado. Era a primeira vez e o gerente me disse para não me preocupar, cheguei tão angustiado que desci ao porão para tomar chá frio antes de começar. A dona veio atrás de mim e disse: ‘Comece a trabalhar, macaco’. E eu nunca esqueci. Ela não gostava do meu cabelo afro, não gostava de mim em geral”, conta. O restaurante fechou anos atrás, devido ao furacão Katrina. Ele continua morando na cidade sulista e é técnico de vídeo, mas com a pandemia seus projetos foram suspensos.

Justin Colomb cresceu ouvindo a mãe dizer que ele não podia cometer nenhum erro com a polícia, “que existe certo protocolo que um garoto negro deve seguir para estar a salvo, porque nossa cor de pele assusta, incomoda e, mesmo assim, não é sempre garantia”, comenta.

Os negros têm 2,5 vezes mais chances de morrer nas mãos da polícia do que os brancos, segundo um estudo da Universidade Northwestern. Eles também se envolvem, em geral, em mais crimes e situações violentas. Segundo dados da Pew Research, 1.501 de cada 100.000 afro-americanos estavam presos, o dobro do que os hispânicos (797) e cinco vezes mais do que os brancos não hispânicos (264). E as altas taxas de detenção criam um círculo vicioso de pobreza e exclusão, apesar de terem caído um terço desde 2006.

O demógrafo William Frey, pesquisador da Brooking Institution e autor de Diversity Explosion (A Explosão da Diversidade), explica que embora a segregação tenha diminuído ao longo das décadas, ainda seria necessário, em média, que entre 50% e 60% dos negros mudassem de bairro para acabar com ela.

“Houve uma melhora social, mas não o suficiente, e as leis acabaram com a discriminação jurídica, mas ela existe de outras maneiras”, aponta Frey. Os hispânicos, enfatiza, também sofrem boa parte dessas fraturas (no emprego, na riqueza, nas infecções da covid-19), mas se assimilaram mais. Por exemplo, 27% deles fizeram casamentos inter-raciais no período 2014-2015, mas apenas 18% dos negros o fizeram (e 11% dos brancos), segundo a Pew.

Além disso, de acordo com suas projeções, os hispânicos representarão 28% da população em 2050 e agora já são a mais poderosa das mal chamadas minorias. “Ainda assim, quando olho para as manifestações dos últimos dias, as vejo tão multirraciais e com gente tão jovem que estou otimista em relação às novas gerações e acredito que teremos resultados muito melhores”, diz Frey.

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